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Territórios e territorialidades quilombolas do município de Óbidos-Pa: o caso do quilombo da Área das Cabeceiras
Territorios y territorialidades quilombolas del municipio de Óbidos-Pa: el caso del quilombo del Área das Cabeceiras
Quilombo Territories and Territorialities of the Municipality of Óbidos-Pa: The Case of the Quilombo of the Área das Cabeceiras
Revista Presença Geográfica, vol.. 07, núm. Esp.02, 2020
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Artigos

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 07, núm. Esp.02, 2020

Recepção: 08 Setembro 2020

Aprovação: 30 Setembro 2020

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a formação territorial, as territorialidades e as formas de resistências dos territórios quilombolas das Áreas das Cabeceiras, município de Óbidos, oeste da Amazônia paraense, bem como compreender as territorialidades existentes no lugar. Foram realizadas uma revisão teórica-conceitual em Anjos (2013), Acevedo e Castro (1998), Funes (1995; 1999), Treccani (2006). Também se realizou 3 trabalhos de campo, cujo instrumento de coletas de dados foi a aplicação de entrevistadas semiestrutradas. A faixa etária dos entrevistados foi entre 56 a 87 anos de idade. Durante a aplicação das entrevistas foi diferenciado o roteiro de perguntas em cada campo realizado, onde foram entrevistados 6 sujeitos, sendo 4 mulheres e 2 homens. A técnica de entrevista foi aplicada aos moradores da Área das Cabeceiras, membros da Associação Remanescentes de Negros da Área das Cabeceiras (ACORNECAB) e lideranças comunitárias que estiveram desde o princípio do movimento para o reconhecimento da área e da afirmação da identidade do território como quilombola.

Palavras-chave: Quilombo, Geografia, Território, Resistência, Óbidos-Pa.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar la formación territorial, territorialidades y formas de resistencia de los territorios Quilombola de las zonas de Cabeceras, municipio de Óbidos, al oeste de la Amazonia parense, así como comprender las territorialidades existentes en el lugar. Fueron realizadas una revisión teórica-conceptual en Anjos (2013), Acevedo y Castro (1998), Funes (1995; 1999), Treccani (2006). También se realizaron 3 trabajos de campo, cuyo instrumento de recopilación de datos fue la aplicación de entrevistados semiestructurados. El grupo de edad de los entrevistados tenía entre 56 y 87 años de edad. Durante la aplicación de las entrevistas, se diferenció el guión de preguntas en cada campo, donde se entrevistaron 6 personas, siendo 4 mujeres y 2 hombres. La técnica de entrevista se aplicó a los residentes del Área de Cabeceras, miembros de la Asociación Remanentes de Negros del Área de Cabeceras (ACORNECAB) y líderes comunitarios que han estado desde el inicio del movimiento para el reconocimiento de la zona como territorio quilombola.

Palabras clave: Quilombo, Geografía, Territorio, Resistencia, Óbidos-Pa.

Abstract: This article aimed to analyze the territorial formation, the territorialities and the forms of resistance of the quilombola territories of the Areas of Cabeceiras, municipality of Óbidos, west of the Amazon of Pará, understand the territorialities existing in the place and the historicity of the struggles and resistances of the quilombola communities for the demarcation of their lands. A theoretical-conceptual review was carried out in Saquet (2015), Anjos (2013), Acevedo and Castro (1998), Funes (1995; 1999), Treccani (2006). Three field works were also carried out, whose data collection instrument was the application of semi-structured interviewees. The age group of the interviewees was between 56 and 87 years years of age. During the application of question in each field was differentiated, where 6 subjects were interviewed, 4 women and 2 men. The interview technique was applied to residents of the Cabeceiras Area, members of the Blackheads Association of the Cabeceiras Area (ACORNECAB) and community leaders who were from the beginning of the movement to recognize the area and affirm the identity of the territory as quilombola.

Keywords: Quilombo, Geography, Territory, Resistance, Óbidos-Pa.

INTRODUÇÃO

A colonização na Amazônia ocorreu a partir da fundação de Belém em 1616, com o importante nome de Forte do Presépio. Segundo Porto-Gonçalves (2019), as Ordens Religiosas, autorizadas pelo Estado Colonial “conquistaram” as Almas Indígenas, garantindo assim, o território para os portugueses. Dessa forma, surgem os aldeamentos religiosos, ao longo da calha do rio Amazonas, sobretudo, na confluência com outros rios, como Santarém na desembocadura do rio Tapajós; Óbidos, na foz do rio Trombetas; Manaus, na foz do rio Negro; Tefé, na foz do rio Japurá, além de Belém, na foz de toda bacia.

Com a presença dos fortes na embocadura dos rios e a presença militar, a Amazônia foi subordinada ao espaço territorial de Portugal. A partir desse momento, inúmeros fatores econômicos, sociais e políticos corroboraram para a introdução do negro nessa região, originando os primeiros quilombos como forma de resistência negra na região.

Essas populações tradicionais amazônicas possuem seus modos de vida e práticas espaciais específicas e singulares, uma vez que um dos seus instrumentos de lutas é a reivindicação e demarcação de suas terras e titulação de seus territórios. Segundo Anjos (2013), a região Norte possui 25% dos remanescentes de antigos quilombos no Brasil e estão concentrados no Pará. Os quilombos na contemporaneidade se configuram por seus valores, ressignificações, histórias, reivindicações, organizações, persistências, lutas e resistências identitárias e territoriais, formando uma totalidade de práticas culturais e socioespaciais de tamanha complexidade e representatividade no contexto do espaço amazônico.

Este estudo busca analisar a formação territorial, da Área das Cabeceiras[4], município de Óbidos, oeste da Amazônia paraense, bem como compreender as territorialidades existentes no lugar e a historicidade das lutas e resistências das comunidades quilombolas pela demarcação de suas terras.

