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Religiosidade afro-amazônica: Condição do bem-viver na amazônia
Religiosidad afroamazónica: Condición de bien vivir en la Amazonía
Afro-amazon religiosity: Condition of well-living in the Amazon
Revista Presença Geográfica, vol.. 07, núm. Esp.02, 2020
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Artigos

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 07, núm. Esp.02, 2020

Recepção: 12/06/20

Aprovação: 22 Setembro 2020

Resumo: O presente texto objetiva apresentar breve cenário das religiões afro-amazônicas no contexto amazônico no sentido de indicar características quando relacionadas às práticas culturais, espirituais e sociais tais como: a pajelança indígena e cabocla muito forte ainda na região e que influencia, assim como é influenciada pela religiosidade afro-amazônica. Nesse sentido, buscou-se tecer abordagens acerca das comunidades de terreiro voltado para o culto dos caboclos e sua interinfluência na memória - tanto africanas como indígenas e sua contribuição para o Bem Viver na Amazônia. O Bem Viver aqui é entendido no sentido de uma outra possibilidade de modo de vida, respaldada numa nova relação entre ser humano e natureza e interconectada às diferentes manifestações de vida, sobrevivendo e vivendo dentro do modelo de desenvolvimento capitalista e de globalização instalado no mundo contemporâneo (ACOSTA, 2020, SOLÓN, 2019). Para tanto, são retratadas duas práticas de sagrado na sua inter-relação com a natureza, com a ambiência amazônica; as relações espirituais, cosmológicas, naturais, sociais e culturais instaladas e que geram rebatimentos no sentido de se estabelecer o ato de um Bem Viver. A opção metodológica foi à pesquisa etnográfica a partir das vivências e práticas dos autores, uma vez que, expressam as ancoragens a partir do duplo modo de vida: como acadêmicos e adeptos das comunidades de terreiro. De onde se pode considerar que as práticas espirituais, sociais e culturais dos povos originários africanos e indígenas podem contribuir de maneira expressiva à conquista da qualidade de vida na Amazônia - pautado no modo de produção.

Palavras-chave: Pajelança, Religião Afro-Amazônica, Amazonas, Etnografia.

Resumen: Este texto tiene como objetivo presentar un breve escenario de las religiones afro-amazónicas en el contexto amazónico con el fin de señalar características cuando se relacionan con prácticas culturales, espirituales y sociales tales como: la pajelança indígena y cabocla muy fuerte aún en la región y que influye, así como es influida por la religiosidad afro-amazónica. En este sentido, buscamos tejer enfoques sobre las “comunidades terreiro” enfocadas en el culto a los caboclos y su interinfluencia en la memoria, tanto africana como indígena y su contribución al Buen Vivir en la Amazonía. El Bem Viver aquí se entiende en el sentido de otra posibilidad de forma de vida, sustentada en una nueva relación entre el ser humano y la naturaleza e interconectada a las diferentes manifestaciones de la vida, sobreviviendo y viviendo dentro del modelo de desarrollo capitalista y globalización instalado en el mundo contemporáneo. (ACOSTA, 2020, SOLÓN, 2019). Para eso, se retratan dos prácticas sagradas en su interrelación con la naturaleza, con el ambiente amazónico; las relaciones espirituales, cosmológicas, naturales, sociales y culturales instaladas y que generan repercusiones en el sentido de instaurar el acto de un Vivir Bien. La opción metodológica fue la investigación etnográfica a partir de las vivencias y prácticas de los autores, ya que expresan los anclajes desde la doble forma de vida: como académicos y seguidores de las “comunidades terreiro”. Desde donde se puede considerar que las prácticas espirituales, sociales y culturales de los pueblos indígenas africanos e indígenas pueden contribuir significativamente al logro de la calidad de vida en la Amazonía - basada en el modo de producción.

Palabras clave: Pajelança, Religión afro-amazónica, Amazonas, Etnografía.

Abstract: This text aims to present a brief scenario of Afro-Amazonian religions in the Amazon context in order to indicate characteristics when related to cultural, spiritual and social practices such as: the indigenous and cabocla pajelança very strong still in the region and which influences, as well as is influenced for Afro-Amazonian religiosity. In this sense, we sought to weave approaches about the terreiro communities focused on the cult of caboclos and their interinfluence in memory - both African and indigenous and their contribution to the Good Living in the Amazon. The Bem Viver here is understood in the sense of another possibility of way of life, supported by a new relationship between human being and nature and interconnected to the different manifestations of life, surviving and living within the model of capitalist development and globalization installed in the contemporary world (ACOSTA, 2020, SOLÓN, 2019). For this purpose, two sacred practices are portrayed in their interrelation with nature, with the Amazonian ambience; the spiritual, cosmological, natural, social and cultural relations installed and which generate repercussions in the sense of establishing the act of a Good Life. The methodological option was ethnographic research based on the authors' experiences and practices, since they express the anchors from the double way of life: as academics and adherents of the terreiro communities. From where it can be considered that the spiritual, social and cultural practices of indigenous African and indigenous peoples can contribute significantly to the achievement of quality of life in the Amazon - based on the mode of production.

Keywords: Pajelança, Afro-Amazonian Religion, Amazon, Ethnography.

INTRODUÇÃO

Um país com a dimensão territorial (8 milhões de km²) e, socialmente, diversificado (estrangeiros e brasileiros com diferentes origens e culturas); o Brasil apresenta, no tocante as práticas sócio religiosas, bem como diferentes matrizes - Católica, Protestante, Espírita, Afro-brasileira, Afro-amazônica, e as Religiões praticadas pelos povos originários, indígenas e africanos distribuídas nas cinco macrorregiões (Sul, Sudeste, Centro Oeste, Nordeste e Norte) que mantiveram seus credos com uma forte base estruturada na ancestralidade e no culto espiritual das energias emanadas da natureza.

Ao longo dos trezentos anos de escravidão no Brasil (do Século XV ao Século XVIII), a formação política e econômica deste país caminhou junto com o processo de miscigenação com a população originária que aqui habitava e foram denominados de ‘indígena’. Povos esses, que dispunham de outras dimensões existenciais atreladas às formas harmônicas com os bens naturais e ancestrais de diferentes temporalidades divinizados e, continuamente, presentes no cerne da relação entre os homens e a natureza.

Neste sentido, o contato dos povos originários de origem africana e indígena que compunham a população brasileira, no início do século XIX, bem como para os brasileiros descendentes ao longo dos séculos XX e XXI - o legado de expressões do sagrado, representa forte elemento de resistência aos processos de consolidação política, econômica e social de imposição de subalterna da identidade étnica impostas, muitas vezes, pela violência física e segregação espacial.

Sendo assim, o legado deixado pela escravidão africana no Brasil é marcado pela diversidade afro-religiosa. De modo genérico, os africanos da Nigéria são representados pelos Iorubás (Candomblé Ketu), os do Daomé e do Benin com os Nagôs (Tambor de Mina), os de Angola com o (Candomblé de Angola), acrescido ainda de outros povos como Jeje, Fon - todos com liturgias próprias e forte presença nas religiosidades afro-brasileiras difundidas nas cinco grandes regiões do Brasil.

Neste contexto, o século XIX é emblemático e se caracteriza como uma ‘encruzilhada’[5], das quais os aspectos da consolidação da nação – geográfica (ocupação de terras), políticas (adoção do regime republicano), econômica (objetivando a industrialização no sul e exploração dos bens naturais no norte e exploração maciça da mão de obra nordestina e imigrantes presentes nas diversas porções), social (marcada pela formação do ‘povo brasileiro’) e religiosa (institucionalização de uma matriz) – estavam em curso naquela ocasião em diferentes partes do espaço nacional.

