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Violações encobertas: as múltiplas faces da violência contra as mulheres camponesas. Município de Santa Luzia D’Oeste-RO
Covert violations: the multiple faces of violence against peasant women. Municipality of Santa Luzia D’Oeste-RO
Violaciones encubiertas: las múltiples caras de la violencia contra la mujer campesina. Municipio de Santa Luzia D’Oeste-RO
Revista Presença Geográfica, vol.. 07, núm. Esp.02, 2020
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Artigos

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 07, núm. Esp.02, 2020

Recepção: 09 Agosto 2020

Aprovação: 26 Setembro 2020

Resumo: A violência contra as mulheres brasileiras atinge inegavelmente moradoras das zonas rural e urbana. Essa premissa, aliada à constatação da ausência de estudos sobre a violência de gênero no contexto do campo em Rondônia, mobilizou o objetivo principal deste estudo: identificar as violências que atingem mulheres que moram na zona rural do município de Santa Luzia D’Oeste, bem como as políticas públicas existentes que contribuem para o enfrentamento dessas violações. Para o desenvolvimento do artigo utilizou-se do método de estudo qualitativo, cujos dados foram obtidos por meio da pesquisa documental em Registro de Boletim de Ocorrência policial e a pesquisa narrativa relatada por duas colaboradoras que atuam diretamente no trabalho com mulheres camponesas do município de Santa Luzia D’Oeste. O estudo apurou que as mulheres camponesas do município sofrem múltiplas violências: padecem de ameaças, espancamentos, xingamentos, humilhações, desvalorização de seu trabalho na propriedade, não acesso a financiamentos públicos, abusos sexuais e a violência letal – o feminicídio. Levantamos que a principal política pública que impulsiona ações para o combate à violência de gênero é a aplicação da Lei nº 11.340/2006, no entanto, para acessar esse serviço é necessário o deslocamento até a cidade.

Palavras-chave: Violência contra a mulher, Zona rural, Santa Luzia, D’Oeste.

Abstract: Violence against Brazilian women undeniably affects rural and urban areas. This premise, coupled with the finding of the absence of studies on gender violence in the context of the countryside in Rondônia, mobilized the main objective of this study: to identify the violence that affects women living in the rural area of ​​the municipality of Santa Luzia D'Oeste, as well as well as the existing public policies that contribute to tackling these violations. For the development of the article, we used the qualitative study method, whose data were obtained through documentary research in Police Report Bulletin Record and the narrative research reported by two collaborators who work directly in the work with peasant women in the municipality of Santa Luzia D'Oeste. The study found that peasant women in the municipality suffer multiple violence: they suffer from threats, beatings, cursing, humiliation, devaluation of their work on the property, lack of access to public funds, sexual abuse and lethal violence - feminicide. We believe that the main public policy that drives actions to combat gender-based violence is the application of Law No. 11.340 / 2006, however, to access this service, it is necessary to travel to the city.

Keywords: Violence Against women, Countryside, Santa Luzia, D’Oeste.

Abstract: Es innegable que la violencia contra las mujeres brasileñas afecta a los habitantes de las zonas rurales y urbanas. Esta premisa, combinada con la constatación de la ausencia de estudios sobre la violencia de género en el contexto del campo en Rondonia, movilizó el objetivo principal de este estudio: identificar la violencia que afecta a las mujeres que viven en el área rural del municipio de Santa Luzia D'Oeste, así como las políticas públicas existentes que contribuyen al enfrentamiento de estas violaciones. Para el desarrollo del artículo, se utilizó el método de estudio cualitativo, cuyos datos fueron obtenidos a través de la investigación documental en el informe policial y la investigación narrativa reportada por dos colaboradores que trabajan directamente con las mujeres campesinas en el municipio de Santa Luzia D'Oeste. El estudio constató que las campesinas del municipio sufren múltiples formas de violencia: sufren amenazas, golpes, maldiciones, humillaciones, desvalorización de su trabajo en la finca, no tienen acceso a la financiación pública, abusos sexuales y violencia letal: el feminicidio. Encontramos que la principal política pública que promueve acciones para combatir la violencia de género es la aplicación de la Ley 11.340/2006; sin embargo, para acceder a este servicio es necesario desplazarse a la ciudad.

Keywords: Violence Against women, Countryside, Santa Luzia, D’Oeste.

Palabras clave: Violencia contra las mujeres, Área rural, Santa Luzia, D'Oeste

INTRODUÇÃO

Para compreender o fenômeno da violência contra as mulheres, é necessário reconhecer a dinâmica dos papéis histórico-sociais construídos nas culturas de gênero. Ao homem tradicionalmente tem sido atribuída a função social de prover a casa e a família, atuando no espaço público, isto é, no mercado e na política. A mulher ficou limitada ao espaço doméstico, cabia-lhe a função social de reprodução e cuidado, em um espaço privado. Essa diferenciação de papéis, poderes e direitos entre homens e mulheres determina situações de extrema desigualdade social, que começa na vida privada e se manifesta em todas as esferas, levando as mulheres à vulnerabilidade social (COSTA; LOPES; SOARES,2015).

Estudos sobre a relação mulher e campesinato apontam que a grande imigração europeia, que chegou ao Brasil no final do século XIX, era basicamente camponesa. Como o alicerce do campesinato é o trabalho familiar, a perpetuação da base dessa estrutura se materializa no casamento, que passa a ser um acontecimento de extrema importância, uma vez que não produz apenas uma nova família, mas, nesse sentido, resulta em uma nova unidade produtiva que, para assegurar a “[...] continuidade ao processo produtivo em curso na propriedade, [...] demanda um sucessor capaz de reproduzir o patrimônio da família” (STROPASOLAS, 2004, p. 256).

Assim, dentro de um contexto hierárquico na unidade produtiva, o “pai-patrão” é quem governa o processo de trabalho em uma família, projetando a mulher e os filhos e, principalmente, as filhas aos valores tradicionais em uma posição de subalternização. Dessa forma, nas regiões coloniais em que predomina a agricultura familiar, “[...] verifica-se um padrão a respeito da sucessão nas propriedades rurais, apesar das variações possíveis, em geral são os filhos homens que herdam a terra, enquanto as mulheres se tornam agricultoras por casamento” (SANTOS, 2007, p. 88).

Em relação à violência doméstica contra as mulheres camponesas, há especificidades que agravam ainda mais os problemas, como a localização das moradias e o distanciamento entre as propriedades, por exemplo. Mas há uma questão central, que é o descaso, o alheamento das políticas públicas no campo, sobretudo no âmbito da disponibilização dos dados acerca dos serviços de segurança.

Sendo assim, a ausência de trabalhos acadêmicos sobre a violência contra mulheres na zona rural constituiu a principal mobilização para esta pesquisa. A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, disponibilizou mecanismos de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, estabelecendo no artigo 8º que essa política pública deve ocorrer por meio de um conjunto de ações articuladas, como a pesquisa científica.

A finalidade deste estudo é identificar quais são os tipos de violência que atingem as mulheres camponesas do município de Santa Luzia D’Oeste, a partir dos dados coletados e o que é feito a respeito. Acredita-se que os resultados da pesquisa não são diferentes das demais mulheres camponesas que vivem no campo de todo o território brasileiro.

A mulher camponesa, em sua maioria, vive no anonimato, e são alvos de múltiplas violências, o que constitui uma violação aos direitos humanos. Afeta a autoestima e pode ser tipificada como violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, o que prejudica o desenvolvimento das mulheres a curto e longo prazo. Inquietações dessa natureza mobilizaram a realização deste texto, sobretudo pelas relações de afinidade que as autoras têm estabelecido com as mulheres do campo e a escassez de trabalhos acadêmicos sobre o tema.

Metodologia

Quais são as violências sofridas pelas mulheres que moram na zona rural de Santa Luzia D’Oeste? Que medidas de enfrentamento têm sido encaminhadas no sentido de combatê-las? Essas questões orientaram a elaboração do trabalho.

O estudo se caracteriza pelo método qualitativo, no âmbito dos instrumentos metodológicos da pesquisa documental e narrativa, recursos que possibilitaram identificar a descrição da tipologia da violência cometida contra as mulheres camponesas, tendo como campo da investigação o município de Santa Luzia D’Oeste, localizado em Rondônia, no período de julho e agosto de 2020.

A pesquisa documental é um procedimento que “[...] se vale de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico [...]” (GIL, 2008, p. 51). Os documentos analisados foram Boletins de Ocorrência da 1ª Delegacia de Polícia Civil de Santa Luzia D’Oeste. A pesquisa narrativa tem valor formativo, caracterizada como ferramentas não estruturadas, visando à profundidade de aspectos específicos, a partir das quais emergem histórias de vida. Esse tipo de entrevista visa encorajar e estimular o sujeito entrevistado (informante) a contar algo sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social. (JOVCHELOVICH; BAUER, 2002). Desta forma, contou-se com a colaboração de duas lideranças femininas que atuam diretamente no trabalho com mulheres camponesas do município de Santa Luzia D’Oeste: a extensionista da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e a membra do Movimentos dos Pequenos Trabalhadores Rurais (MPA). Os relatos foram mediante o uso de um roteiro semiestruturado relacionado às finalidades da investigação.

Ressalta-se que as identidades das colaboradoras foram mantidas em total sigilo e não serão divulgadas no texto. Em atenção à Resolução 510/2016, que trata da ética na pesquisa, o estudo considerou a aceitação dos participantes mediante assinaturas no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados e Discussão

A desigualdade de gênero no contexto rural no Brasil fica evidenciada pela própria forma da distribuição fundiária da propriedade. Os homens controlam a maior parte dos estabelecimentos rurais e estão à frente dos imóveis com maior área, que totalizam 87,32% de todos os estabelecimentos, representando 94,5% de todas as áreas rurais brasileiras. Isso reflete no percentual muito expressivo de 8,1% de mulheres sem direito à posse da terra, em comparação com os homens, com percentual de 4,5%. O paradoxal é que as mulheres são, proporcionalmente, mais frequentes do que os homens nos estabelecimentos com áreas menores de cinco hectares (SAUER et. al., 2016, p.10).

As representações de culturas de masculinidades e feminilidades se constituem no casamento quando este se baseia no valor de troca para o trabalho. São laços inseparáveis no processo de reprodução social do campesinato, na organização do grupo doméstico e da vida econômica. Deste modo, o masculino impõe a postura de ação, decisão, chefia, e encontra no lar um ambiente para expressar uma relação direta com a violência (COSTA; LOPES; SOARES, 2015; SANTOS, 2007).

Portanto, o poder hierárquico masculino se perpetua na sociedade também por meio do casamento, sobretudo no espaço rural, e determina fatores que impedem a promoção da autonomia financeira da mulher. De acordo com Sauer et. al. (2016) mesmo que elas participem de formações, suas atividades englobam diversas funções vistas como secundárias no espaço rural, poucas participam do gerenciamento dos negócios na propriedade. A exemplo disso, a produção de leite quando é somente para o consumo, o trabalho é realizado manualmente pela mulher, uma vez que a sobra com a venda é pouca. Mas quando a produção de leite aumenta, passa ser mecanizada com ordenhas, na maioria das vezes o homem assume este trabalho, já que o leite será comercializado no mercado local ou regional.

Nesta perspectiva, o patriarcado é o sistema que cria, justifica e legitima a opressão e exploração das mulheres em uma estrutura de organização agrícola familiar, a partir então, reproduz e perpetua a exploração e opressão. Para Silva (2018), algumas informações têm repercutido a violência contra as mulheres trabalhadoras rurais no espaço doméstico, evidenciada na pesquisa realizada em 2010 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Os números apresentados revelaram que 63,6% das agressões contra as mulheres foram cometidas pelos maridos ou companheiros; 27,6% das entrevistadas já haviam sofrido ameaças de morte; 11,9%, estupro marital; e 4,4% haviam sido vítimas de cárcere privado. O estudo ouviu 529 mulheres de diversas regiões do país.

As consequências da violência na vida da mulher camponesa são graves e se manifestam no medo de reagir; o medo de denunciar ao saber que o agressor pode agir com mais violência; as mulheres tem medo da separação de não ter como sobreviver; medo de ficar sozinha; medo de seus pais não a aceitarem de volta; medo de perder seus filhos; em alguns casos, medo da morte; medo do que os outros vão dizer e medo de se impor como mulher capaz de mudar essa situação, (LORENZONI, 2007).

Essas violações desde 2006 têm um instrumento importante de combate à opressão das muitas faces da violência pelas quais passam as mulheres, a Lei nº 11.340 ou Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006, p. 1):

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, [...] e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Há um reconhecimento de que a Lei Maria da Penha, nos últimos anos, se projetou como um relevante mecanismo de defesa dos direitos humanos. No entanto, há necessidade de considerar as especificidades das mulheres camponesas. Dentre outros aspectos, é preciso levar em conta o isolamento geográfico, somado a outras situações, que aumentam o quadro de vulnerabilidades que atingem brutalmente as mulheres do campo: “[...] na roça ninguém ouve o grito de socorro da mulher, a mulher não tem como buscar ajuda, não tem transporte, o povoado fica distante 40, 50 km. Não tem delegacia, não tem nada” (SCOTT; RODRIGUES; SARAIVA, 2010, p. 71-72).

A violação dos direitos das Mulheres Camponesas

A população total do município de Santa Luzia D’Oeste corresponde a 8.886 pessoas. Destas, 4.596 são do sexo masculino e 4.290 do sexo feminino (IBGE, 2010). De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2.008 mulheres organizam seus modos de vida no campo ou na zona rural, e é a elas que nosso interesse se dirige, principalmente para compreender como a violência se materializa em seu dia a dia.


QUADRO 01
População de Santa Luzia D’Oeste
Fonte: IBGE (BRASIL, 2010)[3].

Ao analisar as condições econômicas das mulheres camponesas do município de Santa Luzia D’Oeste, constatamos que 40% delas estão inscritas no Programa Bolsa Família, segundo informações do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do município. Levando em conta a proporção da população rural, subtende-se que parte significativa das famílias que residem na área rural apresenta o perfil exigido para adesão ao referido programa, pois são famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica.

A violência no campo acontece, em maior gravidade em famílias camponesas que vivem em pequena propriedade, não conseguem produzir o suficiente para manter as despesas básicas da estrutura familiar. Bueno e Lopes (2018) afirmam que não se pode relacionar a produção da pobreza com a violência, ou seja, fazer uma comparação simplista, como “pobre violento”, pois cada lugar tem suas características e sua forma de lidar com as disparidades econômicas. Mas na perspectiva de gênero, segundo os autores, a pobreza constitui uma fonte de violência na medida em que há violação de direitos, o que configura prejuízo ao exercício da cidadania – quando o acesso à riqueza, economia e consumo de bens materiais são estruturas hegemônicas compostas pela hierarquização de poder, historicamente construída e desenvolvida na concepção patriarcal.

Segundo Butto et al. (2014) a pobreza das mulheres residentes nas áreas rurais representava 48% em 2009, o que indica que elas não são majoritárias entre a população nessas condições. Esses números revelam indiretamente a extrema pobreza causada pela ausência de oportunidades para alcançar uma vida com dignidade e isso por si só já é uma forma de violência, pois milhares de mulheres estão à margem dos acessos, dos benefícios e dos serviços que o mundo contemporâneo oferece. Apenas 5% de suas rendas são contabilizadas como provenientes do trabalho agrícola, sendo que o restante vem da transferência direta dos programas sociais.

Mas porque esse percentual é tão insignificante? É preciso considerar que no serviço desenvolvido no campo, no âmbito da divisão sexual do trabalho, importantes atividades que as mulheres realizam não são contadas, talvez por não envolverem remuneração. Assim, o reconhecimento social se limita a uma simples ajuda.

[...] a mulher rural é também submetida à dupla e até à tripla jornada de trabalho. Quanto ao trabalho no lar, ou seja, o doméstico, ele aparece como uma atividade desprovida de valor, não se vincula diretamente à produção e não é remunerada mediante salário. [...] Desde muito cedo, a menina já é preparada para realizar essas tarefas, como cuidar da casa, dos irmãos mais novos, lavar as roupas, cozinhar, cuidar dos animais domésticos, das hortas e de pequenos cultivos próximos da casa, incluindo jardins. [...] (NASCIMENTO SILVA, 2012, p. 112).

Este modo de organização das atividades produtivas se baseia na separação entre as tarefas da casa e aquelas realizadas no roçado. O trabalho das mulheres, nessa perspectiva, é inferiorizado, pois não representa a fonte principal de renda, é visto como um trabalho coadjuvante. Essa situação constitui um agravante a mais na condição das mulheres que moram na zona rural, uma vez que a sujeição à renda gerada na propriedade rural é um fator que pode redobrar a exposição de vulnerabilidade, tornando-as também sujeitas a sofrerem outros tipos de violência (BUENO; LOPES, 2018).

Para Nascimento Silva (2012), as mulheres rurais têm uma longa trajetória de lutas, mas seu papel no campo é limitado ao trabalho doméstico, o trabalho no roçado é compreendido como complementar, “uma ajuda”; portanto, um trabalho invisível, sem reconhecimento, perdendo a importância em relação ao trabalho desempenhado pelos homens:

[...] Quando se trata do trabalho da agricultura, elas dizem que trabalham também junto com o companheiro, ou seja, elas trabalham tanto quanto o homem, mas alguns consideram o trabalho delas como uma “ajuda” [...], pois ainda acham que a responsabilidade é só do homem enquanto chefe de família. [...] (NASCIMENTO SILVA, 2012, p. 112).

Esse modelo de divisão social do trabalho nas propriedades rurais segue uma lógica da força muscular, de concepções há muito problematizadas, metaforizadas nas imagens de sexo frágil e sexo forte, como o trabalhar no roçado, que é o espaço de produção do campesinato nos cultivos de tubérculos (mandioca), feijão, milho e cereais, o que significa que são alimentos essenciais que vão para a mesa da família no dia-a-dia.

Na divisão das tarefas dentro desses espaços, ferramentas mecânicas de grande porte, como a broca e o arado, são consideradas de manuseios pesados, e essas tarefas exigem força bruta. É o elemento que no imaginário social configura a situação como característica “natural” dos homens, em especial o pai e o esposo, já que as atividades das mulheres são aquelas “leves”, em que não há exigência de força muscular. Essa relação no processo de produção de alimentos, invisibiliza o trabalho da mulher atribuindo a ela um lugar menor nas atividades realizadas na propriedade, o que se configura uma violência estrutural.

O conceito de violência estrutural, ou seja, institucionalizada, pode ser aplicado nas estruturas organizadas dos sistemas econômicos, culturais e políticos, assim como nos diferentes grupos que constituem a sociedade. A violência sofrida pela mulher é exercida pelo homem em uma relação desigual, sustentada por uma construção social do ser mulher como gênero feminino, inferior ao ser homem como gênero masculino, portanto, não é natural, a mulher sofre pelo simples fato de ser mulher. Como é retratado por Lorenzoni (2007).

É a violência institucionalizada (de gênero, étnico-raciais, econômicas, etc.) predominante em diferentes sociedades. Essas desigualdades se formalizam e institucionalizam nas diferentes organizações privadas e aparelhos estatais, como também nos diferentes grupos que constituem essas sociedades. Ela está presente no dia-a-dia da mulher camponesa. É a violência sofrida pelo simples fato de ser mulher. É exercida pelos homens. Tem suas bases na existência de relações desiguais entre homens e mulheres, que são sustentadas pela construção social do ser mulher como gênero feminino, inferior ao ser homem como gênero masculino. (pg.87)

Os poucos estudos que tratam da realidade das mulheres camponesas, é possível afirmar que são marcadas pela sobrecarga de trabalho, exploração, opressão, discriminação e violência doméstica. Esta realidade traduz as múltiplas faces da violência como fenômeno presente no território do campo, que opera no contexto de suas vidas e se materializa no seu corpo em sofrimento.

Na questão da saúde, a mulher camponesa sofre a violência da falta de atendimento adequado às suas necessidades, especialmente no que diz respeito ao atendimento específico como os direitos sexuais e reprodutivos. Uma parte significativa das mulheres santa luziense como já foi pontuado, são moradoras da área rural e todas as consultas medicas são realizados na cidade. Elas não encontram nenhum ponto de apoio, para descansar, e prover de suas necessidades, até mesmo na hora do parto, muitas chegam no hospital com complicações na saúde, o que coloca a vida da mãe e da criança em risco.

As múltiplas violências contra as mulheres camponesa de Santa Luzia D’Oeste-RO

O propósito deste tópico é apresentar uma análise sobre a violência contra a mulher que mora na zona rural de Santa Luzia D’Oeste, tendo em vista a necessidade de melhor compreender esse fenômeno. Os recursos metodológicos que permitiram a sua elaboração foram a pesquisa documental e a pesquisa narrativa.

No intuito de compreender quais são as violências que mais atingem as mulheres da zona rural de Santa Luzia D’Oeste, foi realizada pesquisa documental na 1ª Delegacia de Polícia Civil do município. Sendo assim, para fazer uma denúncia as mulheres dispõem unicamente da Central de Atendimento à Mulher, por meio do serviço do Ligue 180, mas isso só na região em que há telefonia disponível. Sem esse recurso, é preciso o deslocamento até a cidade para efetivar a denúncia da violência, que pode ser tipificada como violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I – a violência física, [...] conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II – a violência psicológica, [...] conduta que lhe cause danos emocionais e diminuição da autoestima [...] que lhe prejudique e perturbe [...] que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; [...]

III - a violência sexual, [...] conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; [...]

IV – a violência patrimonial, [...] conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens [...];

V – a violência moral, [...] qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. [...] (BRASIL, 2006, p. 1, grifos do original).

Na ocasião, foi possível ter acesso aos Boletins de Ocorrência e, assim, sistematizar estes importantes registros que evidenciaram informações relevantes a respeito das violências de gênero no município.


FIGURA 01
Violência contra a mulher (urbana e rural) em Santa Luiza D’Oeste
Fonte: Sistematização- Mirian Pereira Suave (2020).

Essas informações permitem afirmar que as mulheres camponesas de Santa Luzia D’Oeste têm conhecimento da Lei nº 11.340/2006 e estão denunciando os seus agressores. Um aspecto importante a ser ressaltado é a subnotificação, isto é, a violência sofrida, mas não denunciada, que constitui um dos problemas para o seu enfrentamento: “A violência contra a mulher é um problema de saúde pública de proporções epidêmicas no Brasil, embora sua magnitude seja em grande parte invisível. [...]” (GARCIA, 2016, p. 452).

Os Boletins de Ocorrência registrados na instituição policial são bastante expressivos. Em termos proporcionais, foi possível perceber que o espaço rural do município de Santa Luzia D’Oeste representa 33% dos registros referentes às violações de gênero no âmbito da Lei Maria da Penha. Isso evidencia a popularização do instrumento de defesa e proteção da vida das mulheres, que conhecem e têm mobilizado a normativa em prol de suas existências.

Dessa forma, foi possível observar que algumas violências apresentam quantitativos maiores que outros. Estamos nos referindo às denúncias referentes às ameaças, que no período observado, 2017-2019, expressaram uma representação significativa: “[...] a ameaça é entendida como uma das formas de violência psicológica, uma conduta que tenta causar dano emocional e diminuição da autoestima [...]” (CARVALHAES; PAES, 2014, p. 1200).

A outra violência que certamente produz implicações na vida das mulheres de Santa Luzia D’Oeste é a violência física, ocorrência que possui registros no decorrer dos três anos analisados. Por um determinado tempo, esse tipo de violência constituiu quase que o sinônimo da violação que afligia as mulheres. A vítima de violência precisava provar que havia sido agredida mediante apresentação de marcas no corpo. Com o passar do tempo, diferentes sociedades sentiram a necessidade de classificar e tipificar as diversas formas de abusos e maus-tratos contra as mulheres, que não são apenas de ordem física.

As mulheres denunciaram também o descumprimento das Medidas Protetivas, recurso possibilitado pela Lei Maria da Penha, referente a diversas questões, como: “[...] suspensão da posse ou restrição do porte de armas do agressor; afastamento do agressor do lar [...]; proibição do agressor de aproximação da ofendida, de seus familiares [...]; proibição de contato do agressor com a ofendida [...]” (SOARES; LOPES, 2018, p. 796). Esse tipo de denúncia suscita preocupações e a necessidade de rediscussão do procedimento.

Isso significa que é necessário produzir estudos para compreender suas razões, uma vez que explicita a fragilidade da normativa. Algumas análises evidenciam que são necessárias outras políticas de suporte, pois “[...] as medidas protetivas [...] não serão satisfatoriamente empregadas na prática, enquanto houver a perpetuação das construções socioculturais baseadas na desigualdade entre homens e mulheres [...]” (SILVA, 2015, p. 105).

Após a etapa de trabalhos referentes à pesquisa documental, desenvolveu-se a coleta dos relatos. Participaram do processo, como colaboradoras da pesquisa, duas mulheres que atuam em atividades relacionadas à zona rural e por isso podem contribuir neste trabalho: Carla Brandão, extensionista da Emater e Maria Vitória, que atua no MPA, ambas com identificação fictícia, moradoras de Santa Luzia D’Oeste.

Em atenção às orientações da Resolução 510/2016 do Ministério da Saúde, referente aos protocolos de ética na pesquisa, iniciamos esta etapa do trabalho. Após o convite, a apresentação do objetivo do estudo definido no TCLE e as aceitações das participantes, foi feito o agendamento para a coleta dos relatos mediante uso de um roteiro semiestruturado relacionado às finalidades da investigação.

Segundo dados da Emater, quando o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) Mulher[4] foi implantado no município de Santa Luzia D’Oeste, apenas quinze mulheres se manifestaram acerca dessa linha de crédito. A colaboradora apontou importantes elementos nessa discussão de acesso a créditos em que a questão de gênero perpassa de maneira decisiva, podendo impactar a autonomia das mulheres:

[...] os homens fazem financiamentos e as mulheres pensam muito nos filhos e na sua própria família (as mulheres agem mais com o coração) sendo assim, as mulheres preferem reprimirem seus sonhos em prol do bem-estar de seus filhos e de sua família. Como elas vão fazer um financiamento para realizar seus sonhos se o seu esposo já realizou o dele e às vezes comprometeu a sua propriedade? [...] (Carla Brandão, 2020).

Mesmo assim, essa procura, de acordo com a colaboradora, só ocorreu porque as mulheres eram viúvas, separadas ou solteiras, embora esse programa possa ser acessado independentemente da situação civil. Ela salientou que aparentemente mulheres casadas não evidenciam interesse por esse tipo de financiamento e quando procuram acabam desistindo para evitar confrontos com seus esposos. Refletiu também sobre a pouca valorização do trabalho das mulheres agricultoras:

[...] Aqui no município e em outros municípios conheço mulheres, batalhadoras, que vão para a roça, tiram leite, fazem de tudo na propriedade e não são valorizadas pelo esposo ou até mesmo pela própria família, muitas dessas mulheres trabalham muito, mas no final do mês ou da colheita não veem nem a cor do dinheiro. Além disso, muitas são humilhadas pelos seus esposos com palavras que magoam e marcam pelo resto da vida, tipo assim: você não precisa de dinheiro, você quer dinheiro para quê? (Carla Brandão, 2020).

Os estudos que relacionam gênero e pobreza consideram que a renda, a distribuição e o dimensionamento da pobreza podem atuar como fatores de vulnerabilidades (BUENO; LOPES, 2018). Contudo, não se trata simplesmente de somar gênero, classe social e o espaço rural, mas de reconhecer que o entrelaçamento dessas condições compõe uma realidade que torna a situação dessas mulheres muito mais complexa e difícil.

Os homens têm maior participação nos serviços que promovem o desenvolvimento das atividades rurais, nos financiamentos, negociam a produção, têm controle da renda e cuidam dos negócios da propriedade. Nessa perspectiva, a mulher sem renda depende exclusivamente do marido para suprir necessidades básicas de sua sobrevivência.

Assim, além do pouco acesso às políticas de financiamento, caso do Pronaf Mulher, há diversas formas de violência que acontecem com as mulheres da zona rural de Santa Luzia D’Oeste que confirmam as denúncias registradas na Delegacia de Polícia da cidade, como já discutido no texto. São traduzidas em ofensas verbais, xingamentos e abusos, conforme o relato da participante da Emater. O agressor ora era o pai, ora o marido, e começava as violações com palavras, em seguida com empurrões e finalmente com espancamentos:

Aqui no município, quando reunimos mulheres rurais para as atividades de curso da Emater, ouço várias reclamações. Algumas mulheres alegam serem ofendidas verbalmente com palavrões, humilhações, com insinuações maldosas, somente pelo fato de aceitar sair de casa para realizar o curso. Eu, particularmente, conheço um caso de uma jovem aqui no município que, tentando escapar da violência do pai, acreditou que a melhor saída era se casar, assim que casou foi morar em outra comunidade, mas os abusos continuaram só que agora pelo próprio marido... A moça trabalhava no pesado, fazendo cerca, carpindo, roçando, batendo veneno, coisas que não fazia quando morava com seus pais. Além de tudo ficava ouvindo humilhações do esposo, grosserias e pior de tudo, à noite, além de cansada, triste, deprimida, tinha de cumprir suas obrigações de mulher na cama... A mesma entrou em uma grande depressão e ficou muito mal, foi quando resolveu se separar e voltar para a casa dos seus pais e foi muito bem acolhida, hoje ela superou tudo e até já se casou novamente (Carla Brandão, 2020, grifo nosso).

Mais uma vez, uma questão de grande incômodo e sofrimento para as mulheres emerge na fala registrada pela colaboradora da pesquisa, que narra com detalhes os relatos referentes à desvalorização do trabalho no campo desenvolvido pelas mulheres. A violência contra a mulher camponesa na perspectiva de gênero, segundo Straposolas (2004), envolve a sua própria condição de vida (“terra e trabalho”). Em uma perspectiva teórica, critica os estudos da história das mulheres veiculadas em práticas androcentristas, que têm levado à compreensão das relações de gênero em todas as esferas sociais.

Outro dado relevante é a informação da violência física, evidenciada nos registros policiais e reiterada no relato de Maria Vitória, que atua no Movimentos dos Trabalhadores Rurais MPA, uma das formas de materialização do poder masculino metaforizado no atributo da força corporal: “[...] encontra-se na base da violência que é exercida contra elas e ocorre como um modo de dominá-las e controlá-las, especialmente se ela for sua parceira em uma relação conju­gal [...]” (SANTOS; MORÉ, 2011, p. 228).

Conheço apenas um caso de espancamento, onde o esposo espancou a mulher chegando a quebrar o maxilar da mesma e o nariz, machucou demais, a mesma prestou queixa na polícia, mas em seguida retirou a queixa, ouvindo as juras de amor do mesmo, que ele iria mudar, iria se arrepender, e assim ela com a esperança de mudança do mesmo retirou a queixa. É sempre assim, nós mulheres agimos com o coração e sempre esperando alguma mudança e essa mudança não acontece, pois se fez uma vez vai fazer de novo (Maria Vitória, 2020).

A narrativa evidencia um dado do passado, a possibilidade de renúncia de direito, ou seja, a retirada da queixa. Na atualidade, em relação ao crime de violência física, isso está fora de cogitação. Há situações de ameaças em que a Lei Maria da Penha permite a discussão, entretanto há um protocolo rigoroso, com a inserção inclusive de audiência específica no intuito de averiguar se não está ocorrendo pressão para tal ação. Uma forma de enfrentar o problema é ampliar a informação das possibilidades e atualizações da lei, como recurso de combate aos desdéns acerca da normativa:

[...] Aqui no município mesmo teve uma passagem com uma mulher em que o esposo bateu na mesma com um cabo de vassoura, deixou ela toda roxa, a colocou no carro, levou em frente da delegacia e disse “Desce do carro, vai lá e presta queixa na polícia, mas pensa bem...pois amanhã já estou solto, pois essa Maria da Penha só existe no papel. Quando eu sair da cadeia, eu não vou apenas te bater, eu vou te matar”. O que ela fez? Enxugou as lágrimas, engoliu o choro e voltou para casa. Essa infelizmente é a realidade (Maria Vitória, 2020).

O relato comovente apresentado acima nos aproxima do medo, do desalento e da resignação que expressam os sentimentos das mulheres espancadas. Evidencia também como as relações de poder se assentam no processo de dominação sexista, tendo como horizonte a certeza da impunidade: “[...] o patriarcado se baseia no controle e no medo, atitude/sentimento que forma um círculo vicioso [...]” (SAFFIOTI, 2011, p. 121).

Os dados obtidos por meio da pesquisa documental mediante exame dos Boletins de Ocorrência junto à instituição policial e aqueles que foram evidenciados na pesquisa narrativa por meio da participação de duas colaboradoras explicitam aproximações contundentes. As ameaças e a violência física constituem as duas maiores violações contra as mulheres da zona rural do município de Santa Luzia D’Oeste, no período de 2017 a 2019.

E ainda prevalecem concepções de naturalização da violência contra as mulheres, vista em determinadas situações como um mal menor. Em conversa com um jovem recém-concursado em um serviço público, que escolheu tomar posse em Santa Luzia D’Oeste, ele explica que a decisão de trabalhar nesse município ocorreu após uma busca na internet, ocasião em que constatou os baixos índices de criminalidade referentes a homicídios, furtos, tráficos, etc. Diante disso, ele expressou a seguinte frase: “Eu percebi que aqui a maioria dos Boletins de Ocorrência refere-se à Lei Maria da Penha, a cidade é muito tranquila para morar”. Talvez não fosse a intenção do jovem, mas acabou expressando a mentalidade ainda corrente para muitas pessoas de que as violências contra as mulheres não se configuram como atos criminosos.

Mas que estrutura de enfrentamento à violência contra a mulher existe no município de Santa Luzia D’Oeste? Além da 1ª Delegacia de Polícia Civil, que como o próprio nome sugere não é uma instituição especializada, há a Central de Atendimento à Mulher – o serviço do Ligue 180, na qual verificamos a existência de 15 (quinze) denúncias de 2015 a 2018, conforme dados disponibilizados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Mulher.

Mais recentemente, foi instituída a Lei Municipal nº 1015/2020, para ser executada nos estabelecimentos de ensino do município, que diz respeito a um conjunto de ações preventivas voltadas à Lei Maria da Penha, de combate à violência contra a mulher. A finalidade é a inserção do tema na pauta curricular por meio da implementação de uma semana de conscientização para o enfrentamento à violência contra as mulheres, no âmbito da educação básica.

Assim, iniciativas como a Lei Municipal nº 1015/2020 são bem-vindas por tensionar o currículo, sobretudo em função da onda conservadora que tem assolado o país. Desde 2004, com a divulgação do Programa Brasil sem Homofobia, um conjunto de forças ligadas a um moralismo religioso tem imposto o silenciamento à escola no que diz respeito ao trabalho pedagógico envolvendo a temática de gênero.

Renovamos a esperança de coletivamente pôr fim a todas as formas de violências cometidas contra as mulheres, sobretudo as que moram em espaços rural e por isso sofrem violências não vistas, confundidas como não existentes. Os movimentos sociais de defesa das mulheres do campo, da cidade, das águas e da floresta têm quebrado o silêncio sobre essas violações. Organizamos um modo de vida em que as mulheres são classificadas como pessoas menores e disso resulta um conjunto de violações que prejudicam suas existências. Se socialmente inventamos essa mentalidade, em perspectiva societária, podemos igualmente desinventar.

Reiteramos que o direito a uma vida livre de violência para as mulheres do campo constituiu um importante ponto de pauta na realização da 6ª Marcha das Margaridas[5], em Brasília. Nos dias 13 e 14 de agosto de 2019 marchamos em defesa das mulheres, ocupando as ruas com corpos, cores e vozes: “Olha Brasília está florida, estão chegando as decididas, olha Brasília está florida, é o querer, é o querer das Margaridas. [...] E pra quem abusa do bastão por ser patrão, por ser mandão, por ser machão, não pode não, não pode não... [...]”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência doméstica afronta a dignidade das mulheres brasileiras e se estende por todo o tecido societário. No entanto, as especificidades do espaço geográfico do meio rural tornam-se um fator que contribui para a gravidade do problema por dificultar as denúncias, encobrir as violações e gerar quadros de impunidade. Ainda predominam concepções que compreendem que a vida no campo é mais adequada aos homens. Nesse sentido, a definição de papéis nos grupos familiares fez com que as mulheres sejam consideradas menos importantes em relação ao trabalho desempenhado por eles.

Nosso propósito neste trabalho foi identificar as violências que atingem as mulheres que moram na zona rural de Santa Luzia D’Oeste, bem como as políticas públicas existentes que contribuem para o enfrentamento dessas violações.

O estudo apurou que as mulheres camponesas de Santa Luzia D’Oeste sofrem múltiplas violências, padecem de ameaças, espancamentos, xingamentos, humilhações, desvalorização de seu trabalho na propriedade, não acesso a financiamentos públicos, abusos sexuais, estupros e a violência letal – o feminicídio. Levantamos que a principal política pública que impulsiona ações para o combate à violência de gênero é a aplicação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), no entanto, para acessar esse serviço é necessário o deslocamento até a cidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LEI MUNICIPAL Nº 1015/2020 :“INSTITUI A SEMANA MUNICIPAL DE AÇÕES VOLTADAS AO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA MULHER, NO MUNICÍPIO DE SANTA LUZIA D' OESTE/RO”.

Notas

[3] Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=210&uf=11. Acesso em: 2 ago. 2020.
[4] Crédito de investimento para atender às necessidades da mulher produtora rural. Disponível em: https://www.bb.com.br/pbb/pagina-inicial/pronaf-mulher#/. Acesso em: 5 ago. 2020.
[5] transformatoriomargaridas.org.br
Entrevista Concedida Nome fictício: Maria Vitória, julho, 2020, Santa Luzia.
Entrevista Concedida Nome fictício: Carla Brandão, julho, 2020, Santa Luzia.

Autor notes

[1] Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Geografia Mulher e Relações de Gênero (GPGENERO) e Grupo de pesquisa Gestão do Território e Geografia Agrária da Amazônia (GTGA).
[2] Doutora em Educação Escolar pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Líder do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA). Coordenadora da Linha de Pesquisa Amazônia Feminista.


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