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A diáspora haitiana, a noção de hos(ti)pitalidade e a busca do lugar sob o olhar geográfico
The Haitian diaspora, the notion of hos(ti)pitality and the search for the place under the geographic perspective
La diaspora haïtienne, la notion de hos(ti)pitalité et la recherche du lieu sous le regard géographique
Revista Presença Geográfica, vol.. 07, núm. Esp.02, 2020
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Artigos

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 07, núm. Esp.02, 2020

Recepção: 03 Agosto 2020

Aprovação: 27 Outubro 2020

Resumo: Este artigo busca compreender a situação da diáspora haitiana no contexto brasileiro, especificamente, na cidade de Porto Velho - RO. Para tanto, utilizamos a metodologia da “História Oral” de Meihy (2005), a perspectiva desconstrutivista e noções de hos(ti)pitalidade de Derrida (2003). Os objetivos do trabalho são: a) entender a situação da diáspora haitiana nesse contexto atual; b) observar se os haitianos entrevistados se consideram incluídos no espaço amazônico em que vivem, especialmente, na sociedade portovelhense e c) compreender como se manifestam as noções de hos(ti)pitalidade na vida desses imigrantes. Para as reflexões foram entrevistados haitianos que moram em Porto Velho no período entre 2011 a 2019. Como resultado, observamos que devido a pandemia ocasionada pelo COVID-19 o público pesquisado vive incertezas sobre o futuro, no entanto, ecoam efeitos de sentido de seus dizeres de que ainda têm esperanças em conseguirem realizar seus objetivos em terras brasileiras. Apreendemos que os entrevistados, em geral, se sentem incluídos no espaço amazônico e pertencentes a esse espaço, mesmo com todas as dificuldades encontradas. Percebemos, também, que os haitianos vivem entre a hospitalidade e a hostilidade, portanto, a noção de hos(ti)pitalidade está em constante multiplicidade de sentidos no discurso dos entrevistados.

Palavras-chave: Imigração Haitiana, Diáspora Haitiana, Hos(ti)pitalidade, Lugar.

Abstract: This article aims to understand the situation of the Haitian diaspora in the brazilian context, especially, in Porto Velho – RO city. For that, we have used the metodology of “Oral History” by Meihy (2005), the deconstructive perspective and notions of hos(ti)pitalityby Derrida (2003). The objectives of this research are: a) to understand the situation of the Haitian diaspora in this current context; b) to observe if the Haitians interviewed consider themselves included in the Amazonian space in which they live, especially, in the society of Porto Velho and c) to understand how the notions of hos(ti)pitality are manifested in the immigrant's life. For the reflections, Haitians living in Porto Velho from 2011 to 2019 were interviewed. As the result, we observed that due to the pandemicof COVID-19 there searched publiclives uncertainty about the future, ho wever, echoeffects of meaning from their sayings that there is still hope of achieving their goals. We apprehend that the interviewees, in general, feelin cluded in the Amazonian space and belong to that space, despiteallthe difficulties encountered. We also realized that Haitians live between hospitality and hostility, therefore, the notion of hos(ti)pitalityis in constant multiplicity of meanings in the interviewees' discourse.

Keywords: Haitian Immigrantion, Haitian Diaspora, Hos(ti)pitality, Place.

Résumé: Cet article cherche à comprendre la situation de la diaspora haïtienne dans le contexte brésilien, plus précisément dans la ville de Porto Velho - RO. Pour cela, nous avons utilisé la méthodologie d“Histoire Orale” de Meihy (2005), la perspective déconstructiviste et les notions d'hos(ti)pitalité de Derrida (2003). Les objectifs du travail sont: a) de comprendre la situation de la diaspora haïtienne dans ce contexte actuel; b) d'observer si les haïtiens interviewés se considèrent inclus dans l'espace amazonien dans le quelils vivent, notamment dans la société de portovelhense et c) de comprendre commentles notions d'hos(ti)pitalité se manifestent dans la vie de l'immigré. Pour réflexions, les haïtiens vivant au Brésil de 2011 à 2019 on tétéinterviewés. Comme résultat, nous avons observé qu'enraison du COVID-19, le public interrogévit une incertitu de quant à l'avenir, mais fait écho aux effets de sensqu'il y a encore unes poir de réaliser ses rêves. Nous avons appris que les personnes interrogées, en général, se sentent incluses dans l'espace amazonien et appartiennent à cet espace, malgrétoutes les difficulté srencontrées. Nous avons également rendu compte que les haïtiens vivent entre l'hospitalité et l'hostilité, par conséquent, la notion d'hos(ti)pitalité est en constante multiplicité de significations dans le discours des interviewés.

Mots clés: Immigration Haïtienne, Diaspora Haïtienne, Hos(ti)hospitalité, Lieu.

INTRODUÇÃO

A imigração haitiana para o Brasil tem se destacado nos últimos anos fazendo com que estudos sobre essa diáspora tenha se evidenciado também. No entanto, a pandemia que atinge o Brasil e o mundo com alta letalidade decorrente do COVID-19 tem trazido preocupações com relação aos imigrantes que habitam o país atualmente, pois o cenário político e econômico de crise que vivemos pode contribuir para que haja maiores dificuldades para esses imigrantes.

Dessa maneira, nessa pesquisa temos como objetivos, a) entender a condição dos imigrantes haitianos nesse contexto atual; b) investigar se os colaboradores da pesquisa se sentem incluídos no espaço amazônico em que vivem, principalmente, na sociedade portovelhense e c) compreender como perpassam as noções de hos(ti)pitalidade nas suas vivências. Acreditamos, assim, que é dando voz ao haitiano que buscamos o inédito por meio do discurso, de um corpus o qual constitui-se de seis entrevistas gravadas e transcritas, no primeiro semestre do ano de 2020 de acordo com a metodologia da “História Oral” de Meihy (2005).