Em estudos, Capone (2018, p. 93)[6] aponta cinco zonas de concentração do que ela chama de ‘repartição dos Cultos Afro-brasileiros’, que nos remete às cinco regiões do Brasil assim distribuídos: 1. Norte: tendo dois centros (Belém e São Luís) com as seguintes denominações: mina, Tambor de Mina, Tambor da Mata; 2. Uma parte do nordeste com os centros (Fortaleza, Recife, Maceió e Aracajú), ela aponta a presença do Xangô, Catimbó e Jurema; 3. Em Salvador: tradicional ponto de entrada dos africanos - a autora aponta o Candomblé; Enquanto 4. O centro oeste e sudeste – os centros (Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro) os cultos de Candomblé, Macumba e Umbanda. Por fim, o Sul 5. Com apenas Porto Alegre na condição de centro, a presença do Batuque. Há de se ressaltar que um dos centros do Norte, Belém, tem também se destacado com a concentração do culto da Umbanda. Conforme pesquisa realizada em 2010 pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome para construção do perfil socioeconômico das comunidades de terreiro – esses identificados 1.400 terreiros, onde a maioria era de Umbanda. Com isso, pode-se visualizar outra realidade na zona de concentração apresentada por Capone.

Temos a compreensão de que, o fato que antecipa a descrição espacial acima, no tocante a formação e composição da afro-religiosidade nacional, é atribuído ao surgimento da Umbanda por volta do ano de 1910 – 1920, pelo Caboclo das Sete Encruzilhada, cujo corpo enfermo utilizado nas incorporações era do médium Zélio de Morais. De fácil assimilação, a Umbanda em pouco tempo era disseminada no Estado do Rio de Janeiro e, dentro de 30 anos, já na década de 1950 já se tinha notícias de sua prática nos estados da Bahia, São Paulo, Rondônia, Maranhão, Amazonas e no Pará, ao modo sincrético com os cultos locais e diaspórico.

Este texto, de natureza etnográfica, apresenta as experiências de três membros de comunidades de terreiro e de diferentes idades iniciáticas e funções onde, nas condições de participantes e pesquisadores, direciona olhar para o culto de Caboclo; esse tendo como objetivos discorrer sobre o culto aos caboclos, sua importância na memória afro e indígena, nas religiões afro-brasileiras e sua reflexão na Amazônia no que se refere à relação entre o sagrado, natureza e saúde, condicionantes do Bem Viver na Amazônia.

De base antropológica, a Etnografia apresenta condições de acesso a uma dupla perspectiva: ‘olhar para o outro enquanto olha para si’. É neste sentido em que ser de Comunidade de Terreiro e estudar as questões que envolvem o terreiro, sua gente, seus ritos, suas entidades, propicia o desenvolvimento de reflexões acerca da Amazônia a partir do culto aos Caboclos e ao bem viver das pessoas que fazem das Comunidades a extensão de suas vidas.

Neste sentido, Rocha e EcKert (2008, p. 04), nos fala que

O observar na pesquisa de campo implica na interação com o Outro evocando uma habilidade para participar das tramas da vida cotidiana, estando com o Outro no fluxo dos acontecimentos. Isto implica em estarem atento(a) as regularidades e variações de práticas e atitudes, reconhecer as diversidades e singularidades dos fenômenos sociais.

O uso do método etnográfico neste estudo é direcionado ao fenômeno social marcado pela presença do culto de religiões afro-brasileiras onde, por meio da observação direta, como apontam Rocha e EcKert (2008, p. 02) que “é sem dúvida a técnica privilegiada para investigar os saberes e as práticas na vida social e reconhecer as ações e as representações coletivas na vida humana. E se engajarem em uma experiência de percepção de contrastes sociais, culturais, e históricos” [...], emanados pelos nossos interlocutores diretos e indiretos – filhos de santo e seus caboclos – estes mesmos autores consideram ainda que:

A pesquisa etnográfica constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do escutar (ouvir) impõe ao pesquisador ou a pesquisadora um deslocamento de sua própria cultura para se situar no interior do fenômeno por ele ou por ela observado através da sua participação efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta. Rocha e EcKert (2008, p. 02). [grifo nosso]

Neste sentido, nossos tempos de convivência nas comunidades de Terreiro equivalem ao tempo de pesquisa. Com a diferença de que, o momento de captura do fenômeno religioso, fora obtido pelas sucessivas vezes em que, despretensiosos do intuito da pesquisa, estávamos vivenciado as relações sociais inerentes à dimensão simbólica em condição comunal de igualdade afro-religiosa, confere, a partir dessa premissa, a obtenção de informações de natureza qualitativa e integrada aos contextos sociais, antropológicos e geográficos da pesquisa.

Sobre o surgimento do método etnográfico, Rodrigues, (2018, p. 99) nos conta que a etnografia teria surgido por intermédio o polaco-inglês Malinowski (1988-1922), com o intuito de estudar os povos primitivos, por meio da ‘observação-participante’, dentro da primeira década do século XX, e nos reforça que ao adotar o referido método, o pesquisador, “não basta observar, é preciso integrar-se e participar plenamente - e num tempo prolongado – nas atividades quotidianas do grupo ou sociedade em estudo” (p.100).

Apesar da formação dos pesquisadores, a pesquisa etnográfica pode ser aplicada sem maiores percalços. A convivência dentro das comunidades de terreiro rompeu possíveis entraves que pudessem ser ocasionados pela falta de familiaridade com o tema, com as pessoas, com o espaço e com o tempo da pesquisa.

Coadunamos com Rodrigues, (2018, p. 107) quando ele nos diz: “As características pessoais do etnógrafo – como, por exemplo, pertença étnico-racial, sexo, idade, orientação sexual, filiação religiosa – tem impacto considerável no trabalho de campo” - neste caso, como apontado anteriormente, ser parte integrante da Comunidade nos permitiu lugar de destaque no ato de realizar o exercício de pesquisa por meio da etnografia.

Uma vez que não estávamos pesquisando ‘povos primitivos’, assim como não éramos estranhos nas comunidades de Terreiro, nos alinhamos para compreender a representatividade dos Caboclos. Nos Cultos afro-brasileiros, os “Caboclos representam os espíritos de índios” Silva (1994, p. 121); onde, uma vez mortos, voltam para a convivência dos mortais a fim de trabalhar com a cura de mazelas acometidas aos mais desfavorecidos.

Compreendemos, contudo, que a etnografia assumiu caráter transversal, como por exemplo, nas ciências humanas e sociais e até mesmo nas áreas da saúde por meio da psicologia, enfermagem apenas para citar algumas. Neste sentido, estudos dentro do campo das religiões possibilitam melhor estratificação dentro dos diversos campos científicos, a saber: Geografia da Religião, História da Religião, Sociologia da Religião, Antropologia da Religião, Psicologia da Religião dentre outras cuja Religião e as Religiosidades atuam como norte ao vasto horizonte de possíveis estudos.

Assim, as alternativas de procedimentos metodológicos adotados foram: a pesquisa participante adotada na pesquisa na direção do que Brandão (2013, p. 5) que defende enquanto “uma das modalidades em que há um envolvimento dialógico e de destinação tão amplo quanto possível, e em que os ‘sujeitos pesquisados’ são também essencialmente coautores e cofatores de todo o seu acontecer, sendo também os seus destinatários únicos ou prioritários”; os registros fotográficos por meio de aparelhos telefônicos e câmera fotográfica em momentos festivos, sempre com autorização das lideranças e o consentimento das entidades fotografadas; e, sempre que necessário, as conversas informais e as entrevistas foram realizadas junto aos caboclos e seu filho de santo, bem como a liderança do terreiro com o intuito de coletar informações qualitativas acerca do fenômeno estudado.

O caráter coletivo deste texto, dentro do método etnográfico e interdisciplinar, corrobora por um recorte temporal de pesquisa distinto. Isto se justifica pelas posições hierárquica, pelo tempo de convivência com e entre os membros das comunidades de terreiros, bem como do exercício religioso ainda em curso – somam mais de 20 anos - e o olhar (no decorrer dos últimos anos) dos pesquisadores, cuja vivência no dia a dia real, simbólico e mítico – na relação com o Sagrado afro-religioso nas cidades amazônicas – se faz com intensidade.

