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A força das tradições culturais presente nas representações sociais em comunidades ribeirinhas: uma análise informatizada dos processos cuidativos e itinerários de saúde
The strength of cultural traditions present in social representations in riverside communities: a computerized analysis of care processes and health itineraries
La fuerza de las tradiciones culturales presentes en las representaciones sociales en las comunidades ribereñas: un análisis computarizado de los procesos de atención e itinerarios de salud
Revista Presença Geográfica, vol.. 07, núm. Esp.02, 2020
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Artigos

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 07, núm. Esp.02, 2020

Recepção: 05 Setembro 2020

Aprovação: 06 Outubro 2020

Resumo: O texto em tela apresenta um recorte da situação de saúde de populações ribeirinhas de três comunidades localizadas no Baixo Madeira, Porto Velho-RO, Brasil. O estudo empírico proposto utilizou-se de análises estatísticas a partir de dados empíricos para abordar o processo saúde-doença acerca do cuidado ribeirinho, privilegiando com isso uma leitura qualiquantitativa dos dados, a partir de um programa informatizado que refletiu os achados encontrados. O uso de recursos estatísticos para análise dos dados evidencia a complementaridade metodológica, por meio do emprego do arcabouço científico, sob o enfoque da teoria das representações sociais. A conciliação dos diferentes métodos no processamento e análise das informações coletadas se mostra útil nas pesquisas em ciências humanas e sociais, em função do aprofundamento dos dados coletados. Assim, foi possível realizar uma leitura da realidade social vivenciadas pelos 120 sujeitos, participantes de estudo, acerca da situação de saúde vivenciada pelos moradores de três comunidades ribeirinhas. Os achados revelam a precariedade das ações e serviços ofertados em meio às necessidades apresentadas pelos usuários do Sistema Público de Saúde. Destacam-se as formas tradicionais e alternativas de tratamento e cura dos processos de manutenção da saúde no grupo social pesquisado, cuja relevância interna prevalece, apesar das intervenções do conhecimento reificado.

Palavras-chave: Método qualiquantitativo, Comunidades Ribeirinhas, Saúde, Doença.

Abstract: The text on screen presents a snapshot of the health situation of riverside populations in three communities located in Baixo Madeira, Porto Velho-RO, Brazil. The proposed empirical study used statistical analysis based on empirical data, to address the health-disease process over riverside care, thus privileging a quantitative and qualitative reading of the data, based on a computerized program, which reflected the findings. The use of statistical resources for data analysis shows the methodological complementarity, through the use of the scientific framework, under the focus of the theory of social representations. The reconciliation of the different methods in the processing and analysis of the information collected, are useful in research in human and social sciences, due to the deepening of the data collected. Thus, it was possible to perform a reading of the social reality experienced by the 120 subjects, participants of the study, about the health situation, experienced by the residents of three riverside communities. The findings reveal the precariousness of the actions and services offered amid the needs presented by users of the Public Health System. Traditional and alternative ways of treating and curing health maintenance processes in the researched social group stand out, whose internal relevance prevails, despite the interventions of reified knowledge.

Keywords: Quantitative and qualitative method, Riverine populations, Therapeutic itinerary, Health, Disease.

Resumen: El objetivo del texto es discutir la situación de salud de las poblaciones ribereñas en tres comunidades ubicadas en el Baixo Madeira, Porto Velho-RO, Brasil. El estudio empírico propuesto utilizó análisis estadístico con base en datos empíricos para abordar el proceso salud-enfermedad sobre el cuidado de ribera, privilegiando así una lectura cuantitativa y cualitativa de los datos, basada en un programa computarizado, que reflejó los hallazgos. El uso de recursos estadísticos para el análisis de datos muestra la complementariedad metodológica, a través del uso del marco científico, bajo el enfoque de la teoría de las representaciones sociales. La conciliación de los diferentes métodos en el procesamiento y análisis de la información recolectada, son útiles en la investigación en ciencias humanas y sociales, debido a la profundización de los datos recolectados. Así, fue posible realizar una lectura de la realidad social vivida por los 120 sujetos, participantes del estudio, sobre la situación de salud, vivida por los habitantes de tres comunidades ribereñas. Los hallazgos revelan la precariedad de las acciones y servicios ofrecidos en medio de las necesidades que presentan los usuarios del Sistema Público de Salud. Destacan las formas tradicionales y alternativas de tratar y curar los procesos de mantenimiento de la salud en el grupo social investigado, cuya relevancia interna prevalece, a pesar de las intervenciones del conocimiento cosificado.

Palabras clave: Método cualitativo-cuantitativo, Poblaciones ribereñas, El itinerario terapéutico, Salud, Enfermedad.

INTRODUÇÃO

A floresta amazônica é, sobretudo, diversidade - de saberes, animais, plantas, tradições, cores dos rios, tipos de terras, etc. Assim, habitar esta localidade já é um desafio por si só, e este é justamente um dos saberes que estas populações têm a oferecer e a dialogar com outras culturas e saberes. Os ribeirinhos, que habitam a floresta, possuem um aperfeiçoado conhecimento do ambiente local e criam com ele uma grande diversidade de narrativas míticas voltadas, principalmente, para a relação homem/natureza (Loureiro, 1995).

O universo ribeirinho revela, além das belezas naturais amazônicas, peculiaridades locais relacionadas às formas de desenvolvimento e manutenção do grupo. Nesse sentido, destacam-se as alternativas criadas para os cuidados de saúde, adaptadas ao contexto sociocultural. A soma desses aspectos configura formas de subjetividades no cotidiano das comunidades ribeirinhas, que as caracterizam enquanto conjunto social específico.

O saber popular praticado pelo ribeirinho privilegia uma terapêutica natural, por meio do uso das ervas medicinais e de elementos psicossociais, tais como a territorialidade, crenças e religiosidade participantes nos rituais de cura e de promoção de bem-estar na população. É uma das expressões culturais mais marcantes encontradas no grupo. Uma modalidade própria de cuidar é vivenciada pelas comunidades ribeirinhas do Baixo Madeira que, ao ser comparada ao modelo oficial de cuidado, amplia as dificuldades, já existentes, no “diálogo” entre o saber científico e o saber popular, aspecto capaz de promover uma ruptura na relação que se estabelece entre a instituição de saúde e os usuários do serviço ofertado, tornando enfraquecida uma das vias alternativas de cuidado à saúde, praticadas nas comunidades ribeirinhas na região, que compõe a medicina tradicional, oriunda do saber popular, cujo reconhecimento é gradativo no cenário das políticas de saúde.

Políticas de Saúde sob o Enfoque das Práticas Tradicionais/Populares

Entre os princípios que dão base ao Sistema Único de Saúde-SUS, surge a necessidade de se reduzir as disparidades sociais e regionais nas ações de saúde realizadas no país, a partir da melhora das condições de saúde da população, na busca de maior equidade (Brasil, 2000). A política adotada soma esforços para que a diminuição dessas disparidades possa causar um significativo equilíbrio no uso dos serviços, a partir do momento em que houver uma descentralização de práticas autoritárias das instituições e profissionais de saúde, que delegam à população um lugar não de diálogo, mas de ouvinte.

Os cuidados de saúde do saber popular privilegiam aspectos da própria religiosidade, territorialidade, alimentação, formas de relações interpessoais e cultura. Entre as terapêuticas estão: os chás das ervas, emplastos, rezas e garrafadas, realizadas por especialistas do saber local como rezadores/benzedeiros, curandeiro/pajé e parteiras. Cunha e Sabóia (1981, p. 270) indicam que “a Organização Mundial de Saúde-OMS, através de seu Comitê de Medicina Tradicional, tem incentivado e apoiado programas e profissionais com a finalidade de integrar os ervanários na terapêutica cotidiana dos países em desenvolvimento”.

No cenário brasileiro das políticas públicas de saúde, o Ministério da Saúde (Brasil, 2012) e demais esferas da gestão do SUS vêm implementando as políticas da promoção da equidade, com o objetivo de diminuir as vulnerabilidades a que certos grupos populacionais estão mais expostos, entre eles, a população do campo e da floresta, na qual se inserem as comunidades ribeirinhas. Essa política está relacionada ao desenvolvimento humano e à qualidade de vida desses grupos. Uma de suas propostas é a valorização de práticas e conhecimentos tradicionais, com a promoção do reconhecimento da dimensão subjetiva, coletiva e social, na produção e reprodução de saberes das populações ribeirinhas.

O planejamento das políticas de saúde tem tomado como estratégicas a elevação de todos a um patamar mínimo a partir do qual seja possível caminhar com mais precisão segundo o princípio da integralidade, por meio do qual a atenção em saúde deve levar em consideração as necessidades específicas de pessoas e grupos de pessoas, ainda que minoritários, em relação ao total da população, o que significa um desafio permanente e dinâmico (Brasil, 2000).

Atualmente, já se pode contar, ainda que de maneira restrita, com a Medicina Complementar, cujas técnicas vêm sendo reconhecidas como eficazes. Esta abordagem resgata as técnicas tradicionais. A cromoterapia, por exemplo, recentemente foi reconhecida pela OMS como eficaz. Está ocorrendo também a implementação de novos cursos de bacharelado, como os de Naturologia e Naturopatia, cujos enfoques estão quase que exclusivamente ligados a um resgate dos saberes tradicionais de cura e de outros que apontam para os aspectos sutis ou transcendentais da existência. Todavia, a medicina complementar não foi incorporada às práticas oficiais de saúde em comunidades ribeirinhas, apesar da lógica singular de pensar as questões de saúde-doença. O reconhecimento dos modos diferenciais de estar no mundo e de resolver os problemas de saúde permitiria o (re)direcionamento das ações em Saúde Coletiva.

Assim, o texto em tela objetiva compreender o segmento da saúde praticado pelas populações ribeirinhas, situadas às margens do rio Madeira, localizadas no município de Porto Velho - Rondônia, na região norte do Brasil, que possuem o modo de vida significativamente relacionado à floresta, ao ambiente aquático e ao extrativismo, como demonstra ser o estilo de vida ribeirinho.

