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Narrativas míticas e questões territoriais: contextos paisagísticos, lugares e sujeitos
Mythical narratives and territorial issues: landscape contexts, places and subjects
Narrativas míticas y cuestiones territoriales: contextos de paisaje, lugares y sujetos
Revista Presença Geográfica, vol.. 07, núm. 01, 2020
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Artigos



Recepção: 26 Junho 2020

Aprovação: 08 Julho 2020

DOI: https://doi.org/10.36026/rpgeo.v7i1.5083

Resumo: Os mitos podem ser formas de reatualização de acontecimentos, eventos e práticas do passado que, pelo seu caráter excepcional, tornam-se transtemporais e são recriados em diferentes contextos históricos e geográficos. No presente texto, objetiva-se analisar algumas narrativas míticas que constam em livros, filmes e na oralidade popular, ancorando-se a leitura na Geografia Cultural e Humanista. Inicialmente selecionaram-se algumas obras e temáticas a serem trabalhadas, para posteriormente se fazer uma leitura contextual. Na primeira parte do artigo, enfatizam-se os contextos paisagísticos míticos e o simbolismo relacionados às perversidades da colonização de exploração, que se impôs como uma narrativa hegemônica. Em seguida, faz-se uma apreciação de alguns relatos míticos de segmentos religiosos monoteístas, que apresentam diferentes leituras para as relações com transmundano. Posteriormente, aborda-se como a temática mítica aparece no contexto da relação histórica entre homens e animais, que são usados em atividades econômicas diversas, todavia, por outro lado, assustam quando são vistos como entidades fantasmagóricas ou quando são resultantes da mutação humana, como no caso das narrativas sobre lobisomens em diferentes partes do mundo.

Palavras-chave: Narrativas míticas, Território, Paisagens míticas, Símbolos.

Abstract: Myths can be ways of updating facts, events and practices of the past that, due to their exceptional character, become trans-temporal and are recreated in different historical and geographical contexts. In the present text, the objective is to analyze some mythical narratives that appear in books, films and popular orality, anchoring reading in Cultural and Humanist Geography. Initially, some works and themes were selected to be worked on, and then a contextual reading was carried, guiding the analytical approach based on some relevant concepts. In the first part of the article, the mythical landscape contexts and symbolism related to the perversities of exploitation colonization are emphasized, which imposed itself as a hegemonic narrative. Then, an appreciation of some mythical reports from monotheistic religious segments is made, which present different readings for the relations with transmundano. Subsequently, it approaches how the mythical theme appears in the context of the historical relationship between men and animals, which are used in diverse economic activities, however, on the other hand, they are frightening when they are seen as ghostly entities or when they are the result of human mutation, as in the case of narratives about werewolves in different parts of the world.

Keywords: mythical narratives, Territory, Mythical landscapes, Symbols.

Resumen: Los mitos pueden ser formas de actualizar hechos, eventos y prácticas del pasado que, debido a su carácter excepcional, se vuelven transtemporales y se recrean en diferentes contextos históricos y geográficos. En el presente texto, el objetivo es analizar algunas narraciones míticas contenidas en libros, películas y oralidad popular, anclando la lectura en Geografía Cultural y Humanista. Inicialmente, se seleccionaron algunos trabajos y temas para trabajarlos, a fin de luego hacer una lectura contextual. En la primera parte del artículo, se enfatizan los contextos míticos del paisaje y el simbolismo relacionado con las perversidades de la colonización de explotación, que se impuso como una narración hegemónica. Después, se hace una apreciación de algunos relatos míticos de segmentos religiosos monoteístas, que presentan diferentes lecturas para las relaciones con transmundano. Posteriormente, se acerca a cómo aparece el tema mítico en el contexto de la relación histórica entre hombres y animales, que se utilizan en diversas actividades económicas, sin embargo, por otro lado, son atemorizantes cuando son vistos como entidades fantasmales o cuando son el resultado de la mutación humana, como en el caso de narraciones sobre hombres lobo en diferentes partes del mundo.

Palabras clave: Narraciones míticas, Territorio, Paisajes míticos, Símbolos.

INTRODUÇÃO

Os mitos podem ser formas de reatualização de acontecimentos, eventos e práticas do passado que, pelo seu caráter excepcional, tornam-se transtemporais e são recriados em diferentes contextos históricos e geográficos. Mircea Eliade (1991) destaca que o mito retira o homem de seu próprio tempo, individual, cronológico, histórico e o projeta, mesmo que simbolicamente, para o grande tempo, em um instante paradoxal que não pode ser medido por não ser constituído por uma duração, ou seja, o mito significa uma ruptura do tempo e do mundo enquanto realidade táctil e perceptível. Segundo esse referido autor:

(...) Um mito narra os acontecimentos que se sucederam in princípio, ou seja, “no começo”, em um instante primordial e atemporal, num lapso de tempo sagrado. Esse tempo mítico ou sagrado é qualitativamente do tempo profano, da contínua e irreversível duração na qual está inserida nossa existência cotidiana e dessacralizada. Ao narrar um mito, reatualizamos de certa forma o tempo sagrado no qual se sucederam os acontecimentos de que falamos (Eliade, 1991. P. 53).

Essa leitura de Eliade aplica-se ao entendimento da arguição discursiva de alguns líderes religiosos, católicos e evangélicos, que fazem explanações sobre trechos bíblicos, nos quais constam narrativas envoltas de tramas míticas. Para Jung (1987) um mito consiste de símbolos que não foram conscientemente inventados. Segundo Eric Dardel (2011) o mito não é de forma alguma a narrativa de um acontecimento em data precisa e única. Para o referido autor, o espaço geográfico mítico não comporta qualquer ponto de referência objetivo, linha ideal ou convencional a partir da qual são medidas as distâncias e fixadas as direções. Os mitos assustam, despertam curiosidades e alimentam o imaginário coletivo em diferentes partes do mundo.