Características do culto das comunidades de Terreiro Afro-amazônicas do estudo Na cidade de Tabatinga-AM

No estado do Amazonas, a cidade de Tabatinga, localizada na área de tríplice fronteira com a Colômbia e o Peru, apresenta oito comunidades de Terreiro distribuído em dois cultos: Seis de Umbanda e um de Tambor de Mina. Bem distribuídos nos espaços urbanos da cidade, os terreiros são edificados ao fundo da residência do líder da Comunidade em alvenaria - somam seis metros por um e é edificado em madeira. Poucos apresentam espaço destinado ao plantio de plantas para uso do ritual.

No tocante aos praticantes, somam 60 pessoas de diferentes idades – desde criança de colo até adultos em idade maior - e nacionalidades que compõem a fronteira. Seus participantes indiretos podem chegar a 150 com a frequência mais expressiva de mulheres e de jovens homossexuais oriundos de várias cidades que somam a microrregião do alto Solimões do Amazonas.

Toda essa mobilização é acionada pelos momentos de cultos abertos como as celebrações festivas de ‘aniversário’, de ‘desenvolvimento’, da ‘chamada’ e das ‘obrigações’. Para as festas de ‘aniversário’ muitos filhos de Santo comemoram o dia em que ocorreu o ‘nascimento’ da entidade – marcado pelo dia em que ela anunciou – publicamente – seu nome por meio da cantiga ritual denominada de Ponto.

Chamamos a atenção para o fato de que, o ‘aniversário’ aqui é uma alusão à outra forma de existência e que, aparentemente, se assemelha ao aniversário do médium. Esse ‘aniversário’ não está associado ao tempo cronológico de dimensão biológica, tão pouco ao tempo de idade iniciática – contada quando se renovam os votos por meio das obrigações.

Com menor movimento, as festas realizadas durante as giras de ‘desenvolvimento’, se faz presente poucos convidados. Geralmente não há publicização do evento por se tratar de algo mais interno à comunidade religiosa. Tem a finalidade de propiciar a familiarização da Entidade nesta nova forma de existência, ao mesmo tempo em que, prepara o médium para a nova vida em comunhão com sua dimensão espiritual.

As ‘chamadas’ representam um ‘tempo extrassensorial’ marcado pelo manuseio de elementos naturais e materiais voltados ao trabalho a ser desenvolvido pelas entidades junto aos clientes ou filhos de santo da Comunidade, sob a supervisão do Pai de Santo. Eventualmente pode ocasionar com a vida de outras Entidades que, ao término dos trabalhos, podem realizar uma rápida confraternização.

Por fim, atividades festivas pós ‘obrigação’, é o momento de maior atração de visitantes e simpatizantes. Marcada pela mudança de idade ritual de um(a) neófito ou do sacerdote, a Comunidade de terreiro em festa recebe líderes de outros Terreiros, seus filhos, seus seguidores para, em comunhão, se apresentar e acompanhar da fase do crescimento da idade e vida espiritual de membros de outra Comunidade. Neste momento, as festas são mais expressivas dadas à complexa rede de relacionamentos entre as autoridades afro-religiosas.

Na cidade de Belém-PA

A região metropolitana de Belém desde a sua constituição em cidade possui uma vasta história de vivências de práticas de religiões afro-brasileira, bem como de pajelanças indígenas haja vista que hoje temos um quadro real e expressivo de índios citadinos. A região Amazônica sempre foi vista e conhecida como a terra da pajelança indígena. No entanto, a construção da chegada de povo originário africano, assim como a migração de brasileiros de outras regiões como o Nordeste, Maranhão, Ceará assegurou a construção de outras práticas de cura que emprenhadas do já existente construiu outras possibilidades de pajelança e práticas espirituais, sociais e culturais na Amazônia. Figueiredo (1996) descreve casos da existência de pajés na cidade de Belém, a partir de pesquisas históricas de boletins policiais, no século XIX, em pleno auge da borracha.

Outras características interessantes da cidade de Belém, assim como de muitas capitais da Amazônia é o caráter periurbano. A Amazônia na sua estrutura geográfica não pode afirmar que seja eminentemente urbano. O urbano e o rural dialogam e estão próximos sempre. E assim é a cidade de Belém, a qual convive com realidades com caráter de modernidade ou de tecnologias de ponta e, ao mesmo tempo, se vive e convive com realidade que remontam ao século XIX, do tipo carros sofisticados e carroças transitando nas ruas, a existência de muitas feiras e hortas na região metropolitana e nos bairros periféricos ilustrando a ruralidade.

E é nesse cenário que se encontra o Terreiro Rei Sebastião e Toya Jarina, criado na década de 1960, com aproximadamente 50 anos de existência.


FIGURA 01
Ana Lídia. No interior do terreiro, no festejo de Rei Sebastião e seu Antônio Luís
Fonte: Acervo Terreiro Rei Sebastião e Toya Jarina, Jan. 2020.


FIGURA 02
Ana Lídia. Festejo de Natal para pessoas em situação de vulnerabilidade social
Fonte: Acervo Terreiro Rei Sebastião e Toya Jarina, Dez. 2019.

Teve como primeira sacerdotisa, a criadora do terreiro, dona Dinair que viveu uma existência de entrega incondicional a prática da Umbanda, atendendo pessoas de várias condições sociais, socorrendo-as nas suas dificuldades e necessidades espirituais e materiais. Ele se localiza num bairro considerado semi-periférico, e com boa localização, permitindo acesso facilitado aos supermercados, feiras, shopping, campos de futebol, igrejas, postos de saúde, lojas variadas, dentre outros. Dona Dinair costumava dizer que conseguiu criar seus nove filhos com a ajuda da entidade espiritual Toya Jarina Maria de Jesus, por meio de seus trabalhos e atendimentos espirituais - ela sustentava sua família, o que não significa que ela cobrava pelos mesmos. Significava que quando ajudava uma pessoa nas suas necessidades sempre era agraciada com uma ajuda também, que lhe oportunizará alimentar a família.


FIGURA 03
Ana Lídia. Mãe Dinair, incorporada com a Cabocla Jarina
Fonte: Acervo Terreiro Rei Sebastião e Toya Jarina, 1975.

Depois de falecida, quem lhe substituiu foi seu filho Elivaldo que ocupava o cargo da abatazeiro[8] no terreiro. Elivaldo depois de muita resistência assume o terreiro, e cumpre sua missão até hoje, ampliando o universo de atuação. Buscando satisfazer uma vontade de sua mãe, que era fazer caridade a doentes com hanseniase, ele passa a desenvolver também sua essência espiritual na Vila do Prata, localizada no município de Igarapé-Açu, um leprosário criado no início do século XX. Nesse lugar constrói um terreiro e também desenvolve trabalho social com a comunidade por meio de atividades educativas, ambientais, de lazer, assistencialistas, como doação de sopas e de cestas básicas, dentre outras.


FIGURA 04
Ana Lídia. Pai Elivaldo na Festa Junina no Terreiro
Fonte: Acervo Terreiro Rei Sebastião e Toya Jarina, 2011.

O terreiro hoje desenvolve ações vinculadas à prática da religião umbandista com o trabalho social, na cidade de Belém - também se faz doação de sopas, cestas básicas para pessoas em situação de vulnerabilidade social que vem de muitos bairros da cidade e até de alguns distritos mais distantes. Nesse sentido, esse é um terreiro que busca conciliar a missão espiritual e o trabalho social como consequência e de complementação a missão espiritual.

Na cidade de Cacoal-RO

Na cidade de Cacoal, encontramos três Terreiros de Umbanda. Um apresenta o Culto aos Orixás, dois se dedicam, com mais expressividade, ao Culto de Caboclos. Em um desses, nosso olhar se fez presente graças à relação de amizade com nossos interlocutores para além da relação religiosa. Neste sentido, as pesquisas foram realizadas em momentos de celebração e reuniões internas, na condição de ‘visitante’.