Pretende-se ainda, neste manuscrito, considerar aspectos relevantes acerca das condições de saúde dos ribeirinhos para, a partir disso, estabelecer linhas de análise entre o modo de vida de comunidades ribeirinhas e a implicação na situação de saúde dessas populações, favoráveis à compreensão do processo de produção das representações sociais de saúde e doença e das práticas cuidativas desenvolvidas pelo próprio grupo, que fogem ao escopo do saber legitimado e institucionalizado como a única forma de saber. Com base nos dados empíricos levantados e o estado do conhecimento sobre o tema que, envolve a saúde e os seus cuidados em comunidades ribeirinhas, propõe-se uma reflexão acerca das condições de saúde das comunidades localizadas na região norte brasileira e as estratégias de enfrentamento internas e externas ao grupo nos cuidados de saúde, a partir da literatura produzida naquele contexto.

O alcance do objetivo proposto foi possível por meio do uso complementar de estratégias metodológicas de coletas de dados, a fim de auxiliar o melhor entendimento da realidade social estudada, avaliar as habilidades, os comportamentos e as relações entre indivíduos e o contexto, bem como a força das tradições presentes no grupo social pesquisado. Nesse sentido, a combinação dos métodos utilizados na coleta exige a diversidade de técnicas de análise de dados, que neste caso, privilegia os recursos estatísticos e a análise de conteúdo, como o principal meio de alcance da realidade social.

Com base na experiência de estudos empíricos prévios e do convívio da autora junto às comunidades ribeirinhas, atribui-se a maneira com a qual os ribeirinhos criam estratégias não “oficiais” de tratamento, mais compatíveis com suas disponibilidades e anseios, a expressão de um traço cultural alternativo, complementar às práticas oficiais de saúde e ao modelo normatizador vigente.

Metodologia

O estudo teórico-empírico proposto foi construído com base na leitura crítica de estudos científicos acerca do itinerário terapêutico existentes na literatura, a partir dos estudos sócio-antropológicos que abordam o processo saúde-doença e dos conceitos que referenciam as práticas alternativas e complementares em saúde e possibilitam a construção de um olhar ampliado, acerca do cuidado ribeirinho. Propõe-se uma reflexão acerca das diferenças estabelecidas entre o saber popular e o científico praticado nessas comunidades. Essa construção teórica aproxima-se da abordagem qualitativa, tendo em vista a interpretação e a análise dos elementos teóricos obtidos por meio do levantamento bibliográfico realizado (Minayo, 2007), a partir de um programa informático, o IRaMuTeQ que possibilitou a leitura qualitativa correlacionado aos dados estatísticos, quantificáveis. Quando falamos em saúde ou em doença, segundo Minayo (2007), enfatiza-se que essas categorias trazem uma carga histórica, cultural, política e ideológica que não pode ser contida apenas numa fórmula numérica ou num dado estatístico. Partindo deste princípio é que centralizaremos nossas análises acerca da metodologia que envolve a observação e a entrevista, que Oliveira (1996), chama de “olhar” e “ouvir” na pesquisa em Ciências Sociais.

A pesquisa de campo ocorreu nos meses de julho e agosto de 2014, com a aplicação de questionário, a observação e descrição dos modos de pensar, fazer e as maneiras como os atores sociais interpretam a realidade em que vivem e como produzem e tratam as informações de saúde que circulam entre eles. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, de natureza descritiva com delineamento transversal, baseada nas abordagens processual e estrutural da TRS. A estratégia metodológica de coleta de dados combinou quatro técnicas para a identificação dos diferentes planos das representações (conteúdo, estrutura, objetivação e práticas sociais): observação sistemática participante, questionário sociodemográfico, técnica de associação livre e entrevista semiestruturada.

A entrevista semiestruturada guiada por roteiro de perguntas permite uma organização flexível e ampliação dos questionamentos à medida que as informações vão sendo fornecidas pelo entrevistado. Para a elaboração e a adequação do roteiro de entrevista, considera-se a vivência do pesquisador, a literatura sobre o tema em estudo, a apreciação de juízes e as informações obtidas no pré-teste ou estudo piloto. O roteiro de entrevista foi pensado e organizado a partir de indicações temáticas concernentes ao objeto de estudo oriundas da literatura, de maneira que o entrevistador pudesse adaptar o sentido da entrevista ao entrevistado, seu nível de formação e sua forma de expressão, entre outras idiossincrasias relativas ao grupo. Assim, em uma abordagem qualitativa e dinâmica, priorizou-se a experiência dos participantes, na compreensão de aspectos concretos e simbólicos envolvidos em sua vida cotidiana (Jodelet, 2003).

O cenário de estudo é formado por comunidades localizadas na zona rural do município de Porto Velho-RO, os 120 sujeitos pesquisados são moradores das margens do perímetro hidrográfico do Rio Madeira, denominados de ribeirinhos do Baixo Madeira, sendo 65 homens e 55 mulheres, distribuídos de forma não intencional. Demarcação, Calama e São Carlos do Jamari são referência frente às demais comunidades do entorno, por disporem de uma pequena infraestrutura urbana, com escolas, posto de polícia e Unidade de Saúde. A localidade de São Carlos do Jamari está a 75 km da cidade e possui sistema de abastecimento público de água, mas não possui rede de esgotos. Não há trânsito de veículos pela inexistência de ruas e avenidas, apenas calçadas onde transitam bicicletas e motos, oriundas da cidade e atravessadas por balsa. Calama localiza-se à margem esquerda do Rio Madeira, e abrange atualmente 14 localidades, possui aproximadamente 1.483 habitantes e está a 190 km de Porto Velho ao longo do Rio Madeira. Demarcação é habitada por 250 famílias, localiza-se a 200 km de Porto Velho, caracteriza-se como a localidade mais distante de Porto Velho. A viagem à comunidade dura em média 12 (dez) horas de barco “de linha” na ida, ou seja, descendo no sentido da correnteza do rio, e o retorno (subindo contra a correnteza) pode levar até 18 (quinze) horas. Juntas, as três localidades somam um total de 6.709 habitantes, conforme dados do Sistema de Informações da Atenção Básica (SIAB-SEMUSA, 2015). A infraestrutura de saúde oficial oferece Unidades de Saúde da Família com atuação de equipes de saúde que se deslocam da cidade nos finais de semana, atuando de sexta a domingo, com exceção de Calama, que dispõe de dois enfermeiros permanentes e contava com uma médica do programa Mais Médicos do Governo Federal, ambos moradores. Esta estratégia pauta-se na dificuldade de manutenção de profissionais de nível superior nas localidades durante a semana e a rotatividade desses no serviço prestado.

Sua elaboração seguiu os pressupostos da revisão de literatura, cujo processo consiste em uma forma de sistematizar informações sobre questões específicas em um corpo de conhecimento, com o intuito de avaliar e sumarizar as informações encontradas.

A análise dos dados privilegiou a produção discursiva, que depois de transcrita foi adequada no formato apropriado; desse modo, o material textual foi reunido por meio da construção dos corpus, que foram submetidos a uma Classificação Hierárquica Descendente (CHD) (Ratinaud; Marchand, 2012), realizadas com o auxílio do software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) 0.7 alpha 2, desenvolvido por Pierre Ratinaud e permite fazer análises estatísticas sobre corpus textuais e sobre tabelas indivíduos/palavras (Camargo; Justo, 2013).

O IRaMuTeQ possibilitou o tratamento dos dados discursivos por meio da análise lexical informatizada; trata-se de um software gratuito, recém-desenvolvido por pesquisador da área de representações sociais, utilizado inicialmente nos estudos de países europeus, como Portugal, França e Itália e em crescente expansão entre os pesquisadores brasileiros. O software foi divulgado no Brasil pelo site do Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição Social (LACCOS), a partir dos pesquisadores Camargo e Justo (2013).

As questões referentes à entrevista semiestruturada reúnem o conteúdo total das entrevistas e visam explorar as relações entre os temas, que foram divididas em eixos temáticos. As entrevistas realizadas foram transcritas e inicialmente reunidas em um único corpus de análise, o qual foi submetido a diferentes técnicas de análise de dados, tais como Nuvem de palavras e análise textual do tipo Classificação Hierárquica Descendente-CHD (Marchand; Ratinaud, 2012) por meio do software IRaMuTeQ.

Assim sendo, as entrevistas semiestruturadas realizadas foram processadas pelo IRaMuTeQ que é um software desenvolvido sob a lógica do open source (licenciamento livre), tomando por base o ambiente estatístico do software R e a linguagem python. O programa viabiliza distintos tipos de análises textuais, como a lexicografia básica (cálculo de frequência de palavras) às análises multivariadas como é o caso da CHD e das análises de similitude.

A Nuvem de palavras agrupa as palavras e as organiza graficamente em função da sua frequência por meio de uma análise lexical simples. A Classificação Hieráquica Descendente (CHD) indica contextos lexicais, associados ou não a variáveis descritivas dos produtores deste material, que, de acordo com Veloz, Nascimento-Schulze e Camargo (2000), podem ser considerados como aspectos de uma representação social, ou indicadores de diferentes representações. Entre a versatilidade de recursos de análises existentes no IRaMuTeQ, destaca-se um de seus subprogramas, que realiza um mapeamento geral dos conteúdos presentes na discursividade dos sujeitos, a partir de matrizes cruzando segmentos de texto e palavras, por meio do método de Classificação Hierárquica Descendente-CHD. A modalidade de classificação disponível no CHD e adotada no estudo foi a análise simples sobre segmento de texto (Análise Standart), recomendada para respostas longas, como os resultados obtidos por meio das entrevistas.

Cabe ressaltar que o método CHD executado no estudo é um programa desenvolvido por Max Reinert que conjuga uma série de procedimentos estatísticos aplicados a bancos de dados textuais, como os originados nas entrevistas. Esse recurso permite analisar dados textuais quantificando o texto para extrair estruturas mais significativas para que se acesse a informação essencial presente no texto. No ambiente do software IRaMuTeQ, esse método de análise, apresenta-se na forma de subprograma que possibilita descrever, classificar, assimilar, sintetizar e identificar a organização tópica de um discurso, ao acessar as relações existentes entre os léxicos (Sousa et al., 2009; Oliveira et. al., 2005) gerada a partir do Teste Qui-quadrado e que revela a força associativa entre cada palavra e sua classe. Os resultados obtidos por meio da CHD são emitidos por meio do dendograma de Classificação Hierárquica Descendente, uma representação gráfica pautada na análise lexicográfica, que permite compreender as expressões e cada uma das palavras proferidas pelos participantes, analisando-as a partir de seus lugares e inserções sociais.