Os autores deste trabalho são pesquisadores que desenvolvem, no percurso acadêmico, estudos sobre o tema e atuam no incentivo à inclusão de comunidades haitianas na sociedade brasileira. Participam do grupo de extensão “Trânsitos, Fronteiras, Migração e Línguas Adicionais na Amazônia” e do GepCultura da Universidade Federal de Rondônia. Por meio do programa de extensão, primeiramente citado, ministram e orientam aulas de Português como Língua Adicional com o intuito de contribuir no processo de ensino-aprendizagem dos alunos imigrantes, priorizando o ensino da cultura e valores das duas comunidades (haitiana e brasileira), objetivando, entre outras questões abordadas, evitar a formação de estereótipos e preconceitos durante as aulas (BURGEILE; IANESKO, 2017).

Corroboramos à reflexão de que é importante ouvir o imigrante, trazer à tona as vozes dos sujeitos haitianos que são perpassadas pela constituição identitária com o intuito de buscar as formações discursivas e efeitos de sentido que ecoam de seus dizeres. Entendemos por migrante o sujeito que transita de um lugar ao outro dentro de um mesmo país. Por emigrante, compreendemos os sujeitos que se deslocam do seu país de origem para outros lugares. E, por imigrante o sujeito que está no país que não é seu de nascimento. Desse modo, pretendemos refletir sobre os relatos que o imigrante descreve sobre si mesmo e sobre sua relação com o outro.

Para tornar possível reflexões e análises sobre o discurso do público entrevistado, a proposta metodológica se respalda na “História Oral” de Meihy (2005) com roteiro de perguntas abertas com o propósito de melhor guiar a pesquisa ea perspectiva desconstrutivista de Derrida (2003) baseada na noção de hos(ti)pitalidade e différance com o suporte de obras de autores como Dardel (2011),Tuan (1986), Charles (2020) e outros que contribuam para a discussão sobre o tema em questão.

O corpus da pesquisa é constituído por seis depoimentos orais de haitianos e haitianas que migraram para o Brasil no período entre 2011 a 2019. Todos os entrevistados são membros ativos da “ASSHAPO – Associação dos Haitianos em Porto Velho”, criada em 2018, a qual tem por objetivo ajudar, acompanhar, acolher e orientar os haitianos moradores da cidade de Porto Velho (CHARLES, 2020). Três deles são estudantes da Fundação da Universidade Federal de Rondônia – UNIR de diferentes cursos de graduação. Seguindo a perspectiva da metodologia utilizada, substituímos os nomes dos colaboradores da pesquisa por nomes fictícios a fim de preservar suas identidades.

Os seis entrevistados são: Louinord (27 anos), Melchi (45 anos), Cristine (34 anos), Jannette (24 anos), Amélie (20 anos) e Johnny (30 anos). As entrevistas foram gravadas pelos entrevistados e enviadas para os pesquisadores, assim, após a finalização do levantamento do corpus, foram transcritas de acordo com as normas da NURC[4].

Para oportunizar o entendimento sobre o contexto geográfico, social, cultural em que o público pesquisado se inseria antes de emigrar para o Brasil, consideramos importante destacar, no seguinte tópico, um breve panorama histórico sobre a República do Haiti a fim de contextualizar o leitor no espaço geográfico em que a República do Haiti se localiza.

A República do Haiti: desigualdade, corrupção e miséria

A República do Haiti é um país situado no mar do Caribe, territorialmente é o terceiro maior país da região caribenha, depois de Cuba e a República Dominicana, este último faz divisão terrestre com o Haiti, o qual proclamou a sua independência contra a escravidão no dia de 01 de janeiro de 1804, tendo a maioria da sua população negra e com duas línguas oficiais: o Francês e Haitiano / Crioulo Haitiano. Na atualidade, conta aproximadamente, com uma população de 10 milhões de habitantes e ocupa uma superfície de 27.750 km². A sua capital é Porto Príncipe (Port-au-Prince em francês e Pòtoprens em haitiano). O país estende-se entre 18º 02' e 20º 06' de latitude Norte e 71º 41 e 74º 29 de longitude Oeste (CHARLES, SILVA, 2018; DORSAINVIL, 1926; SCARAMAL, 2006). Vejam a figura 01.


Figura 01
Mapa do Haiti – Datum: Sirgas 200
Fonte: GDAM2 de 2016. Charles (2020).

Conforme descrito na figura 01, hierarquicamente o país está dividido em dez (10) Departamentos, quarenta e dois (42) Distritos, cento e quarenta (140) Comunas e quinhentos e setenta e sete (577) Seções Comunais[5]. Devido a sua localização, todo ano o país é suscetível a uma série de catástrofes natural o que obriga o Estado, muitas vezes, a decretar estado de emergência nas áreas mais afetadas no decorrer das tempestades e ciclones, como por exemplo o ciclone Mathieuem 2016 causou grandes perdas à população, tais como perda de gado e de lavouras. Naquele ano, o departamento que mais sofreu foi o departamento do Sul. A situação do país se agrava a cada dia com a má gestão pública o que dificulta a vida da população, sobretudo, as pessoas mais vulneráveis que vivem principalmente da agricultura.

Na contemporaneidade, o Haiti é o país com o menor desenvolvimento econômico da região caribenha e em todo o continente americano. Tal realidade pode ser observada nos dados do Observatório de Complexidade Econômica (OEC) do Massachusetts Instituteof Technology (MIT) realizado em 2014. No ranking da economia de exportação de 220 países, o país está no 149º lugar. Esses dados mostram que a economia haitiana está baseada na agricultura, porém devido à falta de investimento nesse setor, o país não é capaz de fazer grande exportação e o que se cultiva é voltado para a subsistência familiar. A agricultura representa aproximadamente 25% do PIB; e suas principais produções para exportação são cacau, manga, banana e café e seus principais produtos de importação são: arroz e outros grãos (MOTTA, 2016).