Naquela ocasião, apenas observamos o desenvolvimento das atividades religiosas, ao passar do tempo, realizamos conversas informais com o intuito de melhor assimilar as experiências vivenciadas. Das conversas informais, realizamos a coleta de depoimento livre acerca da dinâmica de funcionamento da casa e leitura de manuais elaborados pelo Sacerdote.

Este estágio fora iniciado em 2018 e 2019, sempre que havia o convite, por parte do Sacerdote e de uma amiga e membro da comunidade do Ilê de Iemanjá a participar das atividades – das quais discorro, resumidamente, abaixo.

Os cultos (reuniões) na Casa de Iemanjá são realizados às terças-feiras para dirimir questões internas (administrativas) e, aos sábados, impreterivelmente a partir das 19h e, estendendo-se até 22h e, às vezes, 23h as giras. Estas que tem sempre como abertura aos trabalhos, cânticos para Exu e, em seguida, dependendo da semana ou mês, são direcionados para Exus, Caboclos, Orixás.

A casa possui 17 (dezessete) membros que, entre eles, 6 (seis) ficam na assistência durante as atividades internas (giras), independente para quem são destinados os cânticos naquele momento.

Geralmente os horários das atividades são das 19h até 22h; mas em determinados momentos ou dias, no âmago da gira – a mesma tem seus trabalhos estendidos com as entidades para auxiliar o Babalorixá no decorrer dos trabalhos e, logo após são servidos o ajeum (comidas: sempre dois tipos são servidos ao final para os visitantes e membros da casa).


FIGURAS 05 e 06
Momentos diferentes da Gira na Casa de Iemanjá
Fonte: Reginaldo Conceição da Silva. Cacoal, Rondônia 22 de agosto de 2020 às 19h.


FIGURA 07
Filhos da Casa de Iemanjá com vestes específicas para o dia da Gira.
Fonte: Reginaldo Conceição da Silva. Cacoal, Rondônia - 22 de agosto de 2020 às 19h.

Na realização dos trabalhos os membros da casa estão revestidos de branco: as mulheres com uma blusa branca e saia com batas e um turbante enrolado ao Ori (cabeça); e os homens de calça branca (chamado de calçolão) e camisa branca – todos utilizam o branco em respeito às divindades (Orixás).

A casa possui apenas um atabaque e outro instrumento de percussão que pertence ao Babalorixá – este que é músico na cidade e utiliza como apoio percusional. Não tem um Ogan específico, pois até o momento todos estão na Casa de Iemanjá se preparando especificamente para as feituras em seus respectivos Orixás de cabeça. Assim, não podemos afirmas a existência de Ogan na casa, mas sim de um rodízio dos filhos (homens) que, sempre tocam quando solicitados pelo Babalorixá.

No toque para os Caboclos – geralmente o Babalorixá antes de iniciar a gira avisa a todos os presentes que o (toque ou gira) para aquele dia será guiado por uma entidade específica; nesse caso, o Caboclo que após os toques destinados ao Zé Pelintra, do Babalorixá (guia da Casa), são chamados (invocados) os caboclos que cantam, dançam, bebem e, após, dão assistência (atendem) em parceria com o Caboclo do Babalorixá que coordena os trabalhos dos demais em terra.

Esses, os Caboclos, são revestidos de acordo com a sua origem (local de onde são denominados: Bahia, Amazonas, Sul e outros); cada um em especial, tem suas cantigas particulares, mas são entoadas pelos demais consequentemente e sem distinção, porém dentro de uma mesma linhagem sacerdotal.

Algumas reflexões sobre o caráter da religião e as práticas espirituais, sociais e culturais afro-amazônicaReligião: conceitos e abordagens temporárias

Tomemos como definição de Religião, cunhada por Meslin (2014, p. 50), ao qual, segundo ele a religião é “como uma lei considerada sagrada porque ela dá, em nome da vontade divina, as regras morais da vida; como uma comunidade que une os fiéis e como um caminho que permite ao homem ultrapassar sua própria condição de se ser marcado pela finitude, unindo-se a Deus”. Uma vez que assim adotemos, não negamos os vários conceitos atribuídos ao termo Religião.

Meslin (2014, p. 48) considera ainda que o conceito de religião apresenta duas direções: para ele “uma é a valorização daquilo que o homem crê que são realidades exteriores de si mesmo, mas que ele reconhece como objetivas e constituem para ele o divino”. O que nos levou a corroborar com este conceito, e a outra direção “é a exclusiva atenção às atitudes pessoais e as ações que decorre da crença” que ele acompanha outro conceito que nos permite melhor direcionar ao nosso objeto de estudo. Neste caso, de ‘experiência religiosa[9]’, observada a partir de nossas vivências com suas diferenças de tempo (cronológico e iniciático) e lugar de culto, aproximados pela vertente da afro-religiosidade amazônicas, da qual a fé no nosso objeto de estudo permite e aciona a experiência religiosa.

Neste sentido, “Sabemos que toda fé traduz, incorporando em si mesma, ideias, sentimentos, práticas que, com ela, estruturam a experiência religiosa do sujeito numa totalidade complexa, em que elementos subjetivos, psíquicos, votivos e intelectuais combinam com imperativos éticos e sociais” (MESLIN, 2014, p. 119). (Grifos do autor)

E completa:

Esse conjunto vivo é inseparável da experiência do homem crente [...]. Se só a fé permite caracterizar uma experiência como religiosa porque ela acolhe como uma Realidade viva uma palavra divina dirigida ao homem e ela constitui um ato de existência e de compromisso da pessoa, enquanto ela é um modo de conhecimento do divino (MESLIN 2014, p. 119).

E, de forma correlata, ao que vivenciamos e estudamos, tomemos como nos alerta em duas passagens, que “é interessante observar, com efeito, que as formas religiosas que aparecem diante de nós dão prioridade à experiência direta do raciocínio metafísico” (p. 49) onde “esse duplo aspecto da existência e de conhecimento deve estar presente em toda análise religiosa” (p. 119), elementos capazes de olhar o outro a partir de nós, de nossas comunidades.

A religião afro-amazônica que adotamos para estudo, a Umbanda neste sentido, também está contemplada no sentido conceitual do termo pelo autor.

Para ele, a religião

[...] está assim situada no nível mais íntimo, mais profundo, lá onde não existe oposição entre o sujeito e o objeto, o saber e o agir. Só o aprofundamento da religião pode permitir penetrar-lhe todo o mistério. A procura, portanto, de um sentido, a partir da experiência religiosa mesma e de uma vivência pessoal e que permitirá captar a religião em sua verdadeira essência (MESLIN, 2014, p. 38).

Por religião afro-amazônica, tomemos as impressões de Motta (2006, p. 99-114), e Berkenbrock (2012), em que, para estes autores, são religiões cujas características apresentam o culto aos Orixás, Voduns e outros Espíritos (Caboclos, Exus, Preto Velho, Encantados entre outros) deificados por grupos de origem africana e cultos indígenas presentes nas diferentes regiões brasileiras. Suas características mais marcantes estão: uso dos instrumentos sonoros; pelo culto as forças da natureza e seus representantes espirituais; forma ensino e de apreensão por meio da oralidade; apresentam aspectos de iniciação que, por meio do transe, acontece o contato com a experiência íntima com o sagrado.

Grafamos ‘afro-brasileiro’, assim como Portuguez (2015) com o hífem por compreender a existência sincrética das experiências religiosas praticadas pelos africanos e seus descendentes com os cultos de origem nacional praticada pelos indígenas localizados onde os contatos religiosos foram assimilados e mantidos atendendo a dimensão espiritual.