Resultados e discussãoAs representações sociais da saúde e doença acessadas nos conteúdos das entrevistas

O corpus “Entrevistas” foi composto pelo conjunto das entrevistas e seus conteúdos, de acordo com temas previstos no roteiro, a partir do estímulo fornecido pelo entrevistador durante a aplicação do instrumento, que abordava assuntos relativos à vivência dos participantes nas comunidades ribeirinhas, às representações de saúde e doença, aos serviços oficiais de saúde e às práticas populares de saúde. Para efeitos de análise, os 30 textos gerados das entrevistas iniciais desdobraram-se em 744 segmentos de textos, sem associação de variáveis (sexo, idade, religião, etc.). Destes, 561 (que representa um aproveitamento de 75,40% do total de segmentos no corpus) foram retidos na Classificação Hierárquica Descendente (CHD) realizada com o auxílio do software IRaMuTeQ.


FIGURA 01
Dendograma da CHD do corpus Entrevistas
Fonte: Dados da pesquisa, 2015.

Como um segundo recurso de análise, a CHD dividiu o corpus em quatro classes, as quais se encontram ilustradas no dendograma da Figura 1, que apresenta as palavras com associação estatística significativa de cada classe, bem como sua ocorrência e associação dentro da classe (por meio do teste de qui-quadrado (χ²≥3,84, gl=1), cujo valor de significância adotado pelo programa corresponde a p≤ 0,05). A primeira partição, também chamada de iteração do corpus, dividiu em dois sub-corpora; opondo a classe um do restante do material, essa classe foi denominada de “Práticas populares de saúde”, na qual aspectos relacionados aos tratamentos alternativos e complementares de saúde foram abordados com destaque nesse manuscrito e diferenciam-se das demais classes resultantes da análise (2, 3 e 4), que por limites estruturais serão vislumbradas em manuscritos futuros, sob o mesmo enfoque analítico, a partir de seus conteúdos.

Classe 1 - Práticas Populares de Saúde

A classe 1, denominada “Práticas populares de saúde”, representa 24,4% dos segmentos de texto classificados, e possui 137 segmentos de texto (UCE). Esteve associada a conteúdos que demonstram as alternativas e os recursos de saúde utilizadas pelos próprios moradores. Ainda de acordo com o critério que avalia o número de segmentos de texto, que contém determinada palavra por classe, tem-se como o elemento de maior frequência na classe 1 o léxico remédios_caseiros (n=84), seguido por tomar (n=55), fazer (n=54), pessoa (n=35), utilizar (n=26), chá (n=21), usar (n=21), aprender (n=20), benzimentos (n=20) e os demais que se encontram na figura 1.

Portanto, a classe 1 aborda as experiências dos participantes nos cuidados de saúde e destaca as práticas populares de saúde realizadas no grupo, sobretudo o modo como são preparados os remédios caseiros no Baixo Madeira, sua finalidade, além de indicar os responsáveis pelo repasse desse conhecimento na comunidade. O termo “remédios_caseiros” tem papel central no conteúdo da classe, o qual é abordado enquanto elemento fundamental das práticas complementares e/ou alternativas de cuidados de saúde, conforme evidenciam os trechos de entrevista dos participantes característicos dessa classe:

Para preparar os remédios_caseiros tem muita gente que planta no próprio quintal, a gente consegue a planta por aqui mesmo, quando a gente tá com saúde a gente não prefere tomar nenhum remédio né? (**** *indi_10, idad_2, comu_1, sex_1, reli_1)

Desde o começo do mundo as pessoas se trataram com os remédios_caseiros hoje em dia até para emagrecer a pessoa faz chá, tem para coluna e para a carne rasgada, eu costumo tomar o chá_da_casca_de_mururé_e_de_jatobá. (**** *indi_15*idad_3 *comu_2 *sex_2 *reli_1)

Os remédios_caseiros eu aprendi com minha mãe, a gente usa a folha da unha_de_gato a copaíba, boldo e o elixir, que também é muito bom, eu sinceramente prefiro tomar os remédios_caseiros por não conter em sua fórmula, química e, nesse caso, não intoxica o nosso organismo. (**** *indi_16 *idad_2 *comu_2 *sex_2 *reli_1)

Eu gosto e funciona mesmo, tomo mastruz com leite porque faz bem ele combate a verminose, pneumonia e a gripe, basicamente para ficar doce eu uso o mel, porque alguns remédios_caseiros são amargos, como o boldo e o mastruz, amargos mesmo, mas são bom. (**** *indi_22 *idad_1 *comu_3 *sex_1 *reli_2)

Vixi! são tantos remédios_caseiros, esse saber vem das pessoas mais velhas nossos avôs e dos parentes que nos ensinaram a usar e fazer, eu uso, quando alguém ensina a garrafada ou fricção como eles dizem, é isso que a gente usa. Na verdade, esses remédios são indígenas, os índios é que foram criados com esses remédios_caseiros, é tanto tipo de remédio do mato, chá_de_unha_de_gato mastruz e outros que agora eu nem sem dizer devido tanta quantidade. (**** *indi_25 *idad_1 *comu_3 *sex_1 *reli_2).

Por outro lado, dependendo da experiência de adoecimento ou da disponibilidade do sujeito, o remédio caseiro e outras modalidades de cuidado alternativo de saúde, demonstram ser utilizadas como o principal recurso ao alcance dos moradores ribeirinhos, sobretudo diante da falta de assistência nos serviços de saúde. De outro modo, as modalidades de recurso local, facilmente disponíveis, também se revelam uma escolha inapropriada ou de menor efeito, com base nos valores, crenças e normas sociais atribuídas pelo grupo, conforme evidenciam os seguintes excertos:

A gente costuma utilizar remédios_caseiros, sempre se procura fazer e tomar quando ficamos doentes, porque não tem nenhum serviço de saúde aqui, nós somos atendidos em outra comunidade que fica distante, Calama, a senhora deve conhecer. Eu mesmo prefiro tomar remédios_caseiros porque os remédios_receitados pelos médicos atacam muito o fígado da gente e os remédios_caseiros não, por isso eu sempre utilizo. (...) Maninha esses remédios_caseiros são muitos, para malária a gente toma o chá_de_boldo ou de eucalipto e tem outros para as outras doenças, para vômito e diarreia, a gente se cria e vê que dá certo. (**** *indi_06 *idad_2 *comu_1 *sex_2 *reli_1)

Quando alguém de nossa família fica doente nós fazemos primeiro os remédios_caseiros, tomamos chás das plantas que são bons para tratar de várias doenças, porque aqui não temos muita opção, não. Os principais materiais que a gente usa para preparar os remédios_caseiros são o óleo_de_copaíba, a folha_ do_mastruz e o chá_de_alho, mas quando estou doente de verdade eu prefiro utilizar os remédios_receitados pelos médicos, porque tratam de verdade. (**** *indi_01 *idad_1 *comu_1 *sex_2 *reli_1)

Se o posto não estiver desativado, eu tomo os remédios_receitados pelo médico, que são para tratar as doenças que eu tô, fora isso, também uso os remédios_caseiros, vou na benzedeira, elas fazem um serviço muito bom, lá abaixo de casa tem uma. (**** *indi_07 *idad_2 *comu_1 *sex_2 *reli_1).

Os excertos também abordam as práticas populares de cuidados de saúde, como uma modalidade terapêutica contraindicada, seja por ser considerada prejudicial ao organismo ou, por seu uso ser nocivo às relações interpessoais, devido às questões proibitivas que a impedem, segundo a avaliação do grupo de pertença:

Os remédios_caseiros isto eu tomo e acredito, porque desde pequena minha mãe sempre fez quando estávamos doentes e sempre deu certo. Os remédios_caseiros e os benzimentos são usados pela comunidade, mas é como falei, eu só acredito nos remédios_caseiros, por conta da minha doutrina religiosa. (**** *indi_16 *idad_2 *comu_2 *sex_2 *reli_1)

Temos muitos remédios_caseiros aqui, eu até costumo utilizar, mas nem posso, como tenho alguns problemas_de_saúde e faço acompanhamento médico, tenho que tomar os remédios_receitados por ele, para meu próprio bem. (**** *indi_07 *idad_2 *comu_1 *sex_2 *reli_1).

Outra característica dessa classe revela que a execução de determinadas práticas de saúde pode ocorrer em concomitância ao uso da medicação alopática ou em oposição a essa. Portanto, no bojo da comparação estabelecida pelo sujeito, subjaz o aspecto natural da prática caseira em oposição ao aspecto químico da medicação receitada pelo médico. Percebe-se que há uma distinção evidente entre os efeitos esperados pelo tipo de medicação ou prática para resolver determinado problema de saúde, e disso depende o tipo de escolha do sujeito. Quando nos discursos dos participantes, a decisão se mostra mais favorável ao uso do remédio caseiro, em detrimento de outras terapêuticas e cuidados de saúde, cujos riscos implicados em tal preferência são assumidos.

Também tomo os remédios_receitados de farmácia pra esse negócio da próstata, os dois juntos, foi um parente e o vizinho aqui quem me indicou o remédios_caseiros do chá_da_abotá, que toma e se dá bem, aí a gente toma também. (**** *indi_20 *idad_3 *comu_2 *sex_1 *reli_1)

Muitas pessoas de São_Carlos usam os benzimentos, já outras não acreditam, principalmente, os meus parentes evangélicos que me proíbem até de falar sobre isso. Os remédios_caseiros a gente aprende com os indígenas, são eles quem sabe fazer, pois conhecem bem as ervas naturais, por isso prefiro utilizar os remédios_caseiros porque ele não tem química e não prejudica o nosso organismo, sinto que ele é puro, não dá outro tipo de reação ao organismo. (**** *indi_26 *idad_1 *comu_3 *sex_2 *reli_1)

A classe 1 destaca a relação entre saúde e fé, que se expressa por meio da crença nos benzedeiros e curandeiros, procurados pela comunidade para a cura das enfermidades. A intercessão junto aos especialistas locais, demonstra ser para os pedidos de difícil solução no plano biomédico, além da resolução de problemas que requerem uma compreensão místico-espiritual.