Procedimentos Metodológicos

Como procedimentos metodológicos foi realizada uma revisão teórica-conceitual Cruz (2006), Anjos (2013), Acevedo e Castro (1998), Funes (1995; 1999), Treccani (2006). Houve ainda os trabalhos de campo, cujo instrumento de coletas de dados foi a aplicação de entrevistas semi-estruturadas, que nos permitiu que outras questões fossem formuladas no decorrer da pesquisa, permitindo maiores esclarecimentos acerca do tema pesquisado, ainda que estivesse em mãos o roteiro das perguntas de maneira cronológica. Foi utilizado ainda o uso do caderno de campo, para fazer as anotações rápidas e precisas acerca de datas, identificações de pessoas e de dados coletados em campo.

Foram entrevistados moradores da Área das Cabeceiras, membros da Associação Remanescentes de Negros da Área das Cabeceiras (ACORNECAB) e lideranças comunitárias que estiveram desde o princípio do movimento para o reconhecimento da área, como território quilombola. A faixa etária dos entrevistados foi entre 56 a 87 anos de idade. As entrevistas ocorreram a partir de 3 trabalhos de campos, sendo diferenciado o roteiro de perguntas em cada campo realizado. Foram entrevistados 6 sujeitos, sendo 4 mulheres e 2 homens.

O roteiro configurou-se da seguinte maneira: 1) Dados pessoais, 2) Autoidentificação de ser quilombola, 3) A Luta pela titulação do território e 4) Perspectivas e anseios da ACORNECAB. Foi realizada uma entrevista com perguntas diretamente relacionadas à criação da associação, os objetivos ao ser criada e como a mesma se encontra atualmente.

Nesse contexto, abordar a realidade das populações quilombolas que vivem na Área das Cabeceiras, possibilitou conhecer as lutas sociais e a resistência tanto identitárias, como territoriais das comunidades quilombolas amazônicas.

A Área das Cabeceiras localiza-se na área rural do município de Óbidos, em terra firme (Figura 1), compreendendo atualmente as comunidades Castanhanduba, Apuí, Centrinho, Ponte Grande, Serrinha, Vila Nova, Cuecé, Silêncio, Matá, São José, e Patauá do São José. Falar sobre essas comunidades remanescentes de quilombos, Silêncio, Matá, Castanhanduba, Cuecé, Apuí e São José, onde existem famílias descendentes de populações escravizadas, torna-se importante conhecer a história vivenciada por cativos, homens e mulheres, africanos e afro-amazônicos. A partir das histórias que são passadas de avós para netos, encontramos as raízes das memórias e das histórias dessas comunidades, possibilitando a formação de suas identidades e do sentido de pertencimento pelo lugar onde vivem, assim como as lutas sociais, ou seja, como a garantia pelo direito à terra, direito esse que vem desde a luta pela liberdade de seus antepassados no período escravagista (FUNES, 1999).


FIGURA 01
Localização da Área das Cabeceiras
Fonte: IBGE-Mapas, 2018. ANA, 2018.

Conforme Funes (1999) são várias as razões que levaram a Área das Cabeceiras a ser ocupada, como as fugas durante as enchentes do Paraná Grande, a Cabanagem e o ato de se reunirem após a abolição da escravatura a outros negros que na região já se encontravam fugidos da escravidão. Razões como essas, legitimaram a identidade e a formação territorial da Área das Cabeceiras, conforme contextualiza a moradora, Zélia Souza, 27 de fevereiro de 2019, em entrevista: “Pessoas negras foram também os primeiros moradores da comunidade, minha mãe era negra, minha vó era negra e minha bisavó era negra e disque ainda foi escrava”.

Percebe-se pela fala da entrevistada, oriunda de uma família que foi escravizada, todo um passado marcado pela escravidão e violência física e simbólica. Como relata ainda a moradora Zélia Sousa, a formação das comunidades na Área das Cabeceiras ocorreu a partir da presença indígena e negra: “Quando os primeiros moradores chegaram ao lugar haviam moradores, como os índios, encontraram muitas coisas que eles deixaram como machado de pedra, um pilão feito na pedra, a pedra que era um pilão, até hoje a gente acha esses machadinhos de pedra”

Sabe-se que a relação entre negros e indígenas se fazia presente nas formações de quilombos amazônicos. O compartilhamento de saberes e de estratégias foram importantes para o povoamento desses grupos no interior da Amazônia. Outro fator importante na ocupação da Área das Cabeceiras faz referência a Cabanagem, como enfatiza Zélia Souza: “Eles vieram foi na época da Cabanagem, que existiam pra lá e eles fugiram e muitas pessoas vieram e não voltaram mais”.

Com a Cabanagem, os negros foram chegando fugidos na região, buscando lugares novos para viverem, consolidando assim, famílias e parentescos. Além das fugas da Cabanagem, outro tipo de fuga que existia na região diz respeito às enchentes periódicas que fazia com que o quantitativo de moradores das comunidades aumentasse.

Como aponta Funes (1999), fugas que decorrem em razão das grandes enchentes que faziam com que os moradores, em particular os não proprietários de terras, buscassem a terra firme para morar. Assim, muitos dos moradores destas comunidades foram chegando e constituindo famílias.

A formação territorial do município de Óbidos-Pará

O município de Óbidos (Figura 2), localiza-se na região Norte do país, no oeste paraense, na Mesorregião do Baixo Amazonas, à margem esquerda do rio Amazonas. Limita-se com Suriname e Oriximiná ao Norte, ao Leste com Almeirim, Alenquer e Curuá, ao Oeste com Oriximiná e ao Sul com Juruti e Santarém. Segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), o município de Óbidos possui atualmente uma população de 49.333 pessoas, com uma densidade demográfica de 1,7 hab/km².


FIGURA 02
Localização do município de Óbidos
Fonte: IBGE-Mapas, 2015.

As comunidades remanescentes de quilombos praticam a agricultura por meio do sistema de roças, conhecida como rotação de culturas agrícolas, que é uma das práticas mais utilizadas no manejo de base agroecológica e consiste na troca planejada de culturas nas áreas onde ocorre o cultivo, com intuito de evitar o ataque de algumas doenças e insetos que prejudicam a plantação, e como elucidam Acevedo e Castro (1998) a roça fornece uma diversidade de produtos como cereais, raízes, entre outros. Além disso, é também um momento de fortalecimento das relações entre as famílias em função da organização do trabalho em suas diversas fases, através do trabalho familiar e do puxirum. Além da agricultura, há também a atividade de pesca artesanal. O uso desses territórios e as atividades econômicas desenvolvidas pelos quilombolas garantem a subsistência e renda das famílias, na qual abastecem os mercados em escala local e regional. Dentre essas comunidades, encontram-se aproximadamente no município obidense, 18 comunidades quilombolas localizadas em área de terra firme e várzea. Conforme Miranda (2007), a cidade de Óbidos teve sua constituição numa fortificação erguida pelos portugueses no século XVII, aproximadamente no ano de 1697, o Forte Pauxis.