Dentre a diversidade dos cultos afro-brasileiros, como sinalizamos acima, nossos olhares estão na Umbanda enquanto de modo a compreende-la como uma religião aberta às variantes populares de exercício religioso no qual, o culto de Caboclo (CONCONDE, 2004, p. 281-303; SOUZA, 2004, p. 303-317 e SHAPANAN 2004, p. 318-330[10], marca a expressividade mítica e existencial do modo de viver das identidades religiosas na Amazônia – o que não difere das outras regiões - nos dias atuais com forte vínculo à ancestralidade.

A ascensão à dimensão ancestral tem como base a transição entre mundos. No trabalho de doutorado de Leite, em 1982, reeditado em 2008, ele assim escreve:

Com o fim da existência visível, uma das dimensões dessa problemática, que indica está em curso uma notável mutação do homem, é aquela consubstanciada na noção de desordem, provocada pelo rompimento da união dinâmica e interdependente dos elementos vitais constitutivos do ser humano (2008, p. 1994).

E continua,

A concepção de desorganização, ruptura de equilíbrio, separação, lembremo-nos, não implica aniquilação total dos elementos vitais, nem mesmo a do corpo, (...) sendo este o dado básico para a explicação da imortalidade do homem e da concepção definidora do ancestral (...) a noção mais histórica e imortal do homem, o fim da existência visível guarda, em grande parte, um caráter mágico e exterior ao ser humano (2008, p. 1994).

A compreensão da vida, enquanto dimensão simbólica para os praticantes das religiões afro-amazônicas rompe com o desequilíbrio das formas existenciais provocado pelo rito inevitável e iminente da morte física. Neste instante é acionado, o renascimento simbólico, por meio de complexos ritos funerários[11], as tentativas de reorganização do caos deixado pela morte ou, numa perspectiva mais elaborada, Van Gennep[12] (2011) denomina de ‘ritos de passagem’.

Neste contexto, negros escravizados, indígenas, sertanejos, baianos e outros - após passagem pelo rito de passagem, de algum modo fora alocado à dimensão espiritual e, uma vez acionado pela prática ritual de transe nos cultos afro-amazônicas, assumem o corpo do médium ao qual se estabelece uma relação familiar direta e na comunidade, a relação familiar indireta.

Se por um lado o Estado tutela o corpo do falecido, por outro as Comunidades de Terreiro se encarregam de cultuar a essência da espiritualidade humana em forma de Entidades. Aqui, as experiências religiosas – vividas e observadas – não apresentam uma rígida temporalidade e espacialidade. Se as mazelas sociais foram superadas com a morte, a liberdade que esta trouxe, os sons emanados da violência ganham ares de expressão oral musicalizadas por meio dos pontos, ou seja, das cantigas rituais acompanhadas de instrumentos sonoros, bebidas, cigarros e uma assistência humana dando-lhes novos significados da vida.

Imaginários do Caboclo como objeto de estudo

O olhar para a Umbanda enquanto religião afro-brasileira, não fora algo aleatório. Desde o olhar da Sacerdotisa, passando pelo Ogã até chegar ao yaô[13] (não temos aqui um sentido hierárquico interno às Comunidades religiosas), fora necessário direcionar os esforços no sentido metodológico facilitando o contato com o nosso objeto: culto das representações do Caboclo, onde, desde a sua anunciação em 1910, é o ‘Ser em Si’, o elemento central no culto.

A intencionalidade a ser abordada neste tópico é descrever como se constrói o imaginário e a cosmologia da compreensão do Caboclo e entidade espiritual na Umbanda em uma ambiência como a Amazônia. A Amazônia pela sua formação natural possui uma riqueza de ecossistemas e biodiversidade que a torna singular, como todo sistema natural similar, as condições de vida nas suas diferentes dimensões são diversas e plurais. Dentro desse cenário se oportuniza dinâmicas singulares de entrelaçamentos entre as expressões de ser vivo, tanto na esfera animal, quanto na vegetal e na humana. Existindo o entrelaçamento das mesmas e originando novas possibilidades de vida.

Traduzindo para as práticas espirituais, culturais e sociais de origem afro-amazônica, como a Umbanda – ela se apresenta, por se constituir na síntese de outras práticas religiosas, dentre elas o Catolicismo, Kardescismo, africanas e indígenas; ela congrega a junção de seres espirituais que estão na esfera do sobrenatural, mas que também se relaciona com a vida terrena. Esses seres, provavelmente pela aproximação que se constitui e se consolida com os seres humanos passam a se relacionar com eles de maneira mítica e, ao mesmo tempo, real. Mas eles não podem vir do jeito que eles são, sejam botos, sejam cobras, sejam marinheiros, porque eles estão e são encantados, foram encantados pela força da natureza, e com isso precisam da matéria de um ser humano, de um corpo humano para tomarem e realizarem seus procedimentos de cura, por exemplo.

Nascimento (2018, p. 49) ao construir o que define como ciência do sagrado explica a relação entre os saberes do sagrado, o sujeito que a recebe e sua compreensão como dádiva de Deus.

É desse sujeito que se aborda nesta tese, que possui um conhecimento, uma ciência que ele mesmo desconhece enquanto tal, porque ela não é oriunda de uma escolarização formal. Apesar disso, ela existe, ela cura, ela conhece e, sobretudo, ela ajuda as pessoas a se sentirem melhores na sua relação com a vida. Essas pessoas, o pai ou mãe-de-santo, a/o curandeira/o, rezadeira, pajé, vidente são apenas meios de comunicação entre um poder maior, sobrenatural, transcendente e que possui uma ligação direta com o poder supremo, que os sujeitos definem como Deus. E existem aqueles que são os intermediários de Deus, que são os guias Espirituais, os encantados, os caboclos, os espíritos que baixam para ajudar aqueles que estão precisando de ajuda, conforme citado acima. Desse modo, os sujeitos autônomos de cura são a materialização dos seres sobrenaturais para repassar seus saberes e conhecimentos. Conforme são denominados na linguagem própria dessas religiões, são os aparelhos, os instrumentos, os cavalos, ou seja, aqueles que asseguram a transmissão, a viagem das informações até quem as recebem.

Essa interação entre forças naturais e os seres naturais também se coadunam e se inter-relacionam construindo o que seria uma grande força cósmica ou cosmológica que gera energias que ultrapassam a compreensão da ‘vã filosofia’. Eles estão nos rios, nos igarapés, nas matas, nas pedreiras, nos mangues, nos animais. E quando eles vêm para participar de uma linha de cura, eles cantam seu ponto, sua doutrina[14], informando um pouco do seu encante sagrado, tal como a doutrina da entidade João da Mata, a linha de cura.

Sua mãe quando lhe teve/embaixo do Juremá/para não ser descoberta/lançou seu corpo no mar/e a Iara que passava/levou-o para criar/é pequeninho e temeroso/mora nas ondas do mar/ele é moleque teimoso/não gosta de ver teimar/ainda não viu essa doença/que ele não possa curar/ João da mata trabalha com Cipriano e Jacó/trabalha também com a lua, com as estrelas e o sol. (coletada em campo junto a entidade João da Mata março de 2000)

Nesta doutrina é visível a demonstração da história da entidade João da Mata, seu lugar sagrado, quem o encontrou e como se encantou. E a própria natureza de sua forma de curar, ele é persistente, enquanto ele não busca a cura ele não sossega. E para isso pode se assessorar de outros curadores, assim como da força dos astros como as estrelas e o sol.

Outra maneira de demonstração da relação com a natureza é quando a entidade adota os animais como referência - e esses passam a ser a representação da mesma. Seu Antônio Luís Corre Beirada, entidade muito famosa no Tambor de Mina do Maranhão tem duas doutrinas linha de cura que é a representação desse caso.

Peixe, peixinho, camarão do mar/ele tem a sua rede é pra lancear/lanceia em terra/lanceia no mar/lanceia os seus filhos quando vem lhe procurar. Quem nunca viu Calango verde/não é preciso se admirar/seu pai é rei/é rei do Maranhão/Maranhão é seu lugar. (coletada em campo junto a entidade Seu Antônio Luís Corre Beirada março de 2000)

Ou seja, isso significa que seu Antônio Luís cura por intermédio de tais animais também e que quando eles estão próximos à entidade também está.