Além das considerações feitas por Motta (2016) sobre as dificuldades encontradas no setor econômico, identificamos também a corrupção e a desigualdade como outros fatores que podem contribuir para a miséria em que vive a população. Conforme MEF & ULCC (2009), a pobreza vem aumentando porque o Estado não investe nas infraestruturas do país. As estradas do país, na sua maioria, são precárias, resultante disso deixou o sistema de transporte terrestre haitiano lento e difícil, no setor de energia também apresenta grandes problemas e não há energia suficiente para atender a necessidade da população.

Tanto as desigualdades como a corrupção são vistas como aspectos negativos da sociedade haitiana e estão presentes em vários âmbitos de maneira notável; aqui trataremos a desigualdade apenas na educação e no trabalho. Primeiramente, nos referimos a desigualdade no sistema educativo haitiano. Segundo Charles, Silva (2018) falar da educação no Haiti é discutir questões sobre classes sociais, isto é, o acesso a um ensino de qualidade remete à condição econômica do indivíduo. No trabalho, a desigualdade se manifesta da seguinte maneira: ter um emprego bom em muitas ocasiões não é questão de competência, mas sim de indicação. Dizendo de outro modo, para conseguir um cargo de grande relevância, a pessoa precisa, muitas vezes, de um contato que a indique, o que aumenta desigualdade, pois ter um bom currículo não garante condições de ter um bom trabalho. Com essa estrutura social, é sempre o mesmo grupo que dirige todos os aspectos no país.

Assim, a situação social, política e econômica do país pode ser considerada como aquele em que a sociedade não tem acesso a uma educação igualitária, onde o acesso a trabalho como meio de subsistência é reservado somente a um grupo de elite e os próprios governantes trabalham a falência do seu país, o que dificulta a melhoria da vida da população. Os haitianos, diante de tais situações fazem manifestações, outros imigram para o exterior a procura de melhores condições de vida como caminho de superação, outros ainda, depois de ter viajado, planejam retornar ao Haiti enquanto outros não desejam voltar.

A luz dessas concepções contextualizadas, apresentamos, no seguinte tópico, a noção de hos(ti)pitalidade, différance e a diáspora haitiana no espaço amazônico, principalmente na cidade de Porto Velho.

A noção de hos(ti)pitalidade, différance e a diáspora haitiana no espaço amazônico

Para compreendermos a posição que o haitiano se vê nesse contexto atual em que o Brasil se encontra, consideramos pertinente desenvolvermos uma reflexão acerca da noção de hospitalidade e hostilidade de Derrida (2003), pois o movimento de mudança que o haitiano realiza ao imigrar para o Brasil, causa efeitos na sua subjetividade. Sendo assim, quando o haitiano se percebe em outro lugar geograficamente, ele se ressignifica e é em busca dessa ressignificação no espaço amazônico que refletimos sobre a noção de hos(ti)pitalidade.

A noção de hos(ti)pitalidade tem uma constituição ambivalente, a qual Derrida (2003) pretende fazer uma reflexão e uma junção tanto dos sentidos das palavras “hospitalidade” como “hostilidade” para demonstrar que há, constantemente, uma possibilidade de conflito entre o hospedeiro e o hóspede, no caso, o Haitiano e a sociedade brasileira.

A noção de hospitalidade acompanha a preocupação em aproximar o conceito ao desconstrutivismo no sentido de que “em sua definição derridiana, remete a um trabalho do pensamento inconsciente (isso se desconstrói), e que consiste em desfazer, sem nunca destruir, um sistema de pensamento hegemônico e dominante” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 9). Essa noção é, portanto, um descentramento, uma desestabilização do logocentrismo e de (pré)conceitos que se baseiam no etnocentrismo e que consideramos importante para refletirmos sobre os dizeres dos sujeitos haitianos.

Para Derrida (2006), hos(ti)pitalidade é um dos neologismos os quais ele faz referência como “indecidíveis” com o objetivo de representar o sentido da desconstrução. Assim, com relação à noção de hos(ti)pitalidade, Derrida (2003) reflete sobre a palavra “hostis”, a qual, tem o sentido de “hóspede” na língua latina, no entanto, pode significar “hostil”, “inimigo”. “Hos(ti)pitalidade”, portanto, é como uma junção dos termos “hostilidade” e ‘hospitalidade” tendo como foco refletir sobre a ambiguidade do movimento entre o sujeito que chega no novo país e aquele que o recebe.

Para Derrida (2003),

O estrangeiro é, antes de tudo, estranho à língua do direito na qual está formulado o dever de hospitalidade, o direito ao asilo, seus limites, suas normas, sua polícia, etc. Ele deve pedir a hospitalidade numa língua que, por definição não é a sua, aquela imposta pelo dono da casa, o hospedeiro, o rei, o senhor, o poder, a nação, o Estado, o pai, etc. estes lhe impõem a tradução em sua própria língua, e esta é a primeira violência. A questão da hospitalidade começa aqui: devemos pedir ao estrangeiro que nos compreenda, que fale nossa língua, em todos os sentidos do termo, em todas as extensões possíveis, antes e a fim de poder acolhê-los entre nós (DERRIDA, 2003, p. 15).

É nesse sentido que pensamos no haitiano como aquele que está em busca do seu lugar geográfico, político, social, linguístico, que ressignifica a cada dia para se adaptar à nova casa e que em meio às hostilidades ou dificuldades, busca uma forma de hospitalidade para que possa se sentir pertencente e acolhido.