Tudo depende da fé, é a fé que cura eu mesmo, faço os remédios_caseiros porque reza é muito difícil, mas chá é fácil preparar e garrafada é comigo mesmo. Sei lá eu tomei o remédios_caseiros para dor tipo na próstata. (**** *indi_20 *idad_3 *comu_2 *sex_1 *reli_1)

Porque realmente esse negócio de feitiço só Dona Curandeira consegue tratar, o médico não consegue porque eu fui até em Belém levei minha mulher para o Humaitá levei ela pra Manaus e veio a morrer aqui, era um feitiço. Tentou no médico e não conseguiu, o médico dizendo: rapaz essa daí não sei! E, aí por sorte apareceu um câncer de pulmão ele não falou para mim ele falou para minha filha essa aí não tem jeito não. (**** *indi_19 *idad_3 *comu_1 *sex_1 *reli_1)

Quando feitiço a curandeira consegue entender quando a pessoa apresenta alguma coisa assim, que só ela sabe resolver e eles não sabem então eu acho que existe sim menina às vezes acontece. (**** *indi_20 *idad_3 *comu_2 *sex_1 *reli_1)

Os especialistas de saber local são considerados personagens importantes nos cuidados de saúde cotidiano, são responsáveis pelas ações que podem ocorrer de forma alternativa e/ou complementar aos tratamentos de saúde. Possuem, portanto, o papel de referência na resolução das situações específicas de adoecimento, na condição de benzedeiros, curandeiras ou conselheiras, trazendo além da ajuda, “a boa palavra” ou “a boa conversa”, embasada na interação das relações de confiança, favoráveis às situações de crises, conforme definição comum das pessoas que recorrem aos seus serviços. Os excertos de texto evidenciam parte das experiências de saúde, que envolvem as doenças mágico-religiosas e os tratamentos ocorridos nas comunidades:

Deixa eu te contar, as coceiras que dá no pessoal, aí o rezador resolve mais ligeiro e melhor que o médico essa é a vantagem. (**** *indi_10 *idad_2 *comu_1 *sex_1 *reli_1)

Os benzimentos são até para espinho de peixe que a gente engole e pegar desmentidura, que tem alguns que colocam com reza né. (**** *indi_02 *idad_4 *comu_1 *sex_2 *reli_1)

Certa vez eu tava lá conversando com ela, Dona Curandeira e chegou uma mulher babando sangue e ela rezou e a mulher escarrou a espinha de peixe da tambaqui. (**** *indi_15*idad_3 *comu_2 *sex_2 *reli_1)

Eu vivia doente de inflamação do fígado e baço e a curandeira receitou magnésio aparex e reza eles ensinam qual o tipo da folha para pegar e os outros materiais para fazer a mistura e fazer o remédio para tomar. (**** *indi_18 *idad_2 *comu_2 *sex_1 *reli_1)

Aqui tem o seu Zeca que rezou na minha filha primeiro quando ela ficou enjoadinha por causa dos dentes nascendo e depois quando ela tinha 2 anos e estava com quebrante vomitando com fraqueza o tratamento durou 5 dias com 3 rezas por dia (**** *indi_05 *idad_1 *comu_1 *sex_2 *reli_1)

Na desmentidura na criança com o quebrante e no tal de vento_caído quando a criança toma um susto e cresce a barriga deixa a criança com barriga fofa e pode até matar é perigoso no adulto também porque vira doença do ar igual ao derrame. (**** *indi_17 *idad_2 *comu_2 *sex_1 *reli_1)

Sluzki (1997) afirma que a presença de uma rede consistente de apoio positivo é um fator capaz de afetar favoravelmente a saúde no momento em que a busca por soluções para os problemas de saúde pode ser estimulada pela rede. Como consequência do seu papel como fonte de apoio social em relação à saúde, a família se constituía para os sujeitos como coordenadora dos itinerários de cura e cuidado, bem como mantenedora de alternativas que podem ser aplicadas em casa, nos limites próprios do domicílio. Estas alternativas se relacionavam à fitoterapia, a utilização de remédios caseiros e outras formas de medicina caseira, à automedicação e à alimentação.

A representação gráfica dos itinerários de cura e cuidados (Figura 2) foi dividida em quatro grupos, que apresentam as fontes disponíveis de apoio social. Como seria impraticável e pouco elucidativo representar cada itinerário em particular, sendo que cada membro descreve, no mais das vezes, diferentes itinerários para diferentes problemas de saúde, o diagrama que foi construído busca evidenciar quais os elementos comuns aos itinerários de cura e cuidado nas comunidades pesquisadas no Baixo Madeira, conforme Figura 2.

O itinerário terapêutico percorrido ao longo da rede social não tem um caráter linear. Pelo contrário, no diálogo com os outros envolvidos em seu processo de adoecer, a pessoa constrói sua identidade de doente e passa a negociar, compartilhar informações e reconstruir os significados dos diferentes tratamentos. As próprias redes estabelecidas são transitórias, sendo influenciadas pela percepção da doença ao mesmo tempo em que ressignificam essa percepção em processos de negociação recorrentes (Souza, 1999).


FIGURA 02
Diagrama dos itinerários de cuidado e cura nas comunidades ribeirinhas do baixo Madeira
Fonte: Dados da pesquisa, 2017.

De acordo com um estudo que observou os itinerários de cura e cuidado familiar, as ancoragens da fitoterapia e da medicina caseira residiam em fontes diversas, desde as tradições familiares e prescrições de médicos antigos, até programas de televisão com a participação de médico naturalista, terapias orientais baseadas na unibiótica (terapia integral do indivíduo), além de orientações da Pastoral da Criança e da Secretaria de Meio Ambiente do Município. Esta última disponibilizava fitoterápicos que, de outra forma costumavam ser cultivados pelas próprias famílias ou eram comprados no comércio informal. O uso de plantas medicinais era mais significativo entre idosos e famílias de pescadores (Silva; Scholze; Fagundes; 2004).

O conhecimento popular sobre as plantas medicinais nas comunidades ribeirinhas está mais vinculado às mulheres; esse conhecimento é fortemente difundido entre as famílias na comunidade, e tem a mulher como a principal responsável pelo repasse desse saber[3]. Essa dinâmica de transmissão de saber é muito comum; a própria gestora da unidade de saúde de Demarcação comenta que diante da falta de medicamentos alopáticos ou de receita médica, recomenda o uso de remédios caseiros e os disponibiliza aos usuários da USF. Além disso, ela própria receita e doa a matéria prima para o preparo caseiro, pois dispõe de uma horta, que cultiva com a ajuda de outros profissionais, na parte externa da unidade.

Os remédios caseiros são os medicamentos não convencionais para tratar doenças e amenizar os sintomas mais utilizados entre os ribeirinhos; são produzidos a partir de plantas medicinais e minerais e fazem parte do elenco da fitoterapia local, que foi relatada como uma alternativa de fácil acesso, e por isso considerada positiva nos itinerários de cura e cuidado ribeirinhos. O uso dos remédios caseiros é amplamente difundido, e inclusive podem ser administrados em associação com medicação alopática e rituais de cura, porém nem sempre isenta de riscos, segundos os ribeirinhos.

Em seu estudo, Queiroz (2003) ressalta que um aspecto positivo das plantas medicinais era o de serem menos iatrogênicas e com menores reações adversas que medicamentos químicos. Ele apontou a incompatibilidade lógica entre o uso de plantas medicinais e a farmacologia, já que na primeira uma erva pode ser benéfica para uma pessoa e não para outra.

Warber e Zick (2001) revisaram o uso de ervas medicinais e sua relação com problemas cardiovasculares, relatando benefícios potenciais de algumas delas, mas relacionando vários possíveis efeitos adversos, mais comumente as alergias, além de interações de ervas com medicamentos utilizados para doenças cardiovasculares, podendo levar a redução de efeito das drogas ou aumento do risco de sangramento se utilizadas concomitantemente com outras substâncias químicas. Os itinerários descritos por Silva, Scholze e Fagundes (2004) apontavam para uma utilização maior da automedicação em famílias jovens, menos comum entre idosos que mais comumente já faziam uso de medicamentos prescritos por doenças crônicas.

A automedicação também teve na tradição popular ribeirinha uma ancoragem, destinada especialmente aos adultos, e sinaliza para a medicalização da saúde, já que os sujeitos revelam nos conteúdos representacionais de saúde a importância na aquisição dos medicamentos via sistema de saúde, mesmo na falta do médico e de um receituário. Entretanto, quando a automedicação é via remédio caseiro, como mostram alguns relatos, seu uso está mais associado com os diferentes elementos das práticas populares desenvolvidas no grupo, e se justifica seja pela redução de gastos com medicação alopática, seja pela redução da medicalização da saúde, menores efeitos colaterais existentes, maior sensibilidade do corpo às substâncias e, sobretudo, aparece como a primeira disponibilidade de recurso de saúde para o grupo.

Reconhecendo a incontestável hegemonia do modelo dito biomédico ou biomecânico na cultura contemporânea, da terapêutica fundada na química e na farmacologia, e a medicalização social observada na segunda metade do século findo, a saúde torna-se realmente um mandamento, um paradigma universal com efeito normalizador que adquire as características de um mandamento: “ter saúde” ou “conservar a saúde” não se restringe a evitar as doenças, a “preservar-se”, a “não correr riscos”, a permanecer na normalidade médica, ou obter a saúde em pílulas. Essa é só uma das versões do paradigma-mandamento, ou se preferir, da utopia da saúde. Ademais, a medicalização tornou-se hegemônica e predominante na biomedicina. É a partir desse paradigma, que se formulou a crítica à medicalização social, enquanto tendência a considerar as dificuldades da vida como problemas médicos ou como instância de dominação política e controle dos cidadãos. O que está implícito (e muitas vezes explícito) é que não basta prevenir doenças ou medicalizar as populações: é necessário também assegurar uma qualidade de vida (categoria incorporada ao discurso epidemiológico) básica, que não compete à medicina proporcionar, mas ao Estado e à sociedade, para que possa haver uma população efetivamente sadia (Luz, 2003; Nascimento, 2008).