Inicialmente recebe o nome de aldeia dos Pauxis, devido ao Povo indígena que segundo informações e relatos de moradores existia no lugar e era conhecida como Pauxis. Sendo assim, faz-se necessárias pesquisas acerca da origem desse Povo. Segundo Costa (2014) durante o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em 25 de março de 1758 a aldeia dos Pauxis foi elevada à categoria de Vila com a denominação de Óbidos, e o Forte Pauxis, passou a se chamar Forte de Óbidos. As vilas amazônicas como Almerim, Monte Alegre Alenquer, Santarém, Óbidos, e outras, foram quando elevadas a categorias de vilas recebiam um nome de uma cidade portuguesa, tal mudança faz da Amazônia um reflexo do que seria Portugal. “O mapa da Amazônia, suas cidades e vilas passou a espelhar um mapa de Portugal” (MIRANDA, 2007, p. 232).

As cidades fundadas na região amazônica se diferenciam das demais regiões do Brasil, onde estas recebiam o nome de um acidente geográfico e do santo do dia, quando eram descobertas no dia de sua fundação. Para o governo português, transformar a Amazônia em um espelho de Portugal, evidenciava os meios estratégicos para o domínio territorial.

Segundo Miranda (2007), em frente a cidade de Óbidos, o rio Amazonas se torna mais estreito e, por consequência, mais profundo o seu leito, formando a garganta do Rio Amazonas. Tal formação geográfica permitiu aos portugueses construir duas fortalezas durante o século XVII, o forte Pauxis e a fortaleza Gurjão, utilizadas como forma de proteger o interior da Amazônia de invasores.

Em 1697, subindo o rio Amazonas para o rio Negro, o capitão-general Antônio Albuquerque de Carvalho observou que o estreito do Amazonas era uma local ideal para uma fortificação e ordenou ao superintendente das fortificações, Manoel da Mota Siqueira, que construísse o forte neste estreito e não no Ituqui, como estava anteriormente previsto (AZEVEDO, 2002, p. 102).

Para Miranda (2007) e Azevedo (2002), a cidade de Óbidos teve sua formação territorial mediante a posição estratégica de sua localização. Para manter a defesa do território amazônico, Portugal se utilizou de diversas estratégias geopolíticas, permitindo com isso sua consolidação sobre o território amazônico, a elevação de fortificações e a nomenclatura das cidades são exemplos desse processo geopolítico.

Entre as cidades do Pará, Óbidos é conhecida como a mais portuguesa, em meio as rugosidades[5] do tempo trazem em suas construções traços da arquitetura colonial portuguesa. Paulino (2013) elucida as características herdadas da cultura portuguesa em Óbidos no Pará, o centro da cidade com suas ruas estreitas, algumas de suas arquiteturas das casas e mercados construídos nos séculos XVII e XVIII e outras que datam nos séculos XIX e XX, mostrando a presença marroquina, italiana, e judia, povos que se destacavam pela sua grande importância no comércio. Idaliana Azevedo, em entrevista no dia 16 de fevereiro de 2019, relata: “E Óbidos ela tem vários segmentos que formaram a população, possui o segmento indígena, que foi o primeiro, depois vem os portugueses, os portugueses trouxeram os negros, porque eles não sabiam trabalhar, (até para lavar os pés os portugueses precisavam dos negros), depois dos negros, ainda tem outros segmentos os marroquinos, os italianos, os judeus, então os judeus e italianos eles se firmaram mais no comércio. Tinha um comércio forte aqui. Eles se localizaram e foram criando famílias aqui”.

A cidade de Óbidos, possui uma multiplicidade de povos que possuem histórias, identidades e práticas culturais diferenciadas. São esses principais povos que inicialmente fizeram parte da sua formação, trazendo suas culturas, suas particularidades e modos de vida para a Amazônia. Além do indígena que já estava presente, foram introduzidos os marroquinos, os italianos, os judeus, os portugueses e os negros. São principalmente os negros incorporados no espaço amazônico obidense que sofreram gradativamente a negação de suas territorialidades e identidades socioespaciais, cujas ações coloniais promoveram a escravização da mão de obra negra e os subordinaram a diversas formas de violências física, simbólica e histórica. Mas, ainda que as formas opressoras coloniais tenham deixado marcas na história negra da Amazônia, a formação de mocambos[6] representam formas de lutas e Re-Existências.

Uma abordagem do território e territorialidades na perspectiva Quilombola

A concepção de formação territorial permite compreender o contexto histórico do processo de ocupação de um determinado lugar e de sua sociedade. Faz-se necessário entender a relação espaço-tempo e a materialização das ações projetadas no espaço na sua totalidade. Assim, dar ênfase às suas práticas espaciais e territoriais, permite abranger essencialmente a sua base material e identitária, na qual são marcadas por uma multiplicidade de significados e de representações espaciais.

Entende-se que a formação territorial do Brasil ocorreu com a colonização das grandes potências europeias a partir do século XVI na América. Tal processo desencadeou inúmeras consequências aos nativos e aos negros, na qual a força de trabalho destes utilizada durante a dominação colonial ocorreu por meio de um sistema escravista. Sistema esse, que reflete atualmente sob as estruturas sociais brasileiras, pois há a negação das identidades sociais e históricas do povo e se legitima as formas coercitivas da colonialidade.