As narrativas míticas são envoltas de elementos (naturais e/ou produzidos pela ação humana) e de práticas cotidianas rotineiras ou religiosas, que expressam peculiaridades geográficas de diferentes lugares. Segundo Paul Claval (2014), os homens não podem viver sem dar sentido àquilo que os cerca; a dimensão simbólica. Em diferentes contextos geográficos, há relatos de uma diversidade de narrativas míticas, que são alimentadas, recriadas e ressignificadas ao longo do tempo, por diferentes sujeitos sociais. Em algumas épocas e situações, a narrativa interessa a determinados grupos hegemônicos (políticos, econômicos), para manutenção ou ampliação do poder sobre o território. Em outras situações, a narrativa pode apresentar uma natureza contra-hegemônica. Por outro lado, mitos podem fazer apenas parte das práticas religiosas ou lúdico-festivas de diferentes segmentos societários.

No presente texto, objetiva-se analisar algumas narrativas míticas que constam em livros, filmes e na oralidade popular, ancorando-se a leitura na Geografia Cultural e Humanista. Inicialmente selecionou-se algumas obras e temáticas a serem trabalhadas, para posteriormente se fazer uma leitura contextual. Nessas obras, faz-se uma breve abordagem geográfica de mitos dimensionados em diferentes contextos, envolvendo lugares, sujeitos e elementos naturais. Para se entender o dinamismo e as reinvenções das tramas míticas é necessário valorizar lugares, sujeitos e contextos socioculturais de forma integrada. O aporte metodológico da Geografia Humanista é, portanto, de fundamental importância para a compreensão e leitura analítica da questão das narrativas, de forma geral, e na abordagem da linguagem fílmica, a partir das questões míticas. Optou-se pelo livro de contos de autoria de Theobaldo Miranda Santos (1992), porque nesta publicação há narrativas míticas que atendem aos propósitos deste artigo, que é abordar questões míticas de povos historicamente marginalizados, como os indígenas. Como pretende-se abordar narrativas míticas relacionadas ao além e que se opõem as narrativas hegemônicas, de forte influência monoteísta, selecionou-se filmes sobre lobisomens e os vários mistérios e lendas que envolvem os relatos sobre a possibilidade dos seres humanos se transformarem em animais.

Este artigo foi produzido a partir dos estudos no âmbito do grupo de pesquisa “Recôncavo: território, cultura, memória e ambiente”, do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia, campus V – Santo Antônio de Jesus, e integra um quadro temático de práticas investigativas e analíticas da atividade de pesquisa e extensão intitulada “Geografia Cultural nos espaços educacionais do Território de Identidade do Recôncavo baiano”. Procurou-se selecionar obras e tramas que enfatizem as questões míticas relacionadas sobretudo ao além, que aparecem em várias narrativas em diferentes contextos geográficos, e, ao mesmo tempo, questionar as narrativas oficiais, hegemônicas, sob uma crítica. No processo de colonização do Brasil, a igreja católica, teve um papel importante; portanto, a narrativa desse segmento religioso hegemônico foi predominante no processo de expansionismo territorial das potências colonizadoras. E as potencialidades das narrativas alternativas, periféricas, de indígenas a afrodescendentes? Como podem ser trabalhadas em espaços educacionais? Questionamentos dessa natureza foram levantados nas reuniões temáticas e de estudos do Grupo de pesquisa Recôncavo.

Na primeira parte do artigo, enfatizam-se os contextos paisagísticos míticos e o simbolismo relacionados às perversidades da colonização de exploração, que se impôs como uma narrativa hegemônica. Em seguida, faz-se uma apreciação de alguns relatos míticos de segmentos religiosos monoteístas, que apresentam diferentes leituras para as relações com o mundo espiritual. Posteriormente, aborda-se como a temática mítica aparece no contexto da relação histórica entre homens e animais, que são usados em atividades econômicas diversas, todavia, por outro lado, assustam quando são vistos como entidades fantasmagóricas ou quando são resultantes da mutação humana, como no caso das narrativas sobre lobisomens em diferentes partes do mundo.

1. CONTEXTOS PAISAGÍSTICOS MÍTICOS, SIMBOLISMO E COLONIZAÇÃO

No passado, para se ter contato com diferentes povos e conhecer suas crenças e símbolos, era necessário viajar centenas de quilômetros. Os navegadores dos séculos XV e XVI, por exemplo, deparavam-se com vários símbolos, desenhos, estátuas, cujos significados eram desconhecidos. O estranhamento alimentava os medos e produziam mitos; narrativas lendárias. Na atualidade, no entanto, basta sentar-se em frente a um computador ou acessar a internet pelo aparelho celular, para se defrontar com uma diversidade de símbolos, crenças, lendas em diferentes lugares do mundo. O avanço tecnológico melhorou a acessibilidade imagética, paisagística de várias práticas culturais, ritualísticas desse imenso planeta complexo, todavia, infelizmente, a leitura racista, etnocêntrica, preconceituosa ainda persiste.

A discriminação geográfica, que produziu discursos como a dualidade civilizados x selvagens, foi construída historicamente. Cesaire (1978) destaca de forma enfática e crítica que a colonização nunca se constitui evangelização, expansão de direitos; o referido autor considera o processo colonial uma ação aventureira, pirata, objetivando o alargamento em escala mundial das economias dos colonizadores. Cesaire assevera que a colonização destruiu civilizações na Ásia, África, América Latina. Nessa perspectiva analítica o colonizador não trouxe a civilização; eles as destruíram em nome do expansionismo econômico. Esse processo precisava de discursos, de narrativas, que suavizassem as práticas violentas, etnocêntricas. Nesse contexto entrou o papel das religiões hegemônicas.