Loyola Filho et al. (2013) observaram em uma comunidade que sofre com a falta de atendimento médico de saúde, uma prevalência do consumo de medicações exclusivamente não prescritas de 28,8%, considerando-se um período de 90 dias anterior ao estudo, sendo que outros 17,2% utilizaram conjuntamente medicamentos prescritos e não-prescritos no mesmo período. A maior frequência de automedicação estaria relacionada com a menor frequência de consultas médicas, sugerindo que fosse uma alternativa à atenção formal à saúde na comunidade estudada, o que estava de acordo com estudos realizados em outros países. Esse aspecto da automedicação parece ter como um dos fatores a falta de assistência da rede de saúde também nas comunidades ribeirinhas.

De acordo com os ribeirinhos, a presença de parentes e amigos na rede de apoio social também foi identificada como elemento constituinte dos itinerários de cuidados de saúde, e ocorre sob formas variadas e de modo intensivo, sobretudo em um aspecto de socialização, nas conversas sobre temas relevantes, como saúde e doença e nas situações de lazer[4]. Além disso, nos relatos e observações tornou-se mais evidente o papel de ajuda das pessoas próximas, como fonte de apoio financeiro e de transporte em situações de doença. Percebe-se um apoio efetivo de parentes e amigos em situações complexas, como as que envolvem os problemas de saúde.

Na análise das condutas na busca por cuidados de saúde, em diferentes referências da comunidade, que incluem o sistema público de saúde e as práticas populares, essas últimas revestem-se dos cuidados tradicionais, acerca dos quais identificou-se fontes de apoio diferenciadas, que revelam ser compatíveis, de acordo com a modalidade de cuidado de saúde mais útil ao sujeito. Portanto, considera-se que a escolha do itinerário de cuidados de saúde passa pela avaliação de dois fatores, pelos ribeirinhos, a saber: o resultado esperado de acordo com a percepção da doença ou mal-estar que acomete o sujeito e a disponibilidade de ajuda nas redes de apoio de parentes e amigos e dos profissionais dos serviços de saúde.

A influência das redes de apoio social sobre a saúde contempla uma concepção sistêmica de saúde, privilegiando seu aspecto dinâmico, a partir da concepção sistêmica de vida. Nesse sentido, a saúde de um organismo vivo demanda uma flexibilidade deste sistema vivo em suas relações para com os diversos sistemas nos quais está inserido em seu meio, sejam físicos, sociais, econômicos ou ambientais, de forma a adaptar-se às mudanças no meio que é, por sua vez, influenciado pelas mudanças no organismo. Assim, a doença pode ser compreendida como a perda da integração do organismo levando a sintomas como manifestação biológica desta desintegração (Capra, 1996).

O doente permanece como o centro do itinerário terapêutico ou, como Helman (2003) denominou, rede terapêutica, por meio do qual relaciona-se com as três alternativas de assistência à saúde. A utilização das alternativas acontece tanto em sequência quanto paralelamente, enquanto o itinerário percorre as conexões da rede, desde os conselhos familiares, passando por vizinhos, amigos, benzedeiras e curandeiros de diferentes tipos e pelo sistema de saúde formal. Ainda segundo Helman (2003), as escolhas realizadas levam em conta o que faz ou não sentido em termos de diagnósticos e tratamentos oferecidos pelos diferentes subsistemas utilizados.

As fontes de cuidados mais utilizadas nas comunidades pelos participantes quando estão doentes são: a família, os amigos, a unidade de saúde, a igreja, o hospital, o médico particular, a benzedeira, a parteira e o curandeiro. Esses elementos são combináveis em ordens diferentes ou em paralelo na reconstrução de cada itinerário individual. De acordo com Loyola (1984, p. 92-94), todos tiveram no passado contatos estreitos com outros rezadores (em geral pais, ou parentes próximos), mas se definem principalmente pelo fato de possuírem um dom de origem sobrenatural e de serem detentores de poderes que se manifestaram em certas circunstâncias. Para a autora, as rezadeiras se limitam a dar bênçãos e a rezar para curar as doenças; o curador, além de realizar rezas, consegue entrar em contato com forças superiores, faz uso de trajes especiais, de orações e de implementos religiosos.

Breves considerações sobre a situação de saúde dos ribeirinhos do Baixo Madeira

As sociedades urbanas vivenciam um considerável avanço no modelo de desenvolvimento regional aplicado à saúde, por meio das tecnologias de processo de trabalho aplicadas ao seu perfil, nem sempre resolutivas e satisfatórias às necessidades e demandas das populações. Contrariamente, as comunidades ribeirinhas pertencentes ao Baixo Madeira vivenciam um déficit na oferta dos serviços de saúde, tornando-se alheias às transformações sociais e políticas promovidas no cenário das comunidades urbanas.

Ainda sobre a análise da realidade de saúde ribeirinha, é possível afirmar que o grupo dispõe como alternativa de enfrentamento das deficiências dos serviços de saúde impostas, uma maneira diferenciada de conceber e resolver os problemas de saúde, por meio das práticas populares, que atendem parte de suas demandas e necessidades de saúde. Ao longo dos anos, as comunidades ribeirinhas do Baixo-Madeira utilizam manejos de saúde considerados tradicionais, relacionados ao contexto da região, que envolvem o uso dos chás, ervas de vegetação nativa, emplastos, benzimentos, garrafadas e curandeirismo, coexistentes às práticas institucionais. Os diferentes recursos, ainda usuais, são resultados de construções simbólicas e traduzem a maneira singular com a qual os ribeirinhos se relacionam, concebem e lidam com o processo saúde-doença. Desse modo, se diferenciam de outros grupos sociais, ao classificar, denominar e resolver os problemas de saúde.

Por outro aspecto, nem sempre os tratamentos “convencionais” ofertados pelas instituições oficiais de saúde correspondem aos interesses dos ribeirinhos, seja pela escassez de recursos materiais, físicos ou humanos nessa área ou, pelo perfil de atendimento realizado, por vezes considerado incongruente à organização social e cultural das comunidades. A respeito do processo de educação em saúde, Oliveira (2001, p. 21) destaca as bases históricas e filosóficas de constituição dos serviços de saúde pública no Brasil:

“Desde os primórdios da constituição dos centros de saúde, a clientela privilegiada foi definida como a parcela excluída da sociedade, aqueles que deveriam ser ‘educados’ a partir de conteúdos racionalizadores centrados em hábitos de higiene pessoal e ambiental (sustentados pelo conhecimento científico da época) e também a partir de conceitos adotados como ‘corretos’ pelas elites dominantes). Portanto, já definiam a sua orientação e seu papel social. Assim, as estratégias disciplinadoras, normatizadoras e uniformizadoras de atitudes impressas à saúde pública tem aí sua base histórica”.

A história da saúde-doença não está pautada somente nos estudos científicos, no conhecimento médico e de especialistas, nas descobertas e inovações tecnológicas que apresentam soluções para o corpo, mas também no senso comum, nas tradições populares, nos saberes dos curandeiros, benzedeiras, rezadores que são fontes de conhecimento. Eles são portadores do que se denomina de representações, que ao longo do tempo foram sendo criadas, solidificadas e tidas como verdade. São esses conceitos constituídos e construídos ao longo do tempo, de acordo com a história, crenças e cultura de cada sociedade, que foram se modificando e alterando os paradigmas, pois o que era tido como certo no passado, hoje pode estar ou não completamente transformado, por conta de outras descobertas, estudos e até mesmo novas representações (Sevalho, 1993).

Estudos demonstram a influência que exercem o universo social e cultural sobre a adoção de comportamentos de prevenção ou de risco e sobre a utilização dos serviços de saúde (Taylor et al., 1987). É importante considerar as particularidades culturais e os diferentes processos lógicos predominantes em cada contexto, haja vista a influência do social e cultural sobre “as maneiras de pensar e de agir” das populações frente aos problemas de saúde. É a partir dessa perspectiva, que se situam algumas contribuições de estudos teóricos e empíricos no campo da saúde.

A forma como os ribeirinhos concebem o processo saúde-doença foi investigada por Maués (1990), ao realizar um estudo sobre os problemas de saúde denominados e tratados sob a ótica de uma comunidade ribeirinha, formada por pescadores, pertencentes à ilha de Itacoã, no Pará. Entre os achados, identificou-se que algumas doenças são consideradas não-naturais, também chamadas de panemas, para as quais o grupo atribui uma lógica diferenciada das doenças ditas “naturais”, convencionalmente tratadas por especialistas da medicina alopática. Nesse caso, uma panema somente pode ser tratada por especialista com domínio do saber local. Sob a ótica ribeirinha naquela comunidade, uma linha tênue diferencia a doença natural da não-natural, segundo a qual, a última não responderia com sucesso ao tratamento médico convencional.

Ainda conforme Maués (1990), os sintomas das doenças não-naturais se assemelham aos das doenças naturais, porém, os ribeirinhos de Itacoã atribuem um diagnóstico próprio a esses males, sendo tratados somente pela figura de um terapeuta tradicional da comunidade, por sua compreensão a respeito dessas doenças, a saber: o feitiço, o quebrante, o mau olhado, a espinhela caída, a rasgadura e as panemas (uma forma de energia negativa, que deixa o sujeito sem sorte e preguiçoso). Nos relatos encontrados, entre as causas que justificam o surgimento das doenças não-naturais, estão os modos de relações inapropriadas com a natureza e/ou com um membro da comunidade.