Na tentativa de desconstrução da filosofia binária, Derrida (2003) elabora outro “indecidível”, a noção de différance, para “exibir uma multiplicidade de sentidos que não se excluem, mas se superpõem” (CORACINI, 2007, p. 53). Para o autor, différance está na ordem do indecidível no que diz respeito à escrita da palavra “diferença”. Essa palavra é um termo que aparece grafado como “différance” em alguns textos filosóficos, o que seria uma forma diferente de escrita da palavra “différence”. Assim, a troca da letra “a” pela letra “e” objetiva mostrar como o significado pode se alterar na linguagem, enaltecendo a ausência da possibilidade de sentidos e significados absolutos. Essa mudança, no entanto, só se dá no aspecto de significado e escrita, visto que sua pronúncia continua a mesma, enaltecendo as sutilezas das diferenças de significado. O autor pretende mostrar também que uma escrita puramente fonética não existe, ela se refere à possibilidade de estender os sentidos de uma palavra, a qual carrega a ideia da multiplicidade, de não rigidez, de incompletude.

A palavra “différance” tem origem no termo latino difere, com o conceito de “adiar, “atrasar”, “procrastinar”, diferente do conceito usualmente utilizado de “divergir” e “discordar”. Dessa maneira, o termo differe (diferir) traria o sentido de que qualquer termo teria seu significado mudado dependendo do momento histórico em que é pronunciado, tendo uma alteridade, possibilitando “pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie de limites: quer se trate de limites culturais, nacionais linguísticos ou mesmo humanos” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 33).

No entanto, o próprio Derrida relata a dificuldade em descrever o conceito de différance:

Tocamos aqui o ponto da maior obscuridade, o próprio enigma da différance, aquilo que justamente lhe divide o conceito por meio de uma estranha partilha. Não é necessário que nos apressemos em decidir. Como pensar simultaneamente a différance como desvio econômico que, no elemento mesmo, visa sempre reencontrar o prazer ou a presença diferida por cálculo (consciente ou inconsciente) e, por outro lado, a différance como relação com a presença impossível, como dispêndio sem reserva, como perda irreparável da presença, usura irreversível de energia, mesmo como pulsão de morte e relação com o inteiramente - outro que, na aparência, interrompe toda e qualquer economia? (DERRIDA, 1991, p. 52)

Dito de outra maneira, um significado sempre será sobreposto ao outro, o qual se mantém adiado por outro. Assim, um significado nunca está completo em si mesmo. Na esteira desse pensamento, entendemos que não existem textos ou dizeres com sentidos absolutos, sempre há possibilidades para novas interpretações, novas perspectivas, o sentido nunca está fechado.

É nesse sentido que procuramos ouvir os haitianos residentes na cidade de Porto Velho, por meio de entrevistas a fim de compreender como vive o haitiano na diáspora em terra estrangeira. E para isso, utilizamos a noção de História Oral “[...] como forma de captação de experiências de pessoas dispostas a falar sobre aspectos de sua vida – quanto mais elas contarem a seu modo, mais eficiente será seu depoimento” (MEIHY, 2005, p. 57). Neste trabalho é também discutido o conceito de diáspora com o intuito de um melhor entendimento sobre a imigração haitiana em Porto Velho.

O termo diáspora é bastante discutido por autores como Handerson (2015), Jordão (2017) e Charles (2020) ao se referirem à imigração haitiana, tanto no Brasil como em outros países onde residem os haitianos. A diáspora haitiana carrega consigo muitos sonhos os quais nem sempre são concretizados no Haiti por falta de condições financeiras, o que os obriga a imigrar para outros países. Para esses autores, o haitiano ou a haitiana que deixa seu país de origem por vontade própria em busca da realização de seus sonhos vivencia uma diáspora. Portanto, diáspora pode ser utilizada como substantivo e como também adjetivo.

Nessa perspectiva, partimos para o próximo tópico no qual faremos a análise sobre os entremeios do discurso por meio da linguagem e do depoimento/história do sujeito haitiano, objetivando compreender como a busca pelo seu lugar social influencia nas vivências e concepções ocasionadas pela diáspora em um processo constante de ressignificação, considerando os haitianos entrevistados moradores da cidade de Porto Velho.

Análise do corpus

Selecionamos, para compor o corpus da pesquisa, seis entrevistas com haitianos que são membros ativos da “ASSHAPO – Associação dos Haitianos em Porto Velho”. Essas entrevistas foram realizadas no primeiro semestre de 2020. Iniciaremos as análises apresentando a fala do haitiano que realizou a primeira entrevista, a ele foi dado o nome fictício de Louinord. Na entrevista, ele relata aos pesquisadores como reagiu ao enfrentar o preconceito no Brasil.

Louinord: aqui já sofri o racismo... mas isso não me abala porque o racismo não é só aqui….é mundial cada lugar reage de uma forma… apesar de tudo me sinto feliz procuro viver a vida sem reclamar… eu sou feliz hoje para dar este depoimento a respeito da minha pessoa. (Entrevistado)

O entrevistado Louinord afirma que sofreu racismo ao chegar ao Brasil, no entanto, em seguida na sua fala, afirma que esse preconceito enfrentado não o abalou e a razão para isso se dá por dois motivos: o primeiro se refere à razão de que o racismo existe, segundo ele, em outros lugares e não só no Brasil e o outro motivo se dá pela maneira que decidiu viver sua vida: “sem reclamar”.

Podemos perceber que, ao negar os aspectos negativos que esse preconceito traz para a sua vida, Louinord afirma que: “apesar de tudo me sinto feliz”. Nesse excerto, observamos sentidos de uma tentativa de enfatizar, no discurso, a capacidade de não se abalar e de viver feliz, embora haja circunstâncias desagradáveis relacionadas ao preconceito racial durante a sua estadia no Brasil. Ao enunciar que “o racismo não existe só aqui”, Louinord procura diminuir a importância desse ato na sua vida. Talvez, a expressão “apesar de tudo” seja interpelada pela ideologia de se sentir inferiorizado por ser imigrante traz no interdiscurso lembranças de situações anteriores vividas que foram similares às situações relatadas aos pesquisadores e podem voltar a acontecer, não restando, portanto, melhor alternativa ao haitiano a não ser desconsiderar atitudes que visam diminuir o outro.

Fazemos uma analogia à obra “Isto não é um cachimbo” de Foucault (1988), a qual faz referência à uma das obras de Magritte, a qual foi feita entre 1928 e 1929. Em um dos quadros da série “Traição das imagens” o pintor sugere que a poesia poderia ser comparada a um cachimbo, já que representa aquilo que gostaríamos de expressar por meio de pinturas, por exemplo. Dito de outra maneira, a pintura não seria o objeto, mas apenas uma representação dele. Essa obra, portanto, pode ser utilizada para fazer reflexão a representação que o haitiano tem na sociedade. Nessa perspectiva, refletimos que, quando Louinord se vê representado como alguém que, preferencialmente, não precisa se abalar ao sofrer racismo, pois “o racismo não existe só aqui”, nos possibilita entender que essa expressão traz efeitos de sentido de que haverão outros momentos em que o entrevistado sofrerá preconceito pela sua cor, portanto, para que essas atitudes não o influenciem de maneira negativa, a melhor opção é não reclamar e tentar viver feliz, sendo uma maneira de expressão sua luta e superação.

Com relação ao quadro de Velasques ,“As meninas”, Foucault (2007) afirma que, ao observarmos a obra, não é possível saber, por exemplo, se Velasques está iniciando ou finalizando a pintura, se a moldura com o casal na parede representa uma foto ou a imagem projetada em um espelho, se a pessoa na escada está se retirando ou entrando na cena. Com isso, Foucault (2007) pretende incitar a dúvida, uma vez que não é possível extrair uma verdade pura e absoluta. Nas relações humanas, assim como na arte, a representação é duvidosa, pois não significa que haja uma única interpretação, mas, sim, abre espaço para diferentes olhares.

Corroborando às reflexões de Foucault (2007) sobre o quadro de Velasques, acreditamos ser possível instaurar a dúvida perante os discursos, pois são versões de uma mesma história, com suas verdades absolutas construídas a partir de uma relação de poder e de uma verdade pautada em interesses ou sentimentos diversos.

Segundo Coracini (2007, p. 50), a questão da identidade é vista como uma forma de pertencimento. O sentimento de pertença estaria ligado “a um grupo, a uma nação, a uma etnia, a uma religião, enfim, pertença à língua e da língua, pertença sempre marcada pela e na historicidade, inscrição do sujeito que se faz no espaço e no tempo, admitida, permitida ou coibida pelo outro”. Dessa maneira, do discurso de Louinord ecoam efeitos de sentido de receio sobre as consequências de exprimir suas opiniões ou sentimentos pelo racismo enfrentado, mesmo um dos pesquisadores desta presente pesquisa sendo também haitiano, ou seja, fazendo parte do mesmo grupo, nação e língua originária de comunicação.

Assim, na tentativa de traduzir seus sentimentos como uma “normalidade” ao enfrentamento do racismo no Brasil, o entrevistado tem a ilusão de que as palavras evocam apenas um sentido, entretanto, é na relação com as outras palavras e com o contexto que elas significam. Com relação à noção do indecidível da différance de Derrida (2003), os significados da palavra “tudo” na frase de Louinard: “apesar de tudo” são adiados, postergados para significações sem fim.

Nesse viés, Louinord pode se ver como um estrangeiro de si mesmo, na concepção de Kristeva (1994), e, frente às mudanças de sua vida, não se reconhece mais, pois o distanciamento da raiz, do país de origem e da sua cultura parece deslizar para o efeito de sentido de que ser diferente e/ou estrangeiro não seja algo bem-vindo, bem-aceito, por isso, precisa aceitar o racismo para que possa viver bem. A estranheza ao estrangeiro/imigrante e ao que é diferente nos permite refletir que o deslizamento, no dizer de Louinord, gera efeitos de sentido de desejo de se incluir na terra em que o recebeu, camuflando, ainda que de forma ilusória, seu lugar de imigrante, de excluído e de diferente, ele não trata o racismo com violência, a condição de racismo, visto que, para ele, o racismo não existe só aqui.

Efeitos de sentido que emergiram nessa sequência contêm, de certa maneira, um paradoxo. A constituição de sujeito individual e coletivo de Louinord se dá, por um lado, pela representação feita a partir do olhar racista do outro. Por outro lado, precisa também da alteridade vivenciada diariamente com o outro para perceber a sua existência na constituição das diferenças.

Com relação ao entrevistado Johnny, podemos destacar a seguinte fala:

Não pretendo voltar ao meu país para ficar... posso voltar somente para visitar as pessoas... aqui tenho um bom futuro tenho meu emprego fiz faculdade tenho a naturalidade brasileira... enfim agora posso dizer que me considero em casa. (Entrevistado)

Nesse trecho, ecoam sentidos de que o sujeito haitiano tenha vivido uma experiência de desenraizamento de seu país de origem, marcadas por três fatores destacados por Johnny sendo eles: ter um emprego, fazer faculdade e ter nacionalidade brasileira.

A situação de fluxo migratório como do Haiti para o Brasil traz a questão de hibridação cultural, à qual Canclini(2011) se refere como um rompimento das barreiras entre o tradicional e o moderno, que está presente no cotidiano moderno. Já a desterritorialização, fato que ocorre com o fluxo migratório, se refere a perda da relação natural da cultura em consonância como s territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certa relocalização territorial (CANCLINI,2011,p.309), como ocorre com os haitianos, pois é preciso romper uma barreira cultural, territorial e relocalizar no novo espaço que é o Brasil.

A questão da identidade haitiana é vista como individual, pois o lugar de nascimento é um item constitutivo de sua identidade, é o considerar o lugar de sua residência, de seu pertencimento. No entanto, esse efeito de se sentir pertencente ao Brasil pode florescer um processo de estranhamento que, por um lado, é positivo, redefine-se com o novo lar, um recomeçar. Por outro lado, há um efeito de sentido relacionado ao caos, à dor, ao medo do novo, a um desprender, sair das raízes.

Em seguida, apresentamos a fala de Amélie:

Amélie: Desde a minha chegada ao Brasil eu não vivencio ainda o racismo mas tenho uma prima que sofreu do racismo… ela relatou na escola que estudava… houve um debate na sala de aula quando deu a sua opinião sobre o assunto uma moça brasileira que não compartilhava a mesma opinião que ela a tratou de negra e dizendo por ser negra não tem conhecimento de debater o assunto com propriedade… minha prima não gostou a atitude da brasileira que deixa de entender que os negros são limitados em conhecimento. (Entrevistada)

Refletimos que essa forma de exclusão dupla, de preconceito e de “não ter voz” pela cor da pele e pela consideração de inferioridade intelectual reforça o conceito de binarismo fortemente atacado por autores desconstrutivistas como Derrida (2005), como, por exemplo, homem/mulher, certo/errado, poder/não poder, cristão/não cristão.

O dia 13 de maio de 1888 é representado como o marco do fim da escravidão no Brasil, no entanto, ao considerarmos à fala da entrevistada Amélie, podemos refletir que o relato retrata que existe, ainda, uma cultura de desvalorizar outras pessoas pela sua cor e essa forma de desrespeito está presente em nossa sociedade e fortemente arraigada às concepções de verdade baseadas na desvalorização ao próximo quando o outro é de cor preta, por isso da importância de dar voz às pessoas que sofrem preconceitos como esse.

Nesse sentido, mesmo depois demais de um século em que foi assinada pela princesa Isabel a lei que deveria mudar a vida dos afrodescendentes no Brasil, sabe-se que os efeitos de discriminação ainda persistem. A abolição da escravidão no Haiti, diferentemente da abolição no Brasil reflete uma história de luta em que os escravizados e escravizadas da República do Haiti foram vitoriosos. No entanto, quando Amélie se percebe pela visão do outro, ou melhor, quando descreve a maneira que sua prima sofreu discriminação, observamos que emerge do discurso efeitos de sentido de um processo de identificação inconsciente de um interdiscurso que afirma que “os negros são limitados em conhecimento”.

Consideramos importante destacar que no início do século XIX, Toussaint Louverture – líder do início da revolução haitiana (1791) foi peça fundamental para que a luta culminasse com a Independência haitiana e com a abolição da escravidão do país, Toussaint se auto proclama representante de seu país e afirma, na Constituição de Louverture de1801:“Slaves a reno longer permittedinthis territory. Slaveryis forever abolished. All men bornin this country live and dieas free and French men"[6](LORELLE,2017). Assim, entendemos que a República do Haiti possui uma constituição identitária perpassada por uma historicidade baseada em muitas lutas e revoluções.

Observamos, no dizer da entrevistada, que surgem efeitos de subjetividade em seu discurso e o fato de que sua prima sofreu discriminação quando os colegas da turma fazem uma comparação como se o negro fosse limitado em conhecimento, nesse relato o humilhado é aquele que é atacado em sua interioridade e ferido, para tanto, fatos como esse podem representar como é viver constantemente em busca de respeito e valorização em contextos sociais que há racismo. Existem práticas sociais que possibilitam marginalização e repressão de negros pelo preconceito com a cor da pele ou outras maneiras de exclusão por conta de um poder repressor, controlador e normalizador.

A expansão hegemônica do Ocidente trouxe para o território americano uma concentração imensurável de recursos nas mãos de uma minoria branca, o que ocasionou adominação cultural, social dos europeus sobre os povos conquistados, movimento conhecido, de forma resumida, com o colonialismo (MIGNOLO, 2003). Por conseguinte, essa estrutura de poder produziu também diversas formas de discriminações, como o racismo, a qual Amélie se refere.

A quarta entrevista nos ajuda a compreender a diáspora haitiana no espaço rondoniense:

Melchi: Muitas pessoas que nunca tinham em mente de deixar seu país vêem a diáspora como uma porta de saída para si e para sua família... para mim vejo a diáspora apesar de suas complicações como uma forma de resistência e de superação para os haitianos. (Entrevistado)

A fala do Melchi corrobora à Handerson (2015), Jordan (2017) e Charles (2020), pois de seu dizer ecoam efeitos de sentido de que a diáspora haitiana pode ser considerada como um meio de sobrevivência e de realização. Ao sair do seu país, o imigrante haitiano traça seus objetivos, porém os caminhos a percorrer a fim de alcançá-los e criar seu lugar na sociedade de acolhida apresentam complicações. O processo da diáspora implica a aprender algo novo, viver com o diferente “outro”, pessoas com diferentes concepções culturais, histórias, etc. Nessa nova realidade, quem chega ao novo país enfrenta dificuldades para se adaptar, no entanto, o haitiano mostra ser capaz de resistir e superar as barreiras ou/e conflitos internos que possam encontrar.

A partir dessa abordagem do lugar da diáspora haitiana na Pan-Amazônia as contribuições de Massey (2000) nos esclarece que “O lugar é absolutamente não estático, mas sim conceituados a partir das interações sociais que agrupam. Os lugares não têm fronteira, no sentido de divisões demarcatórias. Os lugares não têm identidades únicas ou singulares, eles estão cheios de conflitos internos” (MASSEY, 2000, p. 184). A luz dessa perspectiva, compreendemos que o lugar na sua dinamicidade não pode ser entendido com algo fixo, é resultado de relações sociais.

Para tanto, é por meio das relações sociais entre si e os brasileiros que o haitiano constrói o seu lugar na diáspora. É na abertura para o novo que ele supera as dificuldades apresentadas durante este processo de (re)construção do seu lugar. Para isso, é importante a determinação e atitude positiva em busca da concretização do objetivo que um dia os levou a sair da sua terra natal deixando famílias, amigos e tudo que dá sentido a sua vida como indivíduo.

A quinta entrevista é concedida pela Cristina, haitiana que nos explica a sua situação no Brasil:

Cristine: Meus filhos estão estudando não sei se o sonho deles é viver definitivamente no Brasil, mas eu quero ficar aqui... porque aqui me sinto bem... Depois do falecimento do meu marido recebo sempre o apoio da comunidade haitiana isso me faz entender que não estou sozinha... é muito bom ter apoio dos demais assim a gente se sente bem melhor e mais forte para superar as dificuldades do quotidiano. (Entrevistada)

O que nos chama atenção da fala da Cristine é quando diz: “eu quero ficar aqui...porque aqui me sinto bem”. Tal afirmação se referindo ao lugar é importante na medida em que entendemos o lugar não somente como algo estático, mas sim como vivência, relação com os demais, acolhida e paz, pois o “sentido de lugar implica o sentido vida” (OLIVEIRA, 2014, p. 3). É onde os indivíduos convivem entre si, mesmo que possam sofrer complicações no modo de se relacionarem, pois usam os conflitos e as suas diferenças para o bem viver de todos.

Outro aspecto que merece ser destacado na fala da Cristine é o apoio recebido da comunidade haitiana. Ela demonstra ser gratapela ajuda recebida das pessoas e também reforça a importância de nos ajudarmos uns a outros. O geógrafo Yi-Fu Tuan (1986) na sua obra “The Good Life” apresenta a importância de nos colocarmos à disposição de ajudar quem precisa. Acreditamos, que seja uma atitude humana que todos e todas deveriam valorizar no seu sentido pleno, isto é, ser capaz de reconhecer o dever de fazer bem ao outro independentemente da sua origem, sua cor, sua orientação sexual, e assim por diante. Quando as pessoas se sentem bem onde vivem, criam um vínculo forte e estreito entre as pessoas a tal ponto de se sentirem construtores do seu lugar e da sua vida. O lugar dá sentido às vivências humanas, “é onde a vida acontece, é o locus do convívio social” (SILVA 2015, p. 243).

A última entrevista desta pesquisa, a respeito da diáspora haitiana em Porto Velho, é dada por Jannette, que nos explicou sobre a sua situação econômica, emocional e afetiva. Assim nos diz:

Janette: Meu desejo é ter um emprego para financiar meus estudos, pagar minhas despesas e ajudar a minha família que lá ficou...Sinto muita saudade da minha família. Quero visitá-la daqui um ano. Aqui me sinto bem no sentido que é mais fácil de realizar meus planos que no Haiti (Entrevistada)

No relato da Jannette, assim como nos demais, observamos um ponto comum que se refere à importância de ter emprego para responder as suas necessidades econômicas e para poder ajudar suas famílias que estão no Haiti. Consideramos importante retomar que o termo “diáspora” tem o papel de substantivo e também adjetivo. Nesse sentido, por substantivo entendemos o haitiano e a haitiana que migram por escolha própria e a diáspora no sentido de adjetivo se refere aos bens que a ela constrói no seu país de origem com o dinheiro conquistado no país do exterior. No discurso de Jannette ao falar da sua vontade de ajudar a sua família representa os bens que foram comprados com dinheiro dela. Aí o uso da palavra diáspora “como adjetivo para qualificar objetos, dinheiro, casas e ações” (HANDERSON, 2015, p. 25).

O outro aspecto que merece ser discutido é a saudade que Jeannette sente da sua família que se encontra distante do Brasil, país onde ela se reside atualmente. Ao deixar as pessoas queridas para mudar de país, isso não representa um abandono, pois a família continua presentes na memória, o sentimento afetivo acompanha independentemente do lugar, da distância e do tempo. Sobre a noção da distância o geógrafo francês Eric Dardel na sua obra intitulada “O Homem e a Terra: Natureza da Realidade Geográfica” (2011) faz a distinção entre os conceitos de distância geométrica e geográfica.

De acordo com o autor;

A distância é experimentada não como uma quantidade, mas como uma qualidade expressa em termos de perto ou longe. [...] o afastamento não depende diretamente da distância efetiva; tal localidade situada a três quilômetros é, de fato, mais afastada, num pendente elevado na montanha, que outra situada a cinco quilômetros, mas no vale. [...] o afastamento real, o que é geograficamente válido, depende dos obstáculos a serem vencidos, do grau de facilidade que um homem coloca um lugar ao seu alcance. (DARDEL, 2011, p. 10)

Fazendo referência à reflexão feita por Dardel, podemos empreender que da fala de Jannette ecoam efeitos de sentido de que apesar da distância entre os dois países ela consegue superar a saudade planejando visitar a sua família, pois enquanto não houver condições financeiras para que isso ocorra, a consideração por sua família não diminui, pois com a ajuda sda tecnologia (redes sociais, e-mail, celular) cone segue comunicar, dialogar e se sentir na companhia do seu entes queridos e distantes fisicamente.

A diáspora haitiana, no espaço rondoniense, procura o seu lugar na sociedade brasileira, pois consideramos que o lugar em sua concepção social é “como lugar da base da reprodução da vida, é o mundo do vivido, onde se produz a existência social dos seres humanos” (SILVA, 2015, p. 244). Nesta perspectiva, entendemos que o lugar é um ponto chave da convivência humana. O lugar enquanto frutos de relações sociais, onde as pessoas desenvolvam vínculos que dão sentido a sua vida pode ser visto e entendido como elemento importante da existência humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Escutar, dar voz o haitiano imigrante nesse contexto nos aproxima de uma reflexão sobre uma nova dêixis, outra forma de recepcionar a fala, pela materialidade da oralidade, pensando na condição do sujeito haitiano como aquele que está atravessando as fronteiras da sua historicidade, no movimento constante do deixar de ser e do se tornar, aceitando e rejeitando identificações, se conhecendo e sendo representado.

O sujeito haitiano deseja mostrar a sua existência, ser respeitado, ser visto como igual, sendo no ambiente profissional, acadêmico ou mesmo pessoal, ser considerado como aquele que traz uma bagagem de outras experiências e que, como qualquer outro sujeito, está em constante transformação, interpelado e assujeitado, em busca do seu lugar e um espaço onde possa ter, finalmente, melhores condições de vida.

Esta pesquisa nos possibilita uma melhor compreensão a respeito dos haitianos no espaço rondoniense, as dificuldades enfrentadas, e os desejos de viver uma vida sonhada. Mesmo estando longe da sua terra natal, mantém contato com sua família, participando na sua vida econômica, afetiva e/ou emocional. Para eles, a solidariedade é um dos aspectos que o ser humano precisa praticar cada vez mais, porque faz parte do nosso ser enquanto humano.

Para refletirmos sobre os discursos dos entrevistados que vivem a diáspora na busca por um lugar geográfico que possa chamar de casa, procuramos oportunizar ao sujeito haitiano esse espaço de dizer, o qual possibilitou um olhar multifacetado sobre ele, uma disseminação de novos sentidos, que possa abrir caminho para a alteridade e estranhamento do outro, o que é inerente à constituição identitária e de subjetividade do sujeito haitiano.

Com o resultado da pesquisa, num primeiro momento, podemos refletir que a situação em que se encontram os entrevistados no contexto atual é de incertezas devido a crise em que o Brasil vive, o que tem agravado as condições de sobrevivência com a pandemia ocasionada pelo COVID-19, no entanto, ecoam dos seus dizeres efeitos de sentido de que ainda há esperança de conseguirem realizar seus sonhos.

Num segundo momento, observamos que os entrevistados (as), em geral, se sentem incluídos (as) no espaço amazônico, sentem, por vezes, que o lugar em que estão representa a sua casa, se sentem pertencentes a esse espaço, mesmo com todas as dificuldades encontradas e a saudade do país de origem.

E por último, acreditamos que os entrevistados (as) vivem entre a hospitalidade e a hostilidade, pois, por momentos sentem que a população brasileira os acolhe e por outros sentem o preconceito e a hostilidade que a forma de tratamento de algumas pessoas proporciona, assim, a noção de hos(ti)pitalidade está em constante multiplicidade de sentidos no discurso dos entrevistados (as).

Desse modo, estudar o haitiano imigrante nesse contexto nos aproxima de uma reflexão sobre a situação do haitiano como aquele que está atravessando as fronteiras da sua historicidade, no movimento constante do deixar de ser e do se tornar, se conhecendo e ressignificando.

A imigração haitiana é um campo vasto que os pesquisadores e pesquisadoras podem mergulhar suas investigações em diferentes áreas do conhecimento, a fim de trazer à luz para a academia e a sociedade em geral um pouco da realidade vivida no Brasil e as especificidades desse povo caribenho que hoje vive na sociedade brasileira.

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Notas

[4] NURC (Normas Urbanas Linguísticas Cultas) é um projeto que tem como objetivo documentar a norma falada culta de cinco capitais brasileiras. É um projeto de referência nacional, descrito por Preti (1999).
[5] Atlas agrigoled’Haïti. Ministère de l’Agriculture des RessourcesNaturelles et du Développement Rural – MARNDR, 2009. Disponível em: http://agriculture.gouv.ht/statistiques_agricoles/Atlas/thematique_generale.html.Acesso em 21 de junho de 2020.
[6] “Escravos não são mais permitidos nesse território. A escravidão está para sempre abolida. Todos os homens nascidos nesse país vivem e morrem como homens franceses e livres” (LORELLE, 2017). Tradução nossa.

Autor notes

[1] Mestre em Geografia pela Fundação Universidade de Rondônia – UNIR, foi bolsista pela CAPES no mestrado (2020). Possui Licenciatura plena em Filosofia pela Faculdade Católica de Rondônia – FCR. Coordenador e professor do CUPIH: Curso de Português para Imigrantes Haitianos (as) em Porto Velho. Email: charlotcj03@gmail.com
[2] Doutora em Letras/Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS. Professora do Departamento de Letras da Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Integrante do Grupo de Estudos Linguísticos, Literários e Socioculturais - GELLSO. Email: re.ianesko@gmail.com
[3] Pós Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Londrina. Doutor e Mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo - USP. Professor titular do Departamento de Geografia da Fundação Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Coordenador do GepCultura - Grupo de Estudos e Pesquisas Modos de Vidas e Culturas Amazônicas. Email: jcosta1709@gmail.com


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