Um domínio muito forte para a encantaria é o mar. São muitas doutrinas que refletem a sua importância no mundo da encantaria.

Ele é caboclo, ele é flecheiro/veio das ondas do mar/a sua falange é forte/quando vem trabalhar/das ondas do mar ele vem trazer a caridade/pras ondas do mar ele vai levar toda maldade. Areia branca/areia branca/aonde o Boto Malhado, vai malhar/ Ele é rei do Tróia/é rei do mar/ Ele é marinheiro magno e mora no fundo do mar. Iracema, cabocla faceira, que dança no mar na pontinha do pé/Tauari, tauari, tauari lá no fundo do mar. (coletada em campo junto a entidade Seu Antônio Luís Corre Beirada. março de 2000)

Conforme se pode evidenciar as entidades acima referidas possuem seu domínio sagrado no fundo do mar. E o mar é a referência para que possam ganhar força e luz para garantir e desenvolver suas curas nos seres humanos.

E temos também o rio, que também é uma grande casa de nossa encantaria. Tango do Pará uma entidade de cura muito presente na realizada amazônica diz assim na sua doutrina

Vem do rio do Amazonas, Tango do Pará/rio Madeira é seu lugar, Tango do Pará/ quem procura que não acha, Tango do Pará/que remando ele chegou, Tango do Pará/Trim, Trim, Trim, Tango do Pará/ Trim, Trim, Trim chegou/seu pai já era capelão, governador do mundo inteiro/é rei do rio do Amazonas/surrador de feiticeiro. (coletada em campo junto a entidade Tango do Pará. março de 2000)

Como se percebe a entidade Tango do Pará tem morada na Amazônia de um extremo a outro, se podemos afirmar assim, transita na enormidade dos rios do Amazonas e chega até no Pará. E a doutrina também descreve um pouco de sua história.

Culto aos caboclos e na condição do Bem Viver na Amazônia

O legado de diversos povos de origem indígena africana foi sistematizado no interior das comunidades de terreiro. Compreendemos a diversidade de cultos e práticas sociais, culturais, religiosas, míticas e de cura nas distintas cosmovisões dos povos de terreiro e, somado a estes, a mesma diversidade de práticas indígenas cujo contato com os africanos tornaram-se ímpares. Um pouco da história do conceito de Bem Viver.

Se analisarmos do ponto de vista do modo de vida e compreensão de mundo dos povos originários o que se define como Bem Viver encontra seu lugar. É um saber secular, de uma vasta e densa ancestralidade. Sabe-se que tais povos sempre estabeleceram uma relação entre ser humano, natureza e mundo dos espíritos, ou sobrenatural em conexão permanente. E dessa maneira buscam permanecer até os dias atuais, resistindo aos sucessivos processos de destruição e genocídios culturais, étnicos, religiosos instalados por um modo de produção capitalista que violenta, mata e aprisiona maneiras de vida que resistem e se opõem ao padrão instituído como hegemônico. Para Acosta (2020, p. 29) Bem Viver é

[...] filosofia de vida – é um projeto libertador e tolerante, sem preconceitos nem dogmas. Um projeto que, ao haver somado inúmeras histórias de luta, resistência e propostas de mudança, e ao nutrir-se de experiências existentes em muitas partes do planeta, coloca-se como ponto de partida para construir democraticamente sociedades democráticas.

No mesmo caminho Solón (2017, p.17) afirma que “todo intento de definirlo de manera asfixia esta propuesta em construccíon. Lo que podemos hacer es aproximarmos a su esencia”. Esse é o caminho. E a sua essência vem das idiossincrassias dos povos originários.

Nesse sentido, ao trazer a compreensão do Bem Viver para dialogar com os saberes e conhecimentos dos povos originários indígenas e africanos à luz de seu sagrado é construir possibilidades de que a consideração a tal entendimento permite a construção de novas possibilidades de vida no enfrentamento ao modelo hegemônico capitalista. Partindo-se do princípio que existe um percentual considerável de pessoas adeptas do sagrado africano e indígenas no planeta, e que nos seus conhecimentos ancestrais são visíveis a conexão estabelecida entre sistemas naturais, natureza humana e a espiritualidade pode-se partir do princípio que existe uma forte possibilidade para a consolidação e reprodução do Bem Viver em tais práticas e vivências.

Acosta (2020, p. 33-34) destaca como Bem Viver pode insurgir como uma proposta global

Com sua proposta de harmonia com a Natureza, reciprocidade, relacionalidade, complementariedade e solidariedade entre indivíduos e comunidades, com sua oposição ao conceito de acumulação perpétua, com seu regresso a valores de uso, o Bem Viver, uma ideia em construção, livre de preconceitos, abre as portas para a formulação de visões alternativas de vida. Antes de abordar seus conteúdos, valores, experiências e práticas, existentes em muitos lugares do mundo, propomos algumas reflexões sobre a potencial validade destas ideias em um contexto global. O Bem Viver, sem esquecer e menos ainda manipular suas origens ancestrais, pode servir de plataforma para discutir, consensualizar e aplicar respostas aos devastadores efeitos das mudanças climáticas e às crescentes marginalizações e violências sociais. Pode, inclusive, contribuir com uma mudança de paradigmas em meio à crise que golpeia os países outrora centrais. Nesse sentido, a construção do Bem Viver, como parte de processos profundamente democráticos, pode ser útil para encontrar saídas aos impasses da Humanidade.

A vivência enquanto seguidora e adepta de uma religião afro-amazônica, em especial a Umbanda, numa região como a Amazônia, na cidade de Belém do Pará, tem se constituído em uma grande oportunidade de estabelecimento de uma relação mais próxima com a natureza a partir das exigências apresentadas no modo de estar, ser e de entrega na opção de tal prática deste sagrado. Ao adentrar num cenário de intensa conexão entre a busca da espiritualidade e, ao mesmo tempo, esta se vincular aos fenômenos da natureza possibilitando o estabelecimento de sua perpetuação é de grande importância para compreender que nós enquanto seres humanos estão interligados a tais fenômenos e somente dessa maneira podemos entender a vida na sua plenitude.

As possibilidades de nossa existência ao fazer parte de uma prática sagrada com esse caráter passam a ser bastante particularizas sob o olhar da busca da espiritualidade, sob as variadas influências sofridas por intermédio dos Orixás, das entidades espirituais, do Caboclo chefe de nossa coroa, enfim. A sua vida perde na autonomia e independência conquistada numa larga história, e passa a estar submetida aos objetivos, finalidades e necessidades de sua comunidade de terreiro. A partir daí tudo se adéqua a tais objetivos, finalidades e necessidades sejam nos dias de semana ou nos finais de semana, porque o tempo não é mais seu, mas se relaciona com os desejos da sua comunidade, definidas pelos Orixás, pelas entidades e pelo orientador espiritual.

A dimensão do sagrado passa a entranhar na sua vida, possibilitando que em alguns momentos o sagrado penetre no nosso ser também se materializando. A pessoa passa por um processo de negação em nome do sagrado. Que nada mais é do que a conquista de uma plenitude do ser. É essa a razão da entrega por uma espiritualidade inteira, é para que possamos nos tornar cada vez melhor, melhor com os nossos pares, melhor com alguém que precisa necessitado e melhor porque a força, a luz, a energia oriunda de nossas entidades espirituais nos exige isso. E é só isso que eles/elas querem.

Nossa interlocutora, do terreiro de Iemanjá na cidade de Cacoal, estado de Rondônia, esclarece:

Com Relação ao culto ao caboclo é (...) como falei a nossa religião aqui a nossa forma de cultuar leva em consideração não só a Umbanda que foi criada trazidas por Zélio [de Moraes, anunciador e fundador da Umbanda]. Então, se leva em consideração, também todos só índios que temos no Brasil, mais os índios Americanos e todos os índios que, da sua maneira, da sua, com sua história e com sua cultura, faziam o culto a natureza e usavam da natureza não só para se alimentar, pra saúde, mas pra cura também.