Um estudo realizado por Teixeira (2000) acerca do cuidar cotidiano de saúde entre os ribeirinhos, em Belém, buscou compreender as dialógicas, múltiplas vias e caminhos envolvidos no processo de encontro e desencontro das redes de saberes e práticas tecidas pelas comunidades ribeirinhas, considerando a ótica dos próprios produtores tradicionais nessa construção. No estudo, o cuidar cotidiano é entendido como uma noção do cuidar junto, pois as comunidades não são apenas cuidadas pelas instituições de saúde e pelos profissionais detentores do saber científico, elas próprias se cuidam localmente, por meio de estratégias que envolvem diversos saberes e agentes que se colocam de maneira complementar às ações criadas pelas instituições oficiais de saúde.

Ainda sobre o cuidar ribeirinho, a autora esclarece que somente a partir da compreensão das diferentes contribuições dos agentes, é possível ampliar a noção de cuidar em saúde, enquanto uma extensão das ações de cuidar, sem, contudo, negar as já existentes nessas comunidades, indo da ação terapêutica institucional à ação ecossistêmica local, tendo como referência o lugar de vida das comunidades, ao privilegiar toda a dinâmica da vida cotidiana. “No cotidiano da vida, esse cuidar se constrói e reconstrói em redes de complexas relações, ainda desconsideradas quando se estabelecem ações para o conhecimento das necessidades básicas de saúde-doença entre comunidades” (Teixeira, 2000, p. 272).

Para resolver os problemas de saúde, os indivíduos, nos mais diversos contextos socioculturais, recorrem às diferentes alternativas de tratamento conhecidas, as quais são escolhidas de acordo com a capacidade de responder às aflições, à disponibilidade de recursos e a cura. Desse modo, a escolha do tratamento à sua doença dar-se-á a partir da compreensão e entendimento que cada pessoa terá do seu estado psicológico, biológico e social junto às diferentes representações socioculturais em saúde-doença-cuidado construídas em imbricação com o universo que está inserido, a qual realizará percursos e processos terapêuticos visando uma melhor resposta à sua aflição (Silva-Junior; Gonçalves; Demétrio, 2013).

Há na verdade, um complexo processo na escolha por tratamento de saúde e, sua análise ultrapassa a disponibilidade de serviços, os modelos explicativos e a utilização que as pessoas fazem das agências de cura, pois essa decisão é influenciada pelo contexto sociocultural em que ocorre (Alves, 1993, 2006; Alves; Souza, 1999). É a partir dessa noção que está pautado o interesse em compreender as práticas populares de saúde, pelo prisma dos ribeirinhos, enquanto agentes sociais, responsáveis pela elaboração e compartilhamento de representações sociais originadas no contexto das comunidades do Baixo Madeira.

Itinerários terapêuticos e o papel complementar das práticas populares de saúde

Ainda sobre as práticas populares de saúde realizadas por ribeirinhos, ou a visão decorrente do modo como são produzidas, é evidente que diferem sob vários aspectos da visão em contextos urbanos, com características eminentemente ocidentalizadas, pois suas práticas são resultantes das estruturas sociais específicas daquela sociedade, na qual prevalecem influências da cultura indígena, cabocla e nordestina, entre outras que compõem o grupo, mas nem sempre isso é considerado. O modo pelo qual as populações ribeirinhas veem ou interpretam a realidade pode diferir entre si, mas comungam de uma mesma perspectiva paradigmática sob a égide de um paradigma de conjunção, onde o simbólico, o humano e a natureza encontram-se integrados e formam um sistema (Alves, 1993).

Ademais, as pessoas (re)produzem conhecimentos médicos existentes no universo sociocultural em que se inserem, ou seja, uma realidade construída por processos significativos intersubjetivamente partilhados. Pela compreensão deste sistema, é possível entender o processo de escolha de tratamento, pois, ao ser socialmente definido como enfermo, o indivíduo desencadeia uma sequência de práticas destinadas a uma solução terapêutica (Freidson, 1988 apud Alves, 1993). Freidson conceitua este processo de careero fillness, denominado como “itinerário terapêutico”, são processos pelos quais os indivíduos ou grupos sociais escolhem, avaliam e aderem (ou não) a determinadas formas de tratamento.

O itinerário terapêutico se baseia na evidência de que os indivíduos e grupos sociais encontram diferentes maneiras de resolver os seus problemas de saúde, no qual a cultura é um condicionante da escolha feita pelo indivíduo, quando esse é socialmente definido como enfermo, desencadeia-se uma sequência de práticas destinadas a uma solução terapêutica. Por este itinerário, os indivíduos podem ter experiências com as várias agências de tratamento, ficando, assim, legitimados a assumirem um papel de enfermos, pois cada uma das agências tem um caráter de imputabilidade ao atribuir suas próprias noções terapêuticas. O itinerário terapêutico é construído por caminhos diversos, não há uma regra que determine o que fazer e quando fazer. Algumas alternativas se aproximam ao modelo biomédico enquanto outras recaem no conhecimento pessoal, familiar, popular ou religioso. É a partir da experiência da enfermidade que o indivíduo escolhe seu tratamento e, desse modo, o itinerário terapêutico. Nas sociedades complexas modernas, a variedade de escolha de tratamento é chamada, de acordo com Alves e Souza (1999), de pluralismo médico.

As comunidades urbanas ditas desenvolvidas, conforme Morin (1991), vivem sob a égide do “Grande Paradigma Ocidental”, que promove uma redução ou, na melhor das hipóteses, uma disjunção das diferentes instâncias que compõem a realidade que, em termos bem simplificados, nos leva a diferentes abordagens para compreender uma mesma questão.

Os especialistas do ocidente, considerados de cunho “oficial” possuem uma formação estritamente racional, acadêmica, fundamentada exclusivamente num nível lógico-epistêmico altamente especializado. Os serviços ofertados a partir dessa lógica de pensamento desenvolvem diferentes métodos e premissas para explicar as aflições dos pacientes, que padronizam, interpretam e procuram tratar a aflição dentro de modelos explicativos na maioria das vezes desconhecido ou parcialmente conhecido pelo paciente (leigo). Alves (2006, p. 1548) comenta que o processo de escolha terapêutica por parte dos indivíduos “escapa” aos contornos estabelecidos pela medicina e pelo modelo biomédico, fundamentado exclusivamente na cientificidade, uma vez que desconsideramos sistemas leigos de referências do doente, nesse sentido o autor esclarece:

Pautada pelas referências das ciências biofísicas, a medicina se contrapõe ao “sistema leigo de referência”, isto é, um corpo de conhecimentos, crenças e ações que estruturam a percepção leiga do doente. É pela análise das estruturas cognitivas que estão subjacentes nos “sistemas leigos de referência” que compreendemos como surgem as expectativas sociais envolvidas com a enfermidade e por que elas diferem entre indivíduos pertencentes a um mesmo grupo social (p. 1548, Alves, 2006).

A adoção das práticas de saúde diferenciadas não é reconhecida pelo paradigma biomédico (predominante nos serviços de saúde) e pelos profissionais que mediam o processo terapêutico, ancorados numa perspectiva de teórico-metodológica racionalista, pois ignoram o estado de saúde do indivíduo como uma totalidade de expressões do universo sociocultural, que envolve as diferentes representações do processo saúde e doença dos usuários. Acerca do modelo biomédico como resultado de fatores principalmente morfofisiológicos, Alves (1993, p. 265) descreve:

Trata-se de um modelo dominante na nossa sociedade, devido ao processo social pelo qual os médicos obtiveram o monopólio em estabelecer a jurisdição exclusiva sobre a definição de doença e tratamento. Este modelo, contudo, não leva em conta os significados sociais atribuídos ao comportamento do enfermo.

Decorrente de visões reducionistas, toda a saúde é olhada por uma perspectiva de fragmentação sob a ótica da “disjunção”, que separa a realidade em vários níveis de observação, tornando alheia a necessidade do todo e desconsiderando as necessidades de cada indivíduo que busca o cuidado. No caso da abordagem para a saúde física (biológica), há diferentes visões que se estabelecem e tentam se sobrepor umas às outras, e atuam de forma distinta e conflitante (Alves, 2006).

Houve inúmeras reformulações teóricos-metodológicas relacionadas aos estudos que abordam o itinerário terapêutico, especialmente a partir de trabalhos etnográficos realizados na década de 1970, que passaram a salientar o fato de que as sociedades e os grupos sociais que as compõe, elaboram diferentes concepções médicas sobre causas, sintomas, diagnósticos e tratamentos de doenças, como estabelecem convenções sobre as maneiras como os indivíduos têm que se comportar quando estão doentes. A mudança de perspectiva e compreensão dos aspectos cognitivos e interativos resultou em uma nova interpretação acerca das definições e significados que os indivíduos e grupos sociais, em diferentes contextos atribuem às suas aflições (Lewis, 1981 apud Alves; Souza, 1999).

Avançando na discussão para além da mudança de paradigma, o que se vive na atualidade é a busca da “religação dos saberes” (Morin, 1991), esse aspecto possibilita uma atuação em equipes multiprofissionais com enfoques interdisciplinares. Sabe-se que nas culturas originárias, a cura é intermediada por um mediador, cuja formação não se deu no campo lógico-epistêmico (acadêmico), mas no campo mito-simbólico ou mesmo mistérico (psicológico-religioso), conforme classificação de Coll et al., (2002), um teórico da transdisciplinaridade. Assim, parte dos ribeirinhos considerados especialistas de saber local, tem uma formação “tradicional”, “ritualística” e, não raro, são versados em tratamentos fitoterápicos. Desta forma, dispõem das parteiras, dos benzedores, e em comunidades com maior predomínio de remanescentes indígenas, do xamã, do curandeiro ou pajé. Embora haja diferenças entre essas funções, o elemento transdisciplinar presente em todas elas implica numa compreensão da saúde a partir de seus elementos intangíveis, transpessoais ou transcendentais, refletindo uma dimensão simbólica que é indissociável da racional nessas culturas, o que lhes atribui uma característica de integralidade.