Mesmo passando mais de um século da sanção da Lei Áurea pelo regime imperial, a história e o sistema oficial brasileiro ainda continuam associando a população de matriz africana à imagem de “escravizada” e os quilombos continuam vistos como algo do passado, como se não fizessem mais parte da vida do país. Mesmo não sendo assumida devidamente pelo Estado, a situação precária dos descendentes de quilombos no Brasil é uma das questões estruturais da sociedade brasileira, uma vez que, além da falta de visibilidade oficial no sistema dominante territorial e social, essa questão é agravada pelo esquecimento e pouca prioridade política (ANJOS, 2013, p.146).

E hoje no Brasil, a luta pelo direito a terra e ao território, evidencia diferentes sujeitos sociais, que historicamente foram excluídos e tiveram seus direitos negados, diante de uma sociedade hegemônica e segregacionista. Os territórios quilombolas são esquecidos pelo Estado quando não são titulados e demarcados.

As comunidades remanescentes de quilombos buscam efetivar a consolidação do direito de uso do território que ocupam. E para compreender geograficamente a formação territorial quilombola é necessário conceituar e definir a noção da categoria de território e territorialidade, a fim de entender as relações estabelecidas entre ser humano e natureza e as transformações entre sociedade e espaço em suas múltiplas dimensões e escalas espaciais. A geografia como uma ciência que compreende a formação da sociedade e as relações socioespaciais, permite identificar o processo de miscigenação e a formação do território brasileiro. E falar do Brasil, é falar de um território complexo, formado por diferentes territórios e por múltiplas territorialidades.

Como enfatiza Cruz (2006) lutar pelo direito ao território é imprescindível na reprodução dos modos de vida tradicionais, pois ele representa para essas populações ao mesmo tempo os meios de subsistência; os meios de trabalho e produção; os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais, aquelas que compõem a estrutura social. Sobretudo o território se constitui como “abrigo” e como “recurso” abrigo físico, fonte de recursos materiais ou meio de produção e ao mesmo elemento fundamental de identificação ou simbolização de grupos através de referentes práticas sociais e simbólicas.

Os territórios quilombolas tem suas características próprias, que ao longo dos tempos foram sendo vivenciadas a partir de suas territorialidades e criaram condições para sua sobrevivência e suas bases de organizações sociais, culturais, políticas e econômicas. As populações quilombolas amazônicas tem o território como condição indispensável para reprodução social da vida e como mosaico representativo de diversas resistências. A natureza associada ao território se destaca como um instrumento de poder do grupo, pois os recursos naturais usados pelos quilombolas significam sua recriação social e o desenvolvimento de diversas práticas socioespaciais coletivas. Segundo Porto-Gonçalves (2012) não há território que não comporte um sentido de controle sobre o espaço, os recursos e suas gentes, uma vez que o território é constituído por territorialidades e que é objeto de um processo histórico-político de apropriação protagonizado por seus grupos e/ou classes sociais, povos e etnias.

Conforme Acevedo e Castro (1998) a territorialidade é uma síntese da apreensão desse universo pelo grupo. Concretiza-se em práticas cotidianas, na perseguição de estratégias de vida e de trabalho, nas execuções de ações que são criadoras a existência material e social.

A Amazônia é recheada de diversas populações quilombolas, distribuídas espacialmente em diversos lugares, na qual reivindicam o direito de viver, à demarcação de suas terras e à titulação de seus territórios. No Oeste do estado do Pará, a realidade das comunidades quilombolas se territorializa e se espacializa consideravelmente, fundamentalmente nos municípios de Oriximiná e Óbidos.

Segundo a Comissão Pró- Índio de São Paulo existem atualmente no município de Óbidos, aproximadamente 18 comunidades quilombolas. As associações de Pacoval e de Oriximiná foram as primeiras a serem consolidadas, Óbidos a partir das ideias trocadas com os municípios vizinhos foi buscando fortalecimento e, assim, as comunidades começaram a se identificar e se organizar. Portanto, faz parte da formação do território de Óbidos diversas comunidades quilombolas, aonde estas populações quilombolas buscam a titulação de seus territórios, a defesa dos direitos territoriais e o fortalecimento das associações.

A presença do negro e o surgimento de Quilombos no município de Óbidos-Pará

Não diferente das demais regiões da Amazônia, o negro foi usado como mão de obra no município de Óbidos para trabalhar no lugar do indígena que a partir das políticas pombalinas foi absolvido do trabalho escravo ou porque fugia da escravidão. Como afirma Acevedo e Castro (1998), as freguesias de Monte Alegre, Alenquer, Óbidos e Faro, através da pressão e da exigência da política econômica colonial da fase pombalina, a partir de 1780, alguns sesmeiros, iniciaram a plantação do cacau e a criação de gado. E no final do século XVIII e no início do século XIX, já haviam sido distribuídas pela Coroa, entre os moradores dessas freguesias, um número maior de sesmarias, classificados como remediados, a plantar cacau. Os indígenas não se submetiam à escravidão e fugiam para os lugares mais distantes. Por conseguinte, o negro foi trazido e submetido ao trabalho escravo. No município de Óbidos, a escravidão ocorreu com mais precisão na região obidense no conhecido Paraná de Baixo[7].

Diante disso, o negro foi subordinado ao trabalho escravo na produção de cacau e na criação de gado, como enfatiza Idaliana Azevedo em entrevista concedida no dia 16 de fevereiro de 2019: “Como os indígenas não se submetiam ao tratamento do branco, se mandaram daqui, pegaram o rumo do Amazonas, foram pelo Trombetas e foram se embrenhando por essa mata toda, até a fronteira, então ficou o negro servindo pro branco. E aqui em Óbidos, a área mais destacada do tempo da escravatura foi o Paraná de Baixo, as famílias, praticamente, sobretudo dos nossos antecessores todos eles tinham escravos”.

A partir da abolição ocorrida em 1888, muitos negros que trabalhavam para as famílias do Paraná de Baixo saíram em busca de uma nova vida e a buscaram o mais longe possível dos seus senhores. Um desses lugares é a comunidade Silêncio, que antes se chamava Cabeceira do São Paulo, comunidade que hoje faz parte da Área das Cabeceiras. O Paraná de Baixo foi o local onde ocorreu o desenvolvimento tanto da plantação de cacau, bem como da pecuária.