Segundo Claval (2001), a nova abordagem cultural da Geografia busca interrogar os homens sobre as experiências que têm daquilo que os envolve, sobre o sentido que dão à sua vida e a maneira pela qual modelam os ambientes e desenham as paisagens para nelas afirmarem sua personalidade, suas convicções e suas esperanças. Para vertente cultural da Geografia, o conceito de paisagem tem uma importância expressiva, tanto para as abordagens sobre os elementos materiais do espaço, quanto para a leitura das questões imateriais, como as narrativas dos lugares e sobre os lugares.

Na concepção fenomenológica de Dardel (2011), a paisagem não é um círculo fechado, mas um desdobramento. Nessa perspectiva, a paisagem geográfica desdobra-se e abre-se para além daquilo que se vê; dessa forma, não se tem uma paisagem única e coisificada, e sim leituras de paisagens, interpretações da paisagem em uma perspectiva alargada, transescalar, diversa. Essa paisagem não se configura apenas como um quadro material estático, fotográfico no campo visual do observador; em uma perspectiva fenomenológica, a paisagem é vista, vivida, sentida, experienciada de diferentes formas e captada por uma diversidade de sensações, incluindo-se o medo. Essas sensações podem ser explicadas ou entendidas, a partir da materialidade que projeta no campo visual (rua deserta, casa abandonada, gruta) ou das narrativas assustadoras sobre esse elementos materiais. Uma coisa é uma casa como outra qualquer em uma rua de uma cidade; outra coisa é um conjunto de narrativas que se constrói historicamente sobre aquela edificação ou sobre aquele logradouro público, onde a casa está situada. Essas narrativas podem ser assustadoras e o imaginário pode produzir paisagens míticas, a partir do que se conta e também do que ser ver: casas, estradas, símbolos diversos.

Um símbolo pode conter várias narrativas que transladam diversas escalas geográficas. Além da diversidade de significados, recriados ao longo do tempo, um símbolo pode apresentar uma ambivalência; uma natureza contraditória. Um exemplo claro dessa questão é a cruz para os cristãos; esse símbolo sacro esteve presente em guerras em nome de grandes impérios, em práticas colonialistas etnocidas no Continente Americano e na África e, por outro lado, está presente como símbolo hipervisível nos frontões de grandes igrejas católicas em centenas de cidades brasileiras. É a mesma cruz carregada em procissões religiosas; ela está nas proximidades de práticas ritualísticas importantes para o catolicismo, como o batismo e casamento, considerados sacramentos estruturantes para o citado segmento religioso. Segundo Tuan (2012),

Um símbolo é um repositório de significados. Estes emergem das experiências mais profundas que se acumularam através do tempo. As experiências profundas têm, muitas vezes, um caráter sagrado, extraterreno, mesmo quando elas se originam na biologia humana. Quando os símbolos dependem de acontecimentos singulares, eles devem variar de um indivíduo para o outro e de uma cultura para outra. Quando se originam em experiências comuns à maior parte da humanidade, eles têm caráter mundial. (TUAN, 2012, p. 203).

A explicação para os significados dos símbolos vai além dos contextos geográficos de vivência. No caso da cruz, para os cristãos, tem-se que mergulhar nos contextos históricos para compreender os seus significados. Para Tuan (2012), um símbolo é uma parte que tem o poder de sugerir um todo. Claval (2014) destaca que os símbolos, como a cruz para os cristãos, são elementos que expressam questões identitárias. Segundo esse autor, o símbolo congrega e faz as pessoas agirem como coletividade.

Durante o processo de colonização da América e da África, não só se invadiram as terras, com a ganância expansionista, como também foram roubadas preciosidades de grupos culturais nativos, em um processo de pilhagem cultural; além da escravização e do etnocídio. Muitos bens simbólicos de povos indígenas e negros foram saqueados e comercializados ou foram depositados em museus com fins turísticos em importantes cidades europeias. Esses objetos jamais seriam vendidos pelos grupos societários que os cultuam, pois constituem-se em bens com valor simbólico. Se o conteúdo humano (indígenas do continente americano) não interessava ao expansionismo colonialista (a exceção da escravização mercadológica de negros e negras africanos), o seu espólio paisagístico, arquitetônico, expresso em edificações peculiares, interessava menos ainda. Alguns canais de TV apresentam séries que debruçam em abordar riquezas arqueológicas recentemente descobertas; dentre essas, cidades inteiras cobertas por florestas. O tamanho e a riqueza arquitetônica dessas cidades muitas vezes surpreendem o telespectador e alimentam questionamentos da seguinte natureza: como se produziram essas cidades em um contexto temporal, no qual não se dominava a tecnologia? As respostas para esses questionamentos, muitas vezes, são buscadas em outra dimensão planetária: seres extraterrestres teriam disponibilizado a inteligência e técnica, para que aqueles povos construíssem essas cidades. Há programas televisivos e sites que reforçam essa crença. Questiona-se: essa arguição seria racista e eurocêntrica? Acredita-se que sim! Por que não se atribui a seres extraterrestres o avanço científico e tecnológico de países colonizadores, que lideraram as grandes navegações que promoveram desterritorialização violenta e etnocídio nos continentes africanos e americanos?