São pelos pressupostos dos diferentes saberes (profissional, religioso e popular), categorizados em diferentes setores que indivíduos e grupos sociais constroem concepções de tratamento e cura; ingressam em um itinerário terapêutico; assimilam, avaliam, julgam os conhecimentos e práticas provenientes dos outros setores, conforme Alves (2006, p. 1551): “(...) não podemos considerar as concepções populares sobre a doença como pertencentes a um ‘modelo unitário’, mas, pelo contrário, como resultado das experiências pessoais, das combinações e interações que os atores e grupos sociais desenvolvem em diferentes contextos.”

Para entender as práticas de saúde processadas no interior de cada setor dos sistemas de cuidados com a saúde (profissional-medicina científica; folk-medicina tradicional não oficial; popular-campo leigo) e as relações que os sistemas estabelecem entre si, Kleiman desenvolveu o conceito de modelo explicativo. Todavia, a compreensão dos setores demonstra uma visão unificada cuja ênfase é dada aos elementos culturais, a partir de estruturas cognitivas, envolvidas nos modelos explicativos (Kleiman, 1978,1990 apud Alves & Souza, 1999).

Vale considerar, via de regra, a análise dos sistemas terapêuticos relacionadas ao modelo explicativo, que tende a compartimentalizar cada um dos setores, orientados por modelos explicativos racionais sobre doença e tratamento, que organiza e interpreta a evidência clínica com base em racionalizações construídas por perspectivas terapêuticas distintas. Supondo que os indivíduos consideram certos tipos de práticas “mais adequadas” para lidar com certos tipos de doenças, e o padrão de seleção das alternativas terapêuticas seja definido a partir de determinada enfermidade. Nesse sentido, Alves (1999) argumenta que a lógica explicativa da conduta humana reside num modelo de entendimento originário no paradigma das ciências naturais ou matemáticas. A esse respeito, Alves (1999, p. 129) comenta: [...] “em um contexto de pluralismo médico, os diversos setores usualmente não estabelecem fronteiras definidas entre si, podendo existir com pouca capacidade de se excluírem mutuamente. [...] Assim, a interpretação das ações que as pessoas desenvolvem para lidar com suas aflições é submissa a uma lógica meramente explicativa, característica de um determinado modelo de conhecimento científico”.

Acredita-se que considerar a interpretação e a explicação como equivalentes e intercambiáveis acarreta certos problemas epistemológicos. Ao reduzir a interpretação dos indivíduos diante da escolha do itinerário terapêutico, o modelo explicativo conduz não somente a problemas epistemológicos, pois torna restrita a regularidade da conduta humana, bem como reduz os atores sociais e suas ações a modelos tipológicos ou classificatórios determinados, por meio da estrutura cognitiva subjacente às experiências sociais, desconsiderando o contexto social, intencional, circunstancial e dialógico em que os indivíduos realizam suas ações e interagem.

No âmbito das investigações científicas, é importante que o pesquisador desenvolva uma cuidadosa atenção para os processos interativos e discursivos, particularmente para as situações e contextos do objeto de investigação. Aos estudos que abordam os processos de escolhas de tratamento ou itinerários terapêuticos, recomenda-se que não os considerem como meros fatos que podem ser compreendidos com base em conceitos genéricos, mas ações humanas significativas, dependentes das coordenadas estabelecidas pelo mundo intersubjetivo do senso comum e reconheçam que as construções teóricas são limitadas e as generalizações interpretativas unilaterais. Para tanto, faz-se necessário que as investigações interpretem em primeiro plano o universo de significações das experiências individuais, por meio das representações humanas. Somente por esse via, é possível compreender, apreender e explicitar o sentido da atividade individual ou coletiva como realização de uma intenção, quando o que se busca é um tratamento para os problemas de saúde (Alves, 1993).

O cuidado praticado por especialistas locais, enquanto terapêutica na resolução dos problemas de saúde

Os sujeitos que realizam os itinerários de saúde, por meio dos serviços ofertados pela unidade de saúde, buscam resolver os problemas mais prevalentes da comunidade ou, aqueles cuja causa é externa e o agente causador identificável, como ocorre por exemplo, no caso da malária. No entanto, como se sabe, esses moradores também dispõem de serviços não oficiais, cuja rede é formada com base no estreitamento das relações interpessoais, e o seu percurso sofre a influência da família e dos amigos próximos e da igreja, seja no acesso à benzedeira(o) ou ao curandeiro. Esses elementos são considerados uma fonte valiosa, tanto em disponibilidade, quanto em variedade de formas de apoio, mediadas principalmente pela proximidade entre os atores sociais. Constatou-se que a religião é um elemento psicossocial nas ações cuidativas de saúde ribeirinha. Assim, as pessoas católicas são as que mais recorrem em seu itinerário de saúde aos cuidados promovidos por uma benzedeira[6].

Diante de um traço singular comunitário e identitário, constatou-se que a maioria dos ribeirinhos acreditam que existem doenças que os médicos não conseguem tratar, entre essas estão doenças crônicas como o câncer e a aids e as de vertente mágico-religiosas, como o feitiço, quebranto e o mau olhado, cuja dimensão e vivência do adoecimento são místico-espirituais, mas normalmente atinge o físico, por meio de sintomas; estes por sua vez, podem ser tratados pelo médico, mas são melhor compreendidos por alguém que compartilhe do mesmo pensamento e dos elementos subjacentes à representação social.

O benzimento/benzedura e os tratamentos submetidos às entidades espíritas obtidos por meio de uma benzedeira e curandeiro(a), respectivamente, foram relatos por parte dos entrevistados, que conheciam essas práticas como pertencentes às redes de apoio social e dos itinerários de cura e cuidado de saúde nas comunidades, enquanto uma alternativa terapêutica que os moradores e pessoas de outros localidades recorrem, levando à resolução de problemas para os que nela creem, cujas causas seriam consequências das relações interpessoais não harmoniosas. A racionalidade atrelada às questões místicas-espirituais, considera as doenças de causas não naturais como fruto da interação pessoal ou com o ambiente inapropriadas. Por esse motivo, uma pessoa que compreende esse mecanismo de causalidade demonstra ser mais a indicada para tratar o problema.

De acordo com o tipo de doença e a disponibilidade da oferta de cuidados de saúde em outros itinerários, ou na falta desses dispositivos, o poder de cura nas comunidades fica centrado nas mãos de um especialista de saber local, que ao mesmo tempo é uma pessoa comum, um membro da comunidade, cuja chancela do conhecimento é considerado um atributo místico-espiritual; essa seria uma das possíveis razões da igreja para a falta de incentivo e concordância em relação à iniciativa das pessoas que optam por realizar esta alternativa de cuidado. Apesar de haver modalidades de conhecimentos distintas no grupo, alicerçadas no discurso religioso, que define as “coisas consideradas de Deus e do diabo”, prevalece a crença nos rituais de cura e a transmissão do saber popular que converge à prática; entretanto, o enfraquecimento se mostra gradual e de maneira significativa a longo prazo.

Observou-se que a escolha por esse itinerário de saúde é uma prática mais comum entre os católicos, que assumem e legitimam em seus relatos a busca pelos cuidados promovidos por benzedores, diferentemente do que fazem os evangélicos, que proíbem os fiéis de realizar esse itinerário, pois o compreendem como manifestação diabólica, um atributo do mal. Assim, aos evangélicos que se “arriscam” realizando essas práticas nas comunidades, resta como opção o silêncio, o segredo, entre os membros da comunidade.

Por meio de estudo, Quintana (1999) esclarece que as benzeduras, assim como as terapias espíritas, estavam mais próximas da religião católica, do que dos pentecostais ou neopentecostais, portanto, tendiam a ser negadas em uma comunidade com forte influência evangélica. A pertença do morador, principalmente à igreja evangélica, acaba por ser fator limitante à busca por um especialista de saber local nessas comunidades, como demonstram os relatos sobre o medo da descoberta. Porém, sabe-se que este dispositivo é acionado também por ribeirinhos praticantes desse segmento religioso, ainda que de forma velada, e com discursos carregados de negação. Esse aspecto da discrição contida no manifesto, ainda que sobreviva de forma latente, tem contribuído para a garantia da permanência de práticas que o grupo proíbe, mas que fazem parte da identidade cultural, e estão inseridas no pensamento social comum ao grupo.

Pode-se inferir que, nessas localidades é comum a procura e aderência dos “nativos” às práticas que possuem um caráter mágico-religioso, mesmo para aqueles que sofrem sanções proibitivas de pessoas próximas. Além disso, esse acompanhamento é feito de forma mais próxima, naturalmente baseada em laços de amizade e confiança entre os sujeitos, principalmente para os ribeirinhos que possuem criança no domicílio, cujos casos de quebranto e mau olhado ficam aos cuidados dos especialistas de saber local, tendo em vista que essas doenças não naturais são consideradas de difícil compreensão pelos profissionais da unidade. Para esses casos específicos, a via de cuidado de saúde passaria paralelamente por um especialista de saber local.

A influência limitadora por parte das igrejas, em razão dos preceitos existentes, pode se dar tanto no plano das práticas oriundas do saber popular, quanto nas de saber oficial de saúde, que sofrem implicações para a constituição de redes sociais comunitárias; o impacto causado à realização das atividades de saúde pode ser verificado também nas pesquisas de Ambrozio (2003), que as considerou um fator de desagregação da comunidade, e de Silva, Scholze e Fagundes (2004), por meio dos relatos dos agentes comunitários de saúde, quanto à heterogeneidade das igrejas e seu papel como fator contrário à participação dos moradores em atividades de educação e promoção à saúde.

As igrejas também fazem parte do itinerário de cura e cuidado religioso; ressalta-se o caráter de manifestação popular dos cultos evangélicos, que teriam sua função terapêutica para a comunidade, menos pela identificação com o grupo que pela possibilidade de externar as frustrações que são cotidianamente somadas como fatores de estresse. Esse sofrimento difuso na vida das classes populares, não expressado em outros contextos, ganharia coerência na vivência das igrejas evangélicas em concordância com a proposta do apoio social e a formação de rede social (Valla, 2000).

A maioria da população é de origem católica, mas com significativa sincretização de costumes, o que pode explicar a crença na cura de doenças por meio do benzimento, das ervas e dos rituais mágico-religiosos. A religiosidade, portanto, apresenta implicações diretas para as representações e práticas de saúde, pois é por meio do vínculo da fé com a igreja e seus membros que os problemas de diversas ordens são resolvidos, inclusive os relacionados à saúde.