No município de Óbidos, os quilombos foram formados em áreas de várzea, outros em terra firme, em meio aos lagos e cabeceiras de rios, em lugares que dificultavam o acesso dos brancos. Mas a formação de quilombos não se deu somente dessa forma, ou seja, permeados pela abolição ou fugas. Para Funes (1999), não houve pelo escravo uma aceitação à sua condição social, nem beneficência por parte de seus senhores. Sempre houve a luta de classes e o escravo a fazia de várias formas em seu dia-a-dia. É a partir da forma como o escravo vive que ele cria dispositivos para usar a seu favor. Fugir para o negro escravizado, era criar meios para resistir e existir, era se permitir ir além dos limites das fazendas de cacauais. Ao se rebelar o negro viabilizava inúmeros processos que iam de encontro ao sistema escravista, seja desrespeitando as formas impostas pelo seu senhor, fugindo, abandonando a lavoura e criando seu próprio meio de sobreviver a partir do quilombo.

O acampamento, o lugar, o terreiro onde o escravo assumia a sua condição de liberto era o Mocambo, procurou integrar-se ao meio ambiente, à outra cultura ali existente – a indígena -, reestruturar sua vida sócio-econômica a estabelecer vínculos com o mundo exterior, forjando uma cultura afro-amazônica, elementos constitutivos de uma sociedade mocambeira e das muitas comunidades negras existentes hoje na Guiana brasileira (FUNES, 1999, p. 8).

Era a partir dessas novas descobertas e desses novos vínculos que o negro começava a se desprender do que lhe era imposto, quebrando as barreiras. Diante disso, os senhores não aceitavam e os inúmeros castigos eram realizados a fim de “ensinar” o negro a se comportar, a respeitar seu “dono”. Essa determinação de ação escravista é concebida a partir da utilização do dispositivo de opressão, subordinação, marginalização e de violência contra os negros na Amazônia obidense.

Para Funes (1999), era a partir da dificuldade da região, das grandes distâncias e dos rios que se realizavam os caminhos naturais para as fugas dos escravos quando se livravam das propriedades de seus senhores. As fugas ocorriam geralmente no período de cheias. Os rios aumentavam seus leitos e espraiavam, permitindo aos negros inúmeros caminhos para serem percorridos em meio à floresta.

O processo de fuga, individual ou coletivo, geralmente ocorria em época mais especificamente, no caso da Amazônia, no período de cheias: dezembro a região, as festas, em especial as dos ciclos natalino e junino, coincidem com o inverno e da castanha (FUNES, 1995, p. 7).

Os negros se utilizavam dos fenômenos naturais como subsídios para suas fugas. As cheias, o período da castanha. As florestas sempre foram moradia e sustento dos povos indígenas e ao negro esses territórios proporcionaram meios de sobrevivência, reprodução social e resistência contra o processo escravagista.

Na Amazônia, falar de florestas e de rios é falar de território e de lugar para esses grupos. É da natureza que os mesmos criam seus meios de reprodução da vida, a floresta se torna um recurso indispensável na subsistência familiar. E assim, a partir das lutas e resistências desses povos negros, inúmeros quilombos foram consolidados no município de Óbidos, que atualmente, lutam pela titulação de seus territórios. A luta por parte do povo negro sempre existiu, se antes lutavam por territórios, por meios de subsistência que iam além das lavouras e castigos durante o processo escravocrata obidense, hoje reivindicam reconhecimento, pertencimento e direitos territoriais.

A conquista do território pelos quilombolas do baixo amazonas

O processo que desencadeou o despertar dessas comunidades a fim de compreenderem seu processo histórico ocorreu a partir da Associação Cultural de Óbidos. Envolvendo não somente o município de Óbidos, mas os municípios de Oriximiná, Santarém e Alenquer. A professora Idaliana Azevedo, sócia e uma das fundadoras da Associação Cultural Obidense (ACOB), fundada no ano de 1983, que tinha como principal finalidade a fundação de um museu, foi uma das principais pessoas que incentivou para que hoje essas comunidades fossem reconhecidas como remanescentes de quilombos, a mesma relata em entrevista no dia 16 de fevereiro de 2019: “Quando eu fui pro Pacoval, que eu comecei a fazer a pesquisa, motivada pelo museu, porque no museu nós começamos a entrevistar as pessoas mais antigas aqui de Óbidos, e aí nós entrevistamos o seu Chico Preto, ele já estava bem velhinho, e a nossa intenção era mais saber como ele tinha, porque ele era soldado no quartel, mas ele falava já tão baixinho, e eu perguntei pra ele de “onde o senhor vem?” “Eu vim do Pacoval”, a minha família era do Pacoval, era dos escravos descendentes da Macambira, com certeza porque se ele veio do Pacoval, os de lá eram escravos da Macambira, então eu fui, fui pro Pacoval, na festa deles que era a festa do dia 06 de janeiro de 1987, eu fui lá na festa deles que é a festa primordial deles que é o Marambiré, que começa uma temporada de festa que vai de 13 de dezembro da festa de Santa Luzia, até 20 de janeiro, então eles dançavam esse tempo todo, esse tempo todo era festa no Pacoval, e era festa mesmo, festa de ramada, eu fui pro Pacoval e lá eu comecei a entrevistar os negros de lá, então daqui do museu nós fomos pro Pacoval, emendamos pro Pacoval, e lá então começou toda essa trajetória [...]”.

A pesquisa desenvolvida pela ACOB com as pessoas mais idosas da cidade de Óbidos buscou fazer um levantamento da história de vida de um dos seus entrevistados, na qual apresentou informações acerca de sua origem e do ressurgimento dos quilombos que há muito tempo estavam esquecidos. Diante disso, a partir do ano de 1987, a pesquisa se volta para o município de Alenquer, precisamente para o Pacoval, lugar onde se encontram os remanescentes dos quilombos de Curuá, tudo indica terem sido escravos da família Macambira, uma das famílias que mais possuíam escravos no oeste paraense. Em entrevista, Idaliana Azevedo discorre como surgiu a ideia de reunir os negros do oeste paraense pela primeira vez: “Então eu fui várias vezes rever as entrevistas e numa dessas entrevistas foi que eu falei com o Santa Rita, que era o meu orientador lá, e disse pra ele: “vocês conhecem o pessoal, os negros do Trombetas? Que eu já conhecia das viagens de lá. “Não professora, nunca nós conhecemos”, só que alguém que foi daqui pra lá disse que tem gente muito parecida com os daqui ele indicava Nazita, Bena todos esses, tem pessoas muito parecidas pra lá e tem outros muito diferentes no físico, então eu disse: bem porque naquela época, o que eles fizeram, eles dispersaram as famílias para que não se comunicassem, dispersaram, uns pra cá outros pra ali, que é pra não se comunicarem”.