Nos espaços educacionais a abordagem crítica acerca da violenta colonização exploratória na África é interessante não só para uma contextualização temática, como também para que os estudantes tenham uma leitura ampla e fundamentada das principais causas da fome e da pobreza da atualidade, evitando, assim, as abordagens que parecem “naturalizar” problemas estruturais produzidos perversamente por agentes hegemônicos que viam as terras africanas apenas fonte de recursos a serem explorados pela ação dos países colonizadores que, segundo o célebre historiador Ki-Zerbo (2009), dividiram, esquartejaram a África e impuseram uma macrorregionalização, assentada em idiomas hegemônicos impostos: países anglófonos, francófonos e lusófonos. Além disso, Ki-Zerbo questiona as imposições narrativas hegemônicas vindas de fora para dentro, aplicadas para a leitura histórica do extenso e complexo continente africano. Sobre essa questão Cesaire (1978) afirma que é o ocidente que faz etnografia dos outros e não os outros que fazem a etnografia do ocidente.

Segundo Ki-Zerbo (2009), quando um africano pergunta quem é você, ele quer saber das suas origens e dos seus contextos de vivências do ponto de vista da identidade coletiva e social. Trata-se de uma referência do ponto de vista sociocultural. Dessa forma, ao narrar as suas vivências identitárias, esse africano terá que falar das histórias de vida do seu coletivo social, e não apenas se submeter a uma história narrada externamente pelos colonizadores. Seguindo a trilha das abordagens fenomenológicas, se o homem é filho da terra e este sujeito social constrói sua história de vida experienciando seus lugares de vivência, as suas narrativas identitárias não podem ser inventadas de fora para dentro; não podem vir de fora.

Do ponto de vista étnico-geográfico, nota-se um tratamento claramente discriminatório quando se refere às questões culturais. No Brasil, durante muitas décadas, se chamou de folclore todas as manifestações culturais provenientes dos índios e negros e de cultura o que vinha da Europa. As narrativas míticas como Iara mãe d’água (indígena) e as travessuras do Saci Pererê (afrodescendente) eram abordadas como manifestações folclóricas, mas não no sentido de valorização da diversidade cultural de diferentes matrizes etnográficas, e sim em uma perspectiva hierárquica, que inferiorizava as manifestações culturais dos colonizados, dos não brancos. Muitas festas religiosas europeias eram consideradas como manifestações culturais, colocadas em um patamar acima das práticas ritualísticas dos não brancos, cometendo-se um grande equívoco que é a hierarquização da cultura. O folclore dos indígenas e negros seria considerado uma cultura de segunda linha, reforçando e perpetuando, durante várias décadas no transcurso do século XX, a velha dicotomização civilizado x selvagem, que é completamente insuficiente para leitura analítica da complexidade territorial contemporânea. Cultura não se pesa, não se compara e muito menos se hierarquiza; cultura se respeita na sua diversidade.

Alguns questionamentos são relevantes: por que destruir as edificações e símbolos dos povos colonizados? A quem interessaria a eliminação do conteúdo etnográfico das novas áreas “conquistadas” / invadidas e a invisibilidade do seu espólio urbanístico e artístico / arquitetônico de diversos grupos societários? Essa materialidade edificada revelaria uma contra-narrativa que se constituiria em uma “máquina de guerra” contra-hegemônica? São problematizações importantes, para que entendamos que o processo colonial, em diferentes contextos geográficos, não só invadiu, escravizou povos, violentou de diferentes formas, como também procurou invisibilizar o espólio edificado desses povos subjugados. O que esse conjunto edificado teria para contar? Por lado, ainda se procurou mitificar, no sentido negativo do verbo, as narrativas históricas que se compunham o conteúdo discursivo de diferentes grupos societários.

Claval (2014) chama atenção para a expressividade nacionalista de alguns monumentos que cultuam os mortos, transformando-os em “heróis da pátria”. Na narrativa oficial, o colonizador é o herói que terá estátua e será rememorado nas escolas, tendo assim uma inserção protagonista nos livros didáticos. E o que acontece com os vários segmentos étnicos que foram subjugados, desterritorializados, escravizados ou mortos de forma violenta? Serão lembrados apenas como meros serviçais que figuravam na periferia societária de países escravocratas? Naturaliza-se perigosamente a pobreza da grande maioria negra que habita áreas precárias, sem se fazer as devidas correlações dialógicas com o passado violentamente escravagista e desterritorializador. Além dessa questão da pobreza estrutural, tem-se o silenciamento de outras narrativas, incluindo-se as míticas. Muitos desses contos se enriqueceram, ampliaram-se ecomplexificaram-se em meio à miscigenação, notadamente abarcando-se as matrizes indígenas, europeias e africanas. O etnocídio irresponsável silenciou muitas narrativas autóctones.

A religião hegemônica e elitista era necessária para dar legitimidade ao poder imperial dos reis colonialistas; os impérios colonizadores estavam assentados na hierarquia social rígida que precisava ser justificada por um lastro discursivo religioso. Já imaginou se uma narrativa mítica considerasse o rei como um ser humano como qualquer outro e os chamados “selvagens” como seres humanos iguais aos “civilizados” colonizadores? E se esses povos indígenas da América ou negros da África apresentassem outra explicação para suas origens, na qual constam divindades criadoras e não apenas uma divindade conforme argúem os monoteístas? E se esses autóctones afirmassem que suas divindades os visita regularmente e que habitam florestas, grutas, serras ou rios? E se afirmassem que essas divindades dançam com eles nas suas ritualísticas religiosas e lúdico-festivas? Essas narrativas ou contra-narrativas evidentemente incomodariam aos hegemônicos, porque poderiam fazer com que suas crenças, que legitimam as ações dos estados colonizadores, fossem ameaçadas.