A busca por cuidados de saúde junto aos especialistas de saber local é uma prática que emerge das representações sociais de saúde dos ribeirinhos, fruto de cognições sociais prevalentes no grupo. Nesse processo, os membros agem de forma naturalizada e as ações são interiorizadas e incorporadas no cotidiano. Durante a pesquisa de campo, identificou-se que nas comunidades onde há acesso mais facilitado à medicação convencional, visitas regulares dos profissionais da ESF e a exames que normalmente são realizados na capital, disponibilizados pelo SUS à população, ainda há incorporação do uso das ervas medicinais e de hábitos religiosos e crenças ligadas à tradição local.

O reconhecimento social deve ser atribuído ao terapeuta tanto quanto a doença para possibilitar o sucesso do projeto terapêutico proposto. Somente aquelas pessoas socialmente reconhecidas como aptas para conduzirem determinado ritual objetivando a cura são capazes de construir junto com o doente uma explicação para sua enfermidade. O sofrimento pode se tornar tolerável, mesmo não curado, quando deixa de ser arbitrário e passa a integrar a história do paciente. As benzedeiras são um exemplo de figura dotada de um papel social atribuído pelo reconhecimento do grupo que lhe outorga as funções de cura, destinando seus rituais não apenas ao cliente, mas também ao grupo, pois o sucesso da cura reforça o grupo em seu universo simbólico. O reforço das ideias compartilhadas pelo grupo e a introdução da doença na história do paciente formam um sistema integrado e coerente criado graças ao papel social ocupado pelo terapeuta (Quintana, 1999).

Esses hábitos fazem parte de um conjunto de normas e critérios contidos no conhecimento popular ou no saber do senso comum e incluem, por exemplo, o ato do benzimento como uma prática já internalizada na comunidade. Em determinadas comunidades tradicionais, os saberes, curas, benzimentos e promessas aos santos católicos, além de se apresentarem como uma possível solução no momento da vivência de sofrimento e dor, demonstram a relação que as pessoas têm com a crença, a fé, a sabedoria popular, o respeito e conhecimento por aquilo que foi transmitido pelos mais antigos, principalmente por familiares próximos. Não raro, os participantes afirmam que esse conhecimento vem de seus antepassados e, que remetem à gênese dos cuidados praticados pelos indígenas. Assim, o uso de benzimentos, chás, ervas, rezas e rituais de cura são práticas fortemente internalizadas no grupo, que são transmitidas de forma transgeracional e entre pessoas da mesma geração. Nesse sentido, ignorar essa sabedoria significa romper com a história de vida das populações do Baixo Madeira.

De acordo com os resultados, constatou-se que é quase unanimidade no cotidiano ribeirinho o uso de algumas das práticas populares de saúde, sendo comum a utilização do emplasto, da garrafada, das rezas ou do benzimento, realizados pelos próprios atores sociais ou por especialistas de saber local, em sua maioria mulheres. Essa equidade na realização de uma ação cuidativa, de forma providencial é ainda maior quando se refere a realização de remédio caseiro, por meio dos chás. Os parentes assumem papel fundamental na indicação e no repasse desses tipos de conhecimento acerca do remédio caseiro[7].

Os sujeitos católicos demonstram maior flexibilidade em seus itinerários de saúde, e de modo mais significativo usam os remédios caseiros a partir da indicação de um amigo. Como se analisa nas comunidades pesquisadas, é evidente a força dos remédios caseiros como o recurso terapêutico mais utilizado entre os atores sociais, os próprios sujeitos sabem como agir em relação aos cuidados de saúde, e eles próprios são responsáveis pelo preparo dos remédios caseiros na prática cotidiana de cuidados de saúde. Destaca-se novamente o papel importante das mulheres do grupo, no preparo dos remédios caseiros e o de familiares ou parentes, como sendo os principais responsáveis pelo repasse desse saber entre os participantes, sobretudo entre aqueles que não completaram o ensino fundamental, parcela mais expressiva no grupo[8].

Sartori (2002) observa que a medicina familiar era o primeiro recurso de saúde na comunidade rural pesquisada por ela, praticada primariamente pelas mulheres, a partir de sua experiência própria ou dos mais velhos. Segundo Sartori, a medicina familiar não conflitava com a medicina oficial, estabelecendo seus limites de forma bem definida como recurso para problemas de saúde leves ou simples, enquanto os graves eram destinados à atenção médica formal. Essa divisão que envolve os limites de atuação, ao considerar a gravidade dos casos também foi relatada pelos ribeirinhos, apenas com o seguinte destaque: quando se foi desenganado pelos médicos ou quando esses não conseguem diagnosticar ou tratar efetivamente de um problema de saúde aspecto, recorre-se a um curandeiro nas comunidades ribeirinhas.

A maioria dos participantes já foi ao benzedor ou benzedeira, sendo as mulheres e as pessoas católicas as principais a percorrerem esse itinerário. Elencou-se alguns recursos terapêuticos mais utilizados nos cuidados de saúde dos ribeirinhos, entre eles destacam-se os que conjugam a medicina popular em associação ou não com a medicina alopática, como a associação feita de antibiótico (aminoxilina) com o óleo da andiroba, indicados para os casos de inflamações na pele, uma delas muito recorrente no grupo, denominada de panarício, que acomete a estrutura epitelial entre a unha e o dedo do sujeito. O preparo da medicação se dá a partir da combinação dessas substâncias, por meio de mistura, seguida pele aplicação no local da inflamação. Os recursos elencados demonstram fazer parte do repertório de escolha cotidiana entre os participantes, e compõem os itinerários terapêuticos de saúde praticados nas comunidades pesquisadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A avaliação ou julgamento dos saberes tradicionais como inferiores ou primitivos, exige cautela, especialmente por parte dos profissionais de saúde que lidam com outras realidades, diferentes ou não tão próximas as suas, para que a clivagem forçada que se estabelece, acerca da dicotomia dos diferentes saberes, não continue a se reproduzir em suas práxis. Nas sociedades contemporâneas, a dimensão do conhecimento tradicional, místico e popular, no que diz respeito à cura, está praticamente banida ou “relegada” a cargo dos não-acadêmicos, dos considerados religiosos, benzedores, sendo amplamente desvalorizada, e não raro, vista como falaciosa. Os achados no estudo em tela demonstram a força das práticas populares entre os ribeirinhos, cujas representações sociais das práticas elencadas possuem em seu bojo estruturante, a junção de diferentes saberes, sendo úteis e efetivos em situações contextuais, como relatados pelos próprios sujeitos internos ao grupo, na resolução dos problemas de saúde.

A política de saúde reforça a cientificidade do conhecimento. Mas, toda vez que se pergunta a razão da permanência dos saberes populares, a resposta os relega ao folclore, qualifica-os de resíduo, fragmento pouco relevante, próprio das pessoas simples ou sem escolaridade. No entanto, acredita-se que olhar o fenômeno só na perspectiva do universo vivido anula sua riqueza e escamoteia suas múltiplas vertentes. Além disso, o problema não é opor-se à ciência, mas entender que, na pluralidade da sociedade, há distintas maneiras de respeitar o outro, diferentes modos de organizar o subjetivo. Não se trata de conceder superioridade ou inferioridade a uma ou outra forma de conhecimento, porque são apenas modos diferentes de encarar e enfrentar uma dada realidade de saúde. Não se procura uma verdade a ser alcançada, mas significados a serem compreendidos. Os interesses pelas práticas de saúde vão além das ciências e perpassam dimensões subjetivas na construção simbólica do processo saúde-doença.

Destaca-se a necessidade de aproximação entre o saber local, próprio da família – o saber popular, também chamado de folke e o saber profissional – considerado científico, enquanto práticas que se complementam, valorizando as experiências/vivências prévias dos agentes sociais pertencentes a uma realidade comunitária singular, já que os indivíduos e grupos estão intimamente imbricados no contexto cultural de suas comunidades. Torna-se evidente a necessidade de compartilhamento de saberes e da prática de cuidados que valorize essa noção. Assim, enquanto não forem examinadas criticamente as estruturas cognitivas como resultado de condições sociais da produção do conhecimento, a área da saúde, interessada em compreender o processo saúde-doença e os itinerários terapêuticos possíveis, não poderá cumprir satisfatoriamente o seu papel interdisciplinar, ou transdisciplinar, que relaciona as áreas do conhecimento interessadas pela apreensão das diferentes escolhas de tratamento para os problemas de saúde. Ressalta-se a necessidade de novas produções científicas que evidenciem por meio de estudos empíricos as diferentes formas de conhecimento e sua interseção na prática cotidiana, sobretudo àqueles, que contemplem o pensamento dos indivíduos e grupos, a partir do cotejamento das representações sociais, tal como aqui se pôde confirmar, em relação à força das tradições presentes no grupo.

Ademais, se faz importante problematizar as práticas em saúde e as alternativas de cuidado através da proposta interdisciplinar e transdisciplinar e reconhecer as diferentes concepções de saúde dos atores sociais, a partir do contexto sociocultural e interação social, entendendo as escolhas terapêuticas resultantes de ações humanas significativas, estabelecidas pelo mundo intersubjetivo do senso comum.

Agradecimentos

Capes, FAPERJ e GEPCULTURA.

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Notas

[3] x² significativo em 0,05(Teste Qui-quadrado e que revela a força associativa entre cada palavra e sua classe).
[4] x² significativo em 0,05 (Teste Qui-quadrado e que revela a força associativa entre cada palavra e sua classe).
[6] x² significativo em 0,05 (Teste Qui-quadrado e que revela a força associativa entre cada palavra e sua classe).
[7] x² significativo em 0,05 (Teste Qui-quadrado e que revela a força associativa entre cada palavra e sua classe).
[8] x² significativo em 0,05 (Teste Qui-quadrado e que revela a força associativa entre cada palavra e sua classe).

Autor notes

[1] Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ (2017). Participou em 2015, como estagiária visitante no European International