É esse conhecimento dos Caboclos que nós utilizamos para fazer. É todo o movimento astral que eles acabam sendo os pilares mais fortes tanto é que quando se vai receber a “coroa”[15] é o Caboclo coroado é a Cabocla coroada é são eles que recebem o fundamento[16] para que o filho tenha... siga o caminho dele. Ou como Pai pequeno[17] de uma casa, ou assuma a frente de uma casa. Então é o Caboclo dele que vai te dar autorização.

É ele vai te dar o caminho, esse seria o primordial, o primeiro passo se você pensar no Caboclo como no início de tudo. Como o primeiro passo então é ele que vai te dizer o momento exato, é ele que vai mostrar para casa que você pertence que você está preparado. A partir do momento que seu Caboclo autoriza, que seu Caboclo vem, que ele faz o brado, que ele vem que aceita ser coroado, então é nesse momento que ele diz “meu filho está pronto”! Então esse é o primeiro passo.

Vamos dizer assim para se compor uma casa é claro que o Caboclo vem bem antes, mais para se compor uma casa, esse seria o primeiro passo do Caboclo aceitar que você esteja pronto a partir do momento que o Caboclo aceita que você esteja à frente de uma casa, então ai começa o processo de organização desse astral e o Caboclo é a uma das peças principais porque se nós pararmos para pensar que o Preto Velho faz unguento faz banhos, ele orienta com relação a passe é ele quem faz as compressas sempre relacionadas às folhas. O Preto Velho trabalha muito com folhas, trabalha com banhos, trabalha com muita reza. Mas trabalha também utilizando muitas plantas.

Se nós pensarmos que os Pretos Velhos trabalham mais com essas partes da natureza e do conhecimento tem uma boa parte do Caboclo. Então, nossa religião é composta de muitas ervas sem a erva não se tem com diz uma frase em iorubá, um ditado “sem erva não tem Orixá” sem erva não tem Umbanda, então sem Caboclo não tem a Umbanda. Não tem como tocar Umbanda sem caboclo. O Caboclo ele vem sendo uma das pedras que erguem a casa e a partir dele você vai dos estudos da sintonia, da harmonia com o Caboclo você vai tendo a partir de conhecimento, a partir de afinidade com mata, com a natureza é que vai trazer a sensibilidade do Preto Velho e trabalhar em cima do que você tem na sua cabeça. O Preto Velho ou qualquer outro filho precisa tenha dedicação. Também o filho precisa estudar a mediunidade, é um eterno estudo. Você nunca sabe você está sempre em aprendizado, você pode ter 50 anos de Santo [iniciado] como um Pai. Você vai aprender, vai ter alguma coisa para aprender. Eu digo que tem muito que caminhar... Ainda estou aprendendo e sei que vou partir dessa vida exatamente sem saber nada. Tenho muita coisa para aprender, mas o Caboclo tem importância fundamental dentro da nossa Casa. A gente prioriza o culto ao Caboclo e ao Preto Velho.

A dirigente da Casa a linha de frente é a Preta Velha “Mãe Catarina” e ela que vem a frente, porém ela sede, muitas vezes, para que o Caboclo possa auxiliar e comandar as informações (...) trazer as informações dentro e de desejo da espiritualidade na linha de Caboclo... O que precisa ser corrigido, como cuidar nosso Terreiro, então a Preta Velha que venha na frente, mas ela respeita - aceita ela vem, também, muito a linha de Caboclo para firmar e pra auxiliar na formação da Casa. (Entrevista concedida a Sérgio Nunes de Jesus por “Neiva”, da Tenda de Umbanda e Candomblé Mãe Catarina e Santa Barbara. 2020).

A descrição acima aponta elementos que expressam o Bem-Viver dos afro-religiosos na Amazônia: a relação com as Entidades, com as folhas, com a Comunidade religiosa e com a essência da aprendizagem contínua da qual a espiritualidade é, constantemente, acionada. Isso se configura como pilar da dimensão existencial de cada um dos Pais e Filhos de Santo.

Desta forma, três abordagens foram empregadas:

A minha pesquisa foi para um processo de doutoramento, iniciada em 2014 e concluído em 2018, pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA)/UFPA, pelo Programa de Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PDDTU). A abordagem adotada foi à qualitativa envolvendo 101 sujeitos sociais por meio de entrevistas, observações diretas e acompanhamento de alguns sujeitos autônomos de cura, babalorixás, ialorixás, rezadeiras, benzedeiras, videntes, bem como dos rituais de cura das casas, terreiros. Foram realizados por mim registros fotográficos e filmagens das práticas sagradas e religiosas. “A utilização da pesquisa qualitativa tem a finalidade de permitir o olhar do ponto de vista da qualidade dos movimentos e fazeres das práticas do sagrado”, (GODOY, 1995, p. 21-22) e (NASCIMENTO, 2018, p. 39).

Outra estratégia de pesquisa foi a documental como outro tipo da pesquisa qualitativa, por meio da análise dos Livros de Tombo das Igrejas Católicas que guardam muito da história dos municípios pesquisados. Além da pesquisa documental, utilizou-se também história oral e incursões no âmbito da pesquisa quantitativa (THOMPSON, 1992). E outro fator que determina, em alguns casos, e é fundamental para a metodologia tem a ver com a escolha pela temática de pessoas que sejam adeptos das religiões afro-brasileiras. Silva (2006, p. 15) identifica como uma grande força para o trabalho:

A principal justificativa para a escolha das pesquisas etnográficas em comunidades religiosas afro-brasileiras como recorte para este trabalho é o fato de eu ter uma convivência longa nesse campo, seja como adepto do candomblé, nos primeiros tempos, seja como antropólogo, num segundo momento. Acredito, contudo, que as questões levantadas aqui possam ser estendidas a outros universos de pesquisa na área de ciências sociais.

Os estudos no Amazonas iniciaram em 2013. A princípio como visitante numa celebração para o orixá Ogún de um jovem que lhe “pagava promessa” por devoção. Entre os anos de 2013 a 2014 as atividades religiosas continuaram com a participação do pesquisador como visitante, e somente em 2015, deu base aos estudos de mestrado (2014-2016)[18], junto a Universidade Estadual do Maranhão (Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia) e mais recentemente, entre 2018 e 2020, deu-se sequência aos estudos de doutorado, junto a Universidade Federal de Rondônia (Programa de Pós-Graduação em Geografia)[19].

Ao longo destes anos, a participação nos ritos festivos, passaram a ser, sistematicamente, observadas. Quando obtida as devidas autorizações, eram realizados registros de áudio e fotográfico. Assim, a relação entre pesquisado e pesquisados, estabeleceu-se a assiduidade necessária para a captura do fenômeno estudado. Conversas com as Entidades e Filhos de Santo compuseram o escopo metodológico do exercício etnográfico empregado em campo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A importância de práticas espirituais, sociais e culturais afro-amazônicas tem s constituído de grande importância para a população da região. A inter-relação entre espiritualidade, relação com a natureza, com os sistemas naturais e o ser humano indicam que esse é o caminho para se alcançar uma vida em condições de um equilíbrio consigo e com o meio que envolve o ser humano. A Amazônia na sua imensidão e grandiosidade possui por si só todas as oportunidades para que a sua população vivesse de maneira a ser assegurado outro modelo de vida. Mas sabe-se que os rumos e opções de desenvolvimento adotado para a mesma, tendo como referência a exploração exponencial de seus recursos naturais levaram para a instalação e acentuação de uma realidade de extrema pobreza, mesmo sendo um dos maiores ecossistemas do mundo, bem como provedora de áreas com minérios de muitos interesses financeiros, nacionais e internacionais.