Alguns ufólogos e pesquisadores de vida extraterrestres afirmam de forma convicta que não só houve contatos entre ETs e grupos societários do passado (chamados por alguns de povos primitivos), como também houve influências deles na evolução da inteligência desses coletivos sociais, a ponto de fazerem obras arquitetônicas que até hoje intrigam as pessoas. Como se fazer edificações com esse nível de sofisticação em uma época que não se dispunha de recursos tecnológicos? Já se destacou a natureza discriminatória desses questionamentos. Por que essa inteligência alienígena só teria ajudado os povos da América e África, que se constituíram em gigantescas possessões coloniais europeias? Por que filosofia grega não teria uma origem alienígena também? Concorda-se com as críticas ao viés eurocêntrico desses discursos, por isso ele é questionado e rechaçado por muitos pesquisadores das áreas das Ciências Humanas e Ciências Sociais. No entanto, essa possibilidade de parceria alienígena no avanço científico e nos progressos e engenhosidade arquitetônica, durante muitos anos e na atualidade é veementemente desmentida, porque se constituiria em uma forte contra-narrativa, que anularia toda discursividade assentada no livro de Gênesis, da Bíblia, que é considerada um livro sagrado para importantes segmentos religiosos, que congregam a grande maioria de fiéis em grandes países do mundo, como o Brasil.

Ao se falar em mitos de povos colonizados, retoma-se uma questão abordada alhures. A narrativa mítica pode incomodar porque pode se contrapor, divergir de forma enfática das religiões hegemônicas, que dão sustentação e um tipo de “legitimidade espiritual” as ações colonizadoras. Como criar o conformismo e a resignação diante de uma violenta desterritorialização colonizadora, sem um discurso religioso “pacificador”? O problema é que a imposição religiosa no processo colonial contribuiu para depreciação de mitos locais / regionais que expressam as peculiaridades geográficas de diferentes povos.

2. GEOGRAFIAS MÍTICAS “LUGARIZADAS” E SUAS EXPRESSÕES DIVERSAS

As narrativas míticas, em muitos casos, situam-se em interfaces; na transição entre o real e o imaginário, o tangível e intangível, o subjetivo e coletivo, entre o mundo material e o transmundano, entre o humano e não humano (ou humano modificado ou em processo de mutação). Tudo aquilo que não é explicável, entendível sob uma ótica narrativa formal, ou assusta, ou é omitido, ou é silenciado, ou é perseguido. Em muitos casos, a narrativa mítica incomoda, porque traz elementos que podem comprometer uma suposta metarrativa hegemônica que precisa se impor como única. A forma como mitos e crenças relacionadas a interfaces transmundanas são abordadas depende das especificidades dos diferentes contextos geográficos, por isso essas temáticas são importantes para a Geografia Cultural contemporânea.

Os mitos são produzidos pelo imaginário coletivo e são recriados ao longo do tempo, a depender das influências de sujeitos sociais em diferentes contextos geográficos. Muitas lendas, consideradas locais, têm origem em regiões bem distantes de onde são difundidas, conhecidas. A forma como ela chega a cada local ou região e sua dinâmica reinventiva nos lugares são temáticas de interesse da Geografia Cultural contemporânea.

Para muitos povos indígenas, as florestas podem ser consideradas uma extensão das suas casas e, ao mesmo tempo, se constituírem em espaços sagrados, revestidos de um forte simbolismo. Essas matas de transcendência seria também a morada dos deuses. Nesse caso, as divindades circulariam pelos espaços, lugares por as pessoas andam, caçam, pescam. Nessa perspectiva, não haveria separação entre o mundo espiritual e os itinerários cotidianos da vida mundana. Essa leitura da realidade pode ser considerada mítica, folclórica (no sentido negativo) pelos não indígenas, que historicamente produziram uma grande narrativa considerada “verdade absoluta’. No entanto, as teorias dos colonizadores brancos são não explicam a diversidade, a complexidade sociocultural de vários grupos étnicos, que produziram edificações e artefatos que exigem técnicas refinadas.

A tese defendida por alguns ufólogos de que a humanidade teria suas origens em outros planetas se contrapõem claramente a narrativa mítica da criação do mundo, que consta em trechos bíblicos e que é veiculada para milhões e milhões de pessoas, de diferentes segmentos religiosos. Portanto, para esses, essa seria uma das questões que não deveria nem se discutir; melhor omitir e/ou silenciar em algumas situações, ou mesmo rechaçar veemente esse discurso. O mesmo se aplicaria a grupos societários indígenas que, no período violento e desterritorializante da colonização de exploração, falavam em “deuses” no plural e não no singular, como no caso das religiões monoteístas que predominavam nas chamadas potências colonizadoras.

Eric Dardel (2011), a partir da perspectiva fenomenológica, faz uso de um mito australiano e da narrativa bíblica para mostrar estreita relação do homem com a terra:

O homem, diz um mito australiano, é feito de terra. A narrativa do Gênesis mostra Adão formado de lama; a relação etimológica conservada pela língua latina húmus, humanus, expressa a mesma experiência mítica. Vir ao mundo é se destacar da terra, mas sem romper jamais, inteiramente, com o cordão umbilical pelo qual a terra nutre o homem. Em tal concepção mais “vivida” que concebida, a relação não é somente aquela de um passado original, porém a da sempre atual religio, que o culto deve renovar todo dia (DARDEL, 2011, p. 48).