Durante a escravidão famílias inteiras foram separadas, e o contato, as notícias sobre seus entes não eram mais possíveis. A vontade de rever, de reencontrar possíveis parentes, famílias entre os municípios de Alenquer, Óbidos e Oriximiná culminou no primeiro Encontro Raízes Negras. Encontro realizado no ano de 1988 entre os negros do Baixo Amazonas, possibilitando o reencontro de muitas famílias que durante a escravidão foram separadas. Ocorrendo até os dias atuais, o encontro tem como objetivo fortalecer a luta das comunidades quilombolas.

Umas das dificuldades enfrentadas para que o encontro ocorresse eram a logística e o recurso para a realização. No ano de 1988, foi realizado o Primeiro Encontro Raízes Negras, que possuía como tema: “Do entrelaçar de nossas diferentes raízes brota o rebento da esperança”, realizado no Pacoval.

Foi um encontro emocionante porque foi a primeira vez que os quilombolas de Alenquer, Óbidos e Oriximiná se encontraram. Eles relembraram as histórias das lutas dos escravos fugidos, reencontraram parentes, descobriram primos e celebraram sua cultura. Neste encontro, perceberam que não estavam sozinhos (AZEVEDO, 2002, p. 142).

Participou do Encontro Raízes Negras o Centro de Defesa e Estudos do Negro no Pará (CEDENPA), que no período era a única organização que fazia referência acerca do negro no estado do Pará. A ACOB, então passou a responsabilidade do encontro, das realizações e dos novos quilombos para a CEDENPA, que logo marcou o segundo encontro no Jauari, localidade do município de Oriximiná, onde estava ocorrendo a possibilidade de ser implantada uma hidrelétrica, algo novo na realidade ribeirinha e que precisava ser esclarecido e também ouvir o povo e suas demandas e como aconteceria tal implantação. Outros órgãos e pessoas abraçaram a causa, firmando a realização do encontro a cada ano. Deste modo, aconteceu o segundo encontro Raízes Negras, no ano de 1989, nele foi fundada a primeira associação do município de Oriximiná, a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Oriximiná (ARQMO), fortalecendo a identidade quilombola.


FIGURA 03
Cartaz do 11º Encontro Raízes Negras
Fonte: RODRIGUES, João Neto Sousa, 2018.

Segundo Salles (2004), o Centro de Defesa e Estudos do Negro no Pará, mapeou as comunidades negras remanescentes, colaborando na fase de legalização, redação e estatutos da entidade da ARQMO. Além disso, foram identificadas por pesquisadores da Universidade Federal do Pará, 20 comunidades com cerca de 6 mil negros, remanescentes de quilombos formados há mais de 200 anos com as fugas de escravos do munícipio de Santarém, Óbidos, Alenquer, Monte Alegre e outros pontos do Médio Amazonas.

As pautas trazidas em cada Encontro do Raízes Negras demandavam as lutas, buscas de soluções para as problemáticas enfrentadas nos quilombos, elaborações de cartas reivindicando as demarcações das terras, a constante luta pela cidadania quilombola e também projetos que viabilizassem infraestrutura indispensável nas comunidades. No 8º encontro, ocorrido no ano de 1999, na comunidade Saracura, município de Santarém, assuntos como educação, gênero, desenvolvimento e titulação das terras, propiciaram que fosse criada uma comissão, a qual viajou para Belém a fim de buscar outras demandas acerca dos títulos das terras que já haviam sido demarcadas.

Salienta Treccani (2006), que em novembro de 1995 o INCRA criou uma equipe com a tarefa de produzir e acompanhar a implementação da política quilombola. Sendo o primeiro órgão a titular uma terra de quilombo, a comunidade de Boa Vista no município de Oriximiná. A comunidade apresentou seu pedido na Unidade Avançada de Santarém em 1994, realizou a autodemarcação do seu território, estabeleceu seus limites, em seguida foi reconhecida pela topografia do INCRA. Tudo foi possível através da coletividade entre os municípios envolvidos, que buscavam um objetivo em comum, o reconhecimento de suas terras tradicionalmente ocupadas. A partir da luta e das pautas reivindicatórias, tais municípios não mediram esforços para que suas demandas fossem aprovadas. Sabe-se que a luta continua, que apenas algumas comunidades, receberam sua titulação.

Territórios e territorialidades quilombolas de Óbidos-Pará

As comunidades quilombolas do município de Óbidos se situam em áreas rurais de várzea e terra firme. Possuem histórias e valores em comum, tanto na comunidade Silêncio e como no Arapucu, a dança do Marambiré. Para Azevedo (2002), o Marambiré é um rito sagrado, deslumbrante, dinâmico, fascinante, sedutor e cheio de evoluções. Maravilhoso na criativa imaginação humana e divino no seu poder mítico da natureza. Maior símbolo de resistência da vida cultural e de liberdade de todos os negros da Amazônia que, invocando Olorum, nunca aceitaram a tortura nem a morte imposta pela sociedade “branca” na pessoa dos senhores de fazendas e senzalas e, principalmente, na perseguição e na brutalidade cerrada do governo.

O Marambiré se faz presente nas comunidades, valorizando e revivendo os valores ancestrais, além das práticas de suas festividades religiosas e esportivas. Conforme Acevedo e Castro (1998) a territorialidade é uma síntese da apreensão desse universo pelo grupo. Concretiza-se em práticas cotidianas, na perseguição de estratégias de vida e de trabalho, nas execuções de ações que são criadoras à existência material e social. As relações de coletividade entre escola, igreja e clube de futebol, são ações que fortalecem tais comunidades, como os puxiruns[8]. As comunidades quilombolas vivem da pesca, do plantio de roças, e dos benefícios sociais.