E nesse contexto temos uma população, muito peculiar, que convive com essa ambiência e se emprenha de sua força e energia, absorvendo para essa sinergia, sendo os povos originários da região, como os indígenas, sejam os povos originários que foram trazidos para essas paragens de modo escravizado, como os africanos e mais os povos que foram sendo gerados a partir dessa nossa formação de Povo brasileiro, como dizia Darci Ribeiro. Nessa direção, se constrói uma religiosidade e espiritualidade muito específica, própria, que permite o diálogo entre os seres celestes e os seres terrestres, e não os vê como contrários, mas como parceiros, complementares.

E mesmo com a desconsideração do poder público, sem apoio financeiro, invisíveis a esses olhos, elas existem auxiliando, socorrendo uma parcela significativa da população, na saúde, em outras formas de socorro, e até em questões que extrapolam a compreensão cartesiana do mundo. E o que é importante salientar que não é adotada nenhuma sofisticação financeira e nem tecnológica, eles usam o que a vida, a natureza, a espiritualidade na sua complexidade singular e diversa possibilita para que se alcance o que se define como Bem Viver, aliar força da natureza, com a força da energia humana e a força de seres encantados.

Apontamos como objetivos ‘discorrer sobre o culto aos caboclos, sua importância na memória afro e indígena, nas religiões afro-brasileiras e refletir sobre a religiosidade afro-brasileira na Amazônia no que se refere à relação entre o sagrado, natureza e saúde, condicionantes do Bem Viver na Amazônia’. Consideramos importante ainda salientar que a natureza etnográfica da pesquisa que embasa o ensaio abre possibilidades de estudo sobre os diversos cultos aos caboclos, enquanto imagem mítica a serviço da saúde física, ambiental e cultural da/na Amazônia.

Seu culto, ou sua presença nos cultos afro-brasileiros e afro e indígena estão contidos desde os cultos de tomadas de chás, fumo do tabaco, umbanda, Candomblés (Keto, Angola, Jeje, Fon), Tambor de Mina, Jurema e Pajelança. Tornando-o Entidade de muita relevância dentro dos cultos.

O ‘sagrado’ se manifesta no ato de louvar as folhas, as matas, os rios, as encruzilhadas, os caminhos... todos estes ambientes se convergem ao corpo do médium, ao corpo do enfermo, ao corpo do esperançoso. Viver o Sagrado dentro da perspectiva do Bem Viver está na singularidade do sentir que cada elemento da natureza está contido no dia a dia das práticas religiosas afro e indígena, dentro e fora das comunidades aqui observadas. Não há como dissociar os afros religiosos de suas Entidades, e estas dos elementos da natureza que os constituem, bem como romper o elo mítico e físico que torna a religiosidade dinâmica.

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Notas

[5] Termo polissêmico no tocante aos estudos das religiosidades afro-brasileiras. Morada da entidade Exu, representa o encontro, o infinito, a passagem o lugar onde as coisas e situações fazem contato direto das dimensões existenciais e simbólicas da vida. Seu uso neste texto é carregado da alusão aos fatos e fatores que deram base à anunciação da Umbanda enquanto Religião na cidade do Rio de Janeiro. Encontra no início de uma atividade industrial ao País, aliada à formação de denso aglomerado urbano – favelas - sem estrutura de atenção à saúde da população predominantemente descendente de africanos, contatos de expansão urbana para o interior em várias porções do território.
[6] A autora se refere à presença de Exu nos cultos. No entanto, dada nossas experiências nos cultos de Candomblé e Umbanda, esta Entidade é de culto mais expressivo, seguido do culto de Caboclos. Aqui utilizamos como forma de espacialização do registro de cultos distintos com origem afro naquele tempo das pesquisas de Roger Bastide (1950?) numa temporalidade em que o País está em vias de consolidação.
[7] Consultar a obra do Ministério intitulada: “Alimento: Direito Sagrado. Pesquisa socioeconômica e cultural de povos e comunidades tradicionais de terreiros” Brasília, DF:MDS, Secretaria de avaliação e gestão da informação. 2011.
[8] Abatazeiro é a pessoa que toca o tambor nos cultos e festejos do terreiro, e tem uma hierarquia na casa.
[9] Sua vasta colaboração para este estudo, não nos permite aprofundarmo-nos diversos caminhos tomados pelo auto. O leitor pode se aprofundar neste conceito nas páginas 111 -149. Traremos aqui elementos que possibilitem nossas reflexões para o objeto ora estudado. Culto de Caboclos e o bem-viver na Amazônia.
[10] Obra coletiva organizada pelo sociólogo e pesquisador de religiões afro-brasileiras Reginaldo Prandi.
[11] Recomendamos a leitura da obra de Juana Elbin dos Santos, os Nagô e a Morte.
[12] Segundo o autor, aqui acontece dois ritos simultâneos o de separação e de agregação. O primeiro não voluntário ao sacerdote e a comunidade, mas intimamente vinculado à noção de comunidade. O segundo, obrigatório ao iniciado. É o momento em que o sacerdote, por meio das atividades rituais, realinha a vida do morto à dimensão espiritual e ancestral da linhagem mítica comunitária. Consulte a obra: Van Gennep, Arnald. Os ritos de Passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc. 3ª edição. Petrópolis, Vozes, 2011.
[13] Ogã, homem iniciado no culto e não entra em transe. Recebe status de Pai e é o protetor da Comunidade, atuando em diversas frentes de trabalho na manutenção religiosa. Yaô, iniciado no culto, entra em transe. Permite a renovação do Axé. Por se tratar de noviço, fica nesta situação até que complete as renovações de voto de Sete anos, quando passa a ser um(a) Egbomi (mais velha).
[14] É a música que as entidades cantam que dizem quem são eles e onde é seu reino natural.
[15] Abertura espiritual que fica na parte superior da cabeça humana.
[16] Elementos do reino animal, vegetal e mineral utilizados simbolicamente como portadores de Axé, possibilita a relação material com a dimensão espiritual e transcendental individualizada pela relação entre o filho de Santo e seu Orixá. Assim como destes com a essência espiritual da Comunidade.
[17] Posto sacerdotal de adjunto do Sacerdote do Terreiro.
[18] Deu origem a dissertação de mestrado intitulada: Na gira da Umbanda: exercício etnográfico sobe as expressões de afrorreligiosidade na “fronteira” e no terreiro da Cabocla Jurema em Tabatinga, Amazonas.
[19] Segue a abordagem vinculada aos Terreiros em contexto Transfronteiriço, com o olhar para as expressões identitárias, e apresenta como título da tese: Uma trajetória de vida religiosa: estudo sobre a construção das expressões identitárias e territorialidades míticas por comunidade de terreiros.

Autor notes

[1] Doutorando em Geografia na Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Mestre em Cartografia Social e Ciências Políticas da Amazônia - Ciências Políticas - Universidade Estadual do Maranhão/Universidade Federal de Minas Gerais. Licenciado em Geografia pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus VI, Caetité. Professor da Universidade do Estado do Amazonas - UEA. Membro do GEPCULTURA/UNIR - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre modos de Vida e Populações Amazônicas - RO.
[2] Doutora em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental/Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido-Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA)/UFPA. Mestre em Planejamento do Desenvolvimento-PLADES-Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/NAEA-UFPA.
[3] Pós-Doutor em Educação - UFLO. Doutor em Ciências da Educação - UTIC. Cursa Doutorado em Ciências da Linguagem - UNICAP. Mestre em Linguística/UNIR. Licenciado em Letras Português-Inglês/UNEB. Atualmente lidera o Grupo de Pesquisa Língua(gem), Cultura e Sociedade: Saberes e Práticas Discursivas na Amazônia/CNPq-IFRO.
[4] Licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia (1989), Mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (1994), Doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (2000) e Pós-Doutor pela Universidade Estadual de Londrina (2016). Professor Titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) (2018). Coordenador do GepCultura - Grupo de Estudos e Pesquisas Modos de Vidas e Culturas Amazônicas.


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