Dardel (2011) destaca que, ao considerar que a terra é mãe de tudo que vive, entende-se que há laços de parentesco que une o homem a tudo que o cerca: árvores, animais, rochas. O referido autor assevera que a montanha, a floresta e outros elementos fisiográficos não se constituem apenas em um quadro exterior. Essa abordagem fenomenológica se aplica as leituras de mundo de diversos povos indígenas de diferentes contextos geográficos. Deve-se destacar, no entanto, que esses grupos indígenas cultuam deuses que transitam do mundo espiritual para suas realidades de circularidade cotidiana (matas, rios), todavia, suas origens humanas estão relacionadas a terra. O mito australiano que Dardel cita se aplica a indígenas de países da América Latina e também se constitui em ponto em comum com o trecho bíblico, que consta no livro de Gênesis. Todavia, deve-se destacar que a narrativa bíblica em questão, que é aceita por milhões de pessoas em dezenas de países do planeta, está assentada em um Deus único, que habita em uma outra dimensão espiritual (o céu). Portanto, as narrativas sobre a origem do homem podem apresentar interfaces dialógicas, no entanto, quando há interesses econômicos e expansionistas em jogo, como no caso da colonização exploratória na África e na América Latina, opta-se por seguir uma narrativa hegemônica (dos colonizadores) porque o objetivo era tomar posse das novas terras, o que implicaria um processo de desterritorialização. Nesse caso, não haveria espaço para o respeito as diferentes leituras de mundo dos diferentes segmentos etnográficos autóctones (indígenas, negros).

Para algumas das grandes religiões do mundo, como Judaísmo e Cristianismo, por exemplo, existe a dimensão da existência humana que produz a materialidade espacial (edificações, cidades, estradas, pontes) e uma dimensão da existência do ser supremo que é onipresente, onisciente e onipotente. Alguns religiosos falam em terra (dos homens) e céu (onde habita a divindade superior). Já a religiões indígenas e de matriz afro-brasileiras falam em divindades, no plural, que habitam e andam por espaços da circularidade e da convivialidade cotidiana, como as florestas, os rios. No catolicismo popular, existem os lugares especiais onde o além aflora, como enfatiza Claval (2014). Todavia, em algumas obras clássicas do consagrado escritor Jorge Amado (2009; 2008), notam-se que as divindades das religiões de matriz afro-brasileiras circulam de forma tranquila por ruas e avenidas da capital baiana. Esses exemplos citados demonstram claramente como é diversa, pluralista a relação entre os humanos e as divindades, em diferentes religiões do Brasil e do mundo.

Por outro lado, nem sempre o que está na dimensão espiritual é considerado como uma divindade. Muitas pessoas temem as figuras fantasmagóricas que são veiculadas não só nas narrativas que atravessam diferentes gerações, como também nas TV e, mais recentemente, nas redes sociais. Fala-se em cidades que foram abandonadas pelos vivos, mas que abrigam fantasmas, entidades espirituais que tentam assustar ou expulsar aqueles que se aproximam para visitar ou residir. Em outros casos, fala-se em casas mal assombradas, dominadas por figuras fantasmagóricas e que despertam o medo e repulsa de quem circula pelas proximidades ou que adentra essas unidades residenciais. Segundo Tuan (2005), em vários locais, suspeita-se de que os mortos retornam para visitar os lugares e as pessoas que outrora conheceram. O referido autor cita o exemplo de indígenas americanos que destruíam a propriedade do morto ou recusavam-se a usá-la por medo do fantasma reivindicar sua posse. Esse tipo de relato acontece em várias partes do mundo, no entanto, esses contos míticos, essas irrupções transmundanas, são diferentes a depender do contexto geográfico e sociocultural.

Consta no livro de Theobaldo Santos (1992) que os índios e os sertanejos acreditam na existência de uma bela mulher mítica chamada Iara ou “mãe-d’água, que viveria nos lagos e rios. Essa mulher encantaria pela beleza e pelo canto, que atrairiam as pessoas para a água. O referido autor destaca que, temendo a “mãe-d’água”, muitos indígenas se afastam de lagos e rios no final da tarde e início da noite. Esse relato mítico dos sertões se assemelha aos contos sobre Iemanjá, considerada a rainha do mar para religiões de matriz afro-brasileira, e que, de vez em quando aparece para os pescadores nas tramas literárias de algumas obras consagradas de autores como Jorge Amado (2008; 2009), que cenarizam áreas litorâneas, portuárias, notadamente da Baía de Todos Santos e da cidade de Salvador. Essa mulher temida ou divinizada, dos rios do sertão nordestino ou das águas oceânicas, vem ao encontro das pessoas constituindo paisagens subjetivamente míticas.

O além assusta, desperta curiosidades e alimenta práticas religiosas diversas, envoltas de várias tramas míticas, que se diversificam na complexidade territorial dos lugares. Diferentes sujeitos, ambientes e elementos naturais compõem os cenários e os contextos das múltiplas narrativas míticas.

3. OS HOMENS E OS ANIMAIS NAS NARRATIVAS MÍTICAS

Em várias situações, em diferentes partes do mundo, as questões míticas envolvem a relação homem / natureza e coexistência entre humanos e animais. Sob a ótica das atividades econômicas, a domesticação de animais contribuiu muito para facilitar as práticas produtivas, notadamente no espaço agrário. Os animais domesticados, ao longo de vários séculos, foram usados como meios de transporte de pessoas e mercadorias, no traçado para o preparo do solo para o plantio, na produção de alimentos (carne, leite, ovos etc). Como as narrativas míticas nascem ou são ampliadas e recriadas nos espaços de circularidade das pessoas, não é de se estranhar a presença de animais fantasmagóricos em vários contos, em diferentes lugares.

O escritor Santos (1992) publicou uma coletânea contendo sínteses de contos e mitos brasileiros, envoltos por variadas influências socioculturais, manifestando-se de diferentes formas em grandes regiões brasileiras. Em uma dessas narrativas, consta que os índios Caingangues, que habitavam as margens do rio Iguaçu, no sul do Brasil, acreditavam que o mundo era governado por Mboi, um deus que tinha forma de uma grande serpente e era filho de Tupã, o rei dos deuses. Nesse caso, nota-se uma divinização da serpente. Trata-se de uma abordagem ambivalente, uma vez que esse deus serpente era considerado como perverso.