Foi no ano de 1997 que a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Óbidos (ARQMOB), foi fundada, como a entidade representativa das comunidades quilombolas do município. Umas das primeiras medidas realizadas pela associação foi a abertura de um processo junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) buscando a titulação da Área das Cabeceiras, ocorrida no ano 2000.

Os remanescentes de quilombos criaram suas associações com o objetivo de lutar pelo reconhecimento de suas terras, existem atualmente 07 associações quilombolas no município de Óbidos. No Quadro 1, verifica-se as associações existentes no município e como se encontram os processos de titulação.


QUADRO 01
Comunidades quilombolas do município de Óbidos
Fonte: São Paulo, Comissão Pró-Índio de, 2018. Organização: SANTOS, Priscila Ribeiro dos, 2019.

A partir do movimento negro que se formou com os municípios do oeste paraense, Óbidos por possuir muitas comunidades quilombolas, vem fazendo o reconhecimento de suas comunidades e formando suas associações. Dessas 18 comunidades, apenas a Área das Cabeceiras no ano 2000 e a comunidade Peruana em 2018 obtiveram o título de seus territórios, as demais se encontram em processo de titulação.

No ano de 2020, aconteceria o 12º Encontro Raízes Negras, no município de Óbidos, na comunidade Arapucu. O Pré-Raízes Negras foi realizado no mês de abril nos dias 13 e 14 de 2019, na comunidade Matá. O mesmo contou com a presença de lideranças de algumas comunidades quilombolas do município obidense e representantes da Secretaria Municipal de Educação (SEMED).

É necessário manter fortalecido e organizado o movimento de luta quilombola na Amazônia obidense, pois é somente a partir da estratégia coletiva e comunitária entre seus moradores que se fortifica a espacialização e territorialização das lutas e Re-Existências no território, promovendo a valorização/ressignificação sociocultural quilombola.

Titulação da área das cabeceiras: uma luta pelo direito ao território quilombola

Com as realizações dos Encontros Raízes Negras nos municípios do Baixo Amazonas, as comunidades quilombolas do município de Óbidos começaram a trabalhar nos levantamentos de dados históricos de suas áreas, acerca de seus antepassados, objetivando compreenderem seus processos históricos e viabilidade para o auto reconhecimento como quilombolas.

Nos anos 1990, juntamente com a professora Idaliana Azevedo aconteceram as jornadas culturais e educativas onde foram construídas as árvores genealógicas de cada participante do encontro, possibilitando o trabalho em prol do reconhecimento da Área das Cabeceiras, como território quilombola, como afirma Verinha Oliveira, moradora da Área das Cabeceiras e liderança comunitária, em 13 de abril de 2019, em entrevista: “Fizemos toda a nossa árvore genealógica, a gente foi descobrir os nossos antepassados, que realmente eles foram descendentes de africanos, inclusive que alguns chegaram a ser escravos, e foi aí que nós fomos construir a história de nossas comunidades, foi muito bom, porque até aí ninguém tinha se interessado, todas as comunidades fizeram suas histórias”.

Através desses estudos os participantes foram descobrindo os primeiros fundadores de suas comunidades e a relação dessas pessoas com os municípios vizinhos, a comunidade Cuecé, por exemplo, remete seus primeiros moradores a uma comunidade chamada Sapucuá, município de Oriximiná.

O município de Óbidos possuía sua associação geral a ARQMOB, mas a mesma não poderia receber a titulação de nenhuma comunidade do município, justamente por ser uma associação a nível municipal, fazendo-se necessário criar outras associações, a fim de representarem as comunidades. Assim, foi criada a Associação de Comunidades de Remanescentes de Negros da Área das Cabeceiras (ACORNECAB), tendo como objetivo principal a titulação do território da Área das Cabeceiras e a valorização de suas raízes.

Essas novas formas de organização política implicam em novas táticas e estratégias levando a uma ampliação das pautas reivindicatórias na luta por direitos que vão dos direitos sociais básicos como saúde, educação, terra, crédito, bem como pelo reconhecimento de direitos culturais, como as formas de apropriação e uso da terra e dos recursos naturais, formas diferentes de cultos e valorização e reconhecimento dos conhecimentos acumulados por tais populações etc. (CRUZ, 2006, p. 54).

Por se tratar de uma área que abrangia 6 comunidades, citadas no início do processo de titulação, Castanhanduba, Apuí, Cuecé, Silêncio, Matá e São José, os trâmites para a titulação ocorreram com mais precisão por se tratar de um coletivo. Havendo todo um estudo antropológico, como a contribuição do próprio professor Eurípedes Funes, a ACOB deu um suporte muito grande na pessoa da professora Idaliana Azevedo e a presença do INCRA que efetuou cadastros e reuniões nas comunidades.

O dia para receber o título do território estava marcado para um encontro na comunidade Saracura, município de Santarém, mas alguns problemas ocorreram. A coordenação juntamente com os moradores já havia preparado uma comemoração para tal conquista, quando retornassem à Óbidos. Porém, durante o encontro foi repassado que o governo não havia liberado o título da área, o presidente na época era Fernando Henrique Cardoso. A justificativa se deu por conta de que o INCRA não mais seria o responsável em deliberar a titulação e sim um novo órgão, a Fundação Cultural Palmares.

Diante disso, as lideranças presentes se reuniram e redigiram uma carta de repúdio com as entidades presentes, anexando um abaixo assinado a qual enviaram ao governo e no ano seguinte, no ano 2000, ocorreu a titulação do território pela Fundação Cultural Palmares, com uma área de 17.189,6939 hectares. Assim, os moradores da Área das Cabeceiras obtiveram o título sobre a terra que deles já era por direito, como afirma Funes, 1999:

Terra conquistada, cedida por companheiros para fazer sua casa, herdada de avós, pais, cunhados, terra que une e garante a sobrevivência e o gosto de ser livre. Um uso coletivo dos lagos, onde abundam o pescado e das matas onde se busca a castanha, o breu, o cumaru e os remédios que curam (FUNES, 1999, p. 18).

É a partir dessa terra conquistada ou cedida que essas comunidades se formaram e tornaram possíveis modos de vida, valores identitários, festividades e os trabalhos coletivos, fazendo disso uma vivência comum e fraterna entre as mesmas. Vivem da pesca nos lagos e igarapés, das coletas na floresta e da agricultura familiar. Dentre as comunidades da Área das Cabeceiras, Silêncio se destaca com a maior densidade demográfica, ficando em segundo lugar a comunidade São José e Matá em terceiro. A relação de proximidade entre as comunidades passa a ser realizada principalmente pelo parentesco, pelos casamentos realizados entre moradores de comunidades vizinhas, constituindo uma relação intrínseca e entre os moradores.

Os direitos ao território quilombola das Áreas das Cabeceiras são permeados por múltiplas contradições, pois o Estado legitima o dispositivo da colonialidade e se torna ausente na medida em que não promove a formulação e implementação de políticas públicas nos quilombos amazônicos do oeste do Pará. Por isso, é necessário resistir para os quilombolas existirem e buscarem o fortalecimento de suas práticas espaciais e territoriais. Na atual conjuntura política que o país se encontra são necessários os constantes encontros que promovam discussões acerca de políticas públicas para a valorização da luta pelo território.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Devido aos inúmeros problemas enfrentados diante de uma sociedade que através de sua complexidade exclui, subordina e criminaliza os grupos sociais, segregando, promovendo indiferenças, ocorre por parte da população incredulidade, silenciamento, afetando diretamente sua organização e mobilização em busca de direitos. Promovendo muitas vezes o individualismo e, consequentemente, a desvalorização do movimento quilombola impedindo que projetos sociais, benefícios sejam implantados nas comunidades.

Mediante a isso, é necessário que os puxiruns retornem às suas origens, que haja trabalhos mútuos em busca da coletividade, é preciso buscar, conquistar os territórios que pouco a pouco estão se perdendo. A partir do ano de 2015 jovens quilombolas ingressaram na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), pelo Processo Especial Quilombola (PSEQ), permitindo que os mesmos perpassem barreiras, trilhando novos caminhos, adquirindo e amadurecendo seus pensamentos em um viés crítico e transformador. Fatores políticos e sociais dão às comunidades da Área das Cabeceiras seu verdadeiro sentido de pertencimento ao território em que vivem e a valorização acerca de suas lutas se fazem necessárias, principalmente quando se fala da presença dos jovens no movimento quilombola.

O reconhecimento e a luta pelo território permitem a essas comunidades a continuação de seus costumes, da relação com a floresta e rio, retirando destes, o essencial para a subsistência do grupo, para a manutenção familiar. Tais modos tornam as comunidades da Área das Cabeceiras singulares, quanto ao modo de vida que possuem, assim como suas festas, sua religiosidade e a vivência ribeirinha cotidiana no local. O território para as comunidades se configura na vivência dada a partir da floresta, do rio, do cultivo da roça, do extrativismo de espécies vegetais e da pesca.

Nesse sentido, é importante a conscientização sobre o território da Área das Cabeceiras, compreender a importância dos vínculos com a terra, floresta e rios, bem como a valorização destes elementos da natureza. A mobilização comunitária e a fraternidade se fazem necessárias para que a coletividade permaneça, e que novos objetivos possam ser conquistados pelas comunidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AZEVEDO, Idaliana Marinho. Puxirum: memória dos negros do oeste paraense. – Belém: IAP, 2002.

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FUNES, Eurípedes. Área das Cabeceiras-Terras de Remanescentes: Silêncio, Matá, Castanhanduba, Cuecé Apuí e São José. Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1999.

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MIRANDA, Evaristo Eduardo de. Quando o Amazonas corria para o Pacífico: uma história desconhecida da Amazônia. 2 ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

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SALLES, Vicente. O negro na formação da sociedade paraense. Textos reunidos. – Belém: Paka-Tatu, 2004.

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TRECCANI, Girolamo Domenico. Terras de Quilombo: caminhos e entraves do processo de titulação – Belém: Secretaria executiva de Justiça. Programa Raízes, 2006.

Notas

[4] Área das Cabeceiras é nome do território quilombola que abrange 11 comunidades no município de Óbidos, recebe esse nome devido a área possuir muitas cabeceiras de rios, ou seja, muitas nascentes.
[5] Para Milton Santos (2012), a rugosidade é o que fica do passado, como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares.
[6] Também denominados de quilombos, os mocambos eram formados por comunidades de negros (e negras) fugitivo/as e que foram escravizado/as sob o domínio português, no período do Brasil colônia. Esses mocambos se tornaram o lugar dos negros e negras escravizado/as e se configuraram em uma das formas de resistência dos africanos e afrodescendentes.
[7] Área de várzea que compreende inúmeras comunidades ribeirinhas do município de Óbidos.
[8] Mutirões realizados coletivamente nas comunidades.

Autor notes

[1] Mestranda em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia – PPGG/UNIR e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Geografia: Mulher e Relações Sociais de Gênero - Gepgênero/PPGG/UNIR
[2] Professora do Curso de Geografia da Escola Normal Superior da Universidade do Estado do Amazonas (ENS/UEA). Doutoranda em Geografia do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Geografia (PPGG/UNIR). Membro do Laboratório Gestão do Território (LAGET/UNIR) e Grupo de Pesquisa Gestão do Território e Geografia Agrária da Amazônia (GTGA/UNIR), Grupo de Pesquisa Políticas Públicas e Dinâmicas Territoriais na Amazônia (GPDAM/UFOPA), Grupo de Pesquisa Ensino, Pesquisa Interdisciplinar e sustentabilidade na Amazônia (ENS/UEA).
[3] Doutora em Ciências Sócio Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, pelo Núcleo de Altos Estudos da Amazônia - NAEA da Universidade Federal do Pará , Pós-Doutorado em Geografia Humana, na Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG -PR. Mestra em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo. Professora Associada do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Rondônia. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Mulher e Relações Sociais de Gênero – GEPGENERO. Docente do quadro Permanente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Rondônia.


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