Segundo Dardel (2011), os Dayaks, grupo étnico da ilha de Bornéu, associam a mulher a uma serpente d’água. Nessa ilha asiática, a presença da cobra em um ambiente aquático, no imaginário mítico, assemelha-se a outras lendas de diferentes regiões do Brasil e de outros países do mundo. Tuan (2005) enfatiza que, em alguns países da África, as cobras, assim como hienas e sapos, são considerados como parceiros das bruxas. Nesse referido continente, é muito comum se acreditar que alguns fantasmas podem aparecer em forma de animais. Nesse caso, não seria a mutação do humano, como na lenda do lobisomem; os fantasmas, que circulariam na interface entre o mundo real e o além, ganhariam materialidade ao se transformar em animais.

Além do medo de animais fantasmagóricos, temem-se muito as mutações de seres humanos; há relatos de pessoas que se transformariam em animais monstruosos. Alguns filmes americanos trouxeram para as telas do cinema e da TV lobisomens urbanos, tanto do sexo masculino quanto feminino. Os personagens humanos que se transformam em lobisomem são pessoas que circulavam por importantes cidades do mundo, como Londres e Paris, transitando por lugares e edificações significativas, como a Torre Eiffel, um marco simbólico da capital francesa .

Na região Nordeste do Brasil, notadamente nos territórios sertanejos, acredita-se que os lobisomens sejam indivíduos amaldiçoados pelos pais ou então trata-se do sétimo filho homem de um casal, que se transforma em animal pavoroso, na sexta-feira, à meia-noite, em uma encruzilhada. Nesse caso, o arranjo físico-territorial da via pública lembra a cruz, um importante símbolo católico, chama a atenção como espaço / local pavoroso, do temor, notadamente a noite. Tuan (2005) destaca que o meio ambiente de noites escuras e cumes de montanhas adquire uma dimensão extra de ominosidade, além da ameaça das forças naturais e espíritos, quando é identificado com a maldade humana de ordem sobrenatural. Por outro lado, muitas pessoas sobem as montanhas para pagar promessas e realizar práticas devocionais diversas.Há inclusive morros considerados sagrados, que são visitados por milhares de crentes, anualmente, como no caso de Bom Jesus da Lapa e Monte Santo, no extenso semiárido baiano. É a dimensão ambivalente das narrativas míticas que as tornam interessantes em diferentes lugares. O lugar sagrado / devocional durante dia pode ser o espaço assustador, topofóbico, à noite.

No caso dos lobisomens de diferentes lugares dos sertões nordestinos, a mutação amaldiçoada teria surgido no contexto geracional familiar: o sétimo filho homem de um casal. No caso de filmes clássicos do cinema, a origem da maldição seria a mordida de um animal. No primeiro caso, mais uma vez as narrativas míticas se apresentam como questionadoras do “lugar comum” das narrativas predominantes, uma vez que a família, para diferentes segmentos religiosos hegemônicos no Brasil, é considerada sagrada. Como explicar uma maldição apavorante como o lobisomem em um contexto familiar, fortemente sacralizado nos discursos religiosos? Essas famílias estariam pagando por algo que fizeram nesse plano espiritual ou em outro? O primeiro questionamento seria feito por segmentos religiosos predominantes no Brasil, na atualidade, de forma veemente, porque a sacralização da família faz parte do conteúdo discursivo dos líderes religiosos que, jamais aceitariam a mínima possibilidade de um ser humano se transformar em um animal. A segunda problematização também não encontraria campo fértil para discussão, porque remete a possibilidade da abertura de pontes, interfaces com outros planos espirituais que seriam inacessíveis aos “meros mortais”, sob a ótica de grandes religiões monoteístas. Ou seja, segmentos religiosos católicos e evangélicos não aceitariam essa transgeracionalidade espiritual que consta nos discursos de religiões espíritas e hinduístas, por exemplo.

Em grandes religiões do mundo, como a católica, que está presente no Brasil desde o período colonial e a ainda é majoritária, apesar do expressivo incremento evangélico, predomina o que Claval (2002) chama o mundo positivo, que é apreendido pelos sentidos humanos, tocado e frequentado, e o outro mundo, onde se situam as forças, os princípios ou divindades responsáveis pelo que acontece no mundo positivo. Esses dois mundos não são totalmente separados, uma vez que os aléns afloram em lugares especiais, como os santuários. Todavia, essa abordagem para questão sagrado / profano, que se aproxima bastante da daquela defendia por Eliade (1991, 1992), é completamente insuficiente para abordagem das complexas questões míticas, territorializadas em diferentes lugares.

Os lobisomens seriam seres míticos, provenientes da mutação humana, que andariam por espaços de circularidade cotidiana dos vivos, como matas, bosques, áreas rurais e povoados, como no filme clássico dos anos 1940, e que foi refilmado pela Universal Pictures, em 2010 ou grandes metrópoles cosmopolitas do mundo como Londres e Paris. Na capital francesa, a famosa torre Eiffel foi um dos cenários da trama intitulada “Um lobisomem americano em Paris”. Nesse filme, destaca-se uma questão de gênero: quem se transformava em um animal era uma mulher. No Brasil, notadamente na zona rural e em pequenas cidades interioranas do Nordeste, os lobisomens eram seres apavorantes resultantes da mutação de homens.

No filme “Um lobisomem americano em Londres”, traz-se ao público uma cenarização, na qual dois jovens americanos chegam a uma pequena cidade, através de caronas, e são recebidos de forma fria pelos habitantes locais. Ao se deslocarem pela estrada, esses dois rapazes são terrivelmente atacados por uma criatura monstruosa que vitima fatalmente Jack Goodman, que vai a óbito, e fere David Kessler, que consegue escapar dessa situação adversa. O animal que os atacou era um lobisomem; sendo assim, como consta de relatos míticos, o rapaz ferido, que conseguiu escapar da morte, em noites de lua cheia também se transformaria em um lobisomem; o ferimento da fera transmitiria a mutação. Nesse filme, chama atenção o fato de que o rapaz que morrera no ataque fatal começa a aparecer para o seu amigo vivo, alertando-o para o sinistro destino que o aguarda, após o embate que o feriu. Jack solicita que David se mate para libertá-lo de uma incômoda situação de morto-vivo e também para evitar que o amigo se transforme em lobisomem e ataque outras pessoas. No entanto, como convencer um amigo com uma narrativa dessa natureza? A questão se agrava, quando se consideram os contextos geográficos que envolvem a trama: Estados Unidos e Inglaterra. Nesses dois países, onde predominam religiões monoteístas consolidadas de um lado e uma dinâmica capitalista pulsante, fortemente materialista, de outro, como levar a sério um relato acerca da mutação humana, capaz de produzir monstruosidade que pode circular ciclicamente em espaços cotidianos, em noites de lua cheia?

O filme “Um lobisomem americano em Londres” estimula uma reflexão acerca da aceitação ou não da possibilidade não só da mutação humana cíclica, como também das possibilidades dialógicas com diferentes esferas da dimensão espiritual. Grande parte das religiões monoteístas que predominam no Brasil, Estados Unidos e Inglaterra desconsidera totalmente a possibilidade de qualquer perspectiva dialógica com o mundo espiritual onde estariam as divindades ou estariam aquelas pessoas que faleceram. O filme em tela traz uma situação de intermediação; um dos personagens não está vivo, pois fora ferido mortalmente por um lobisomem, no entanto, não está totalmente morto, pois aguarda uma ação de um vivo, o rapaz que sobreviveu ao ataque, para seguir seu translado no mundo espiritual.

Essa porta entre os mundos dos vivos e dos mortos permanece permanentemente fechada para grandes religiões monoteístas do mundo. No entanto, para os segmentos espíritas kardecistas existem essas interfaces dialógicas que possibilitam a comunicabilidade entre vivos e mortos, a depender do nível de mediunidade de cada pessoa. Nessa perspectiva, a comunicação dos desencarnados através de cartas (psicografia), sonhos ou múltiplas percepções sensoriais não se constituiria em um relato mítico, e sim em algo viável, plausível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As igrejas, onde se celebram casamentos apoteóticos e se realizam sacramentos importantes, como o batismo, nas altas horas da noite ou em filmes de terror podem se constituir em espaço topofóbicos, assustadores. Os grandes rios, que expressam abundância da água durante o dia, a noite, podem ser vistos como um universo paralelo que abriga vários seres míticos que se fortalecem na penumbra mística. O escuro, onde se realizam vigílias e práticas religiosas diversas, assusta. Os morros, considerados sagrados, no quais se edificam capelas e cruzeiros para relembrar passagens de trechos bíblicos, são as formações geomorfológicas que podem assustar em narrativas míticas, contadas, alimentadas e recriadas notadamente por pessoas que residem no entorno imediato. Por outro lado, pode-se descortinar uma dimensão conflitiva, quando algumas pessoas desconsideram os mitos e o valor simbólico de determinados lugares e se apropriam com interesses mercadológicos, como a atividades mineradoras, por exemplo. Essa complexidade ambivalente das narrativas míticas e suas especificidades em diferentes contextos geográficos as tornam interessantes, instigantes.

As várias narrativas míticas de povos que foram silenciados pela história oficial, que se contrapõem aos discursos que constam em livros didáticos e em documentos oficiais, podem ser chamadas de contra-narrativas? Narrativas alternativas? Narrativas marginais? O uso da palavra depende da abordagem e do contexto do discurso. Quando alguns povos indígenas apresentam as suas narrativas sobre o papel das suas divindades na criação dos seus mundos (no sentido de contextos lugarizados da existência humana), esses segmentos societários estarão apresentando uma contra-narrativa que pode incomodar e, por isso, ser marginalizada ou invisibilizada de forma intencional. A diversidade narrativa dos diferentes grupos etnográficos deve ser vista como um potencial a ser explorado, com vistas a melhor compreender a diversidade geográfica desse planeta complexo.

REFERÊNCIAS

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CÂMARA CASCUDO, L. da. Folclore do Brasil: pesquisas e notas. Brasil / Lisboa: Fundo de Cultura, 1969.

CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.

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DARDEL, E. O homem e a terra: a natureza da realidade geográfica. Tradução: Werther Holzer. – São Paulo: Perspectiva, 2011.

ELIADE, M. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso.Tradução de Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. 6. ed. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1987.

KI-ZERBO, J. Para quando a África?: entrevista com René Holenstein. Tradução de Carlos Aboim de Brito. Rio de Janeiro, Pallas, 2009.

SANTOS, T. M. Lendas e mitos do Brasil. 12. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1992.

TUAN, Y.-F. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. Londrina: EDUEL, 2013.

TUAN, Y.-F. Paisagens do medo. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Ed. UNESP, 2005.

TUAN, Y.-F. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Tradução de Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2012.

REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS

Um lobisomem americano em Londres. Direção: John Landis. Roteiro: John Landis. Estados Unidos - 1981 (1 hora e 37 minutos

Um lobisomem americano em Paris. Direção: Anthony Waller. Roteiro: Tim Burns; Tom Stern; Anthony Waller. Hollywood Pictures. Estados Unidos. Reino Unido, Holanda, Luxemburgo e França – 1997 (1 hora e 45 minutos).

Autor notes

[1] Graduado em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Mestre em Geografia e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Professor Titular da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. E-mail: janioroquec@yahoo.com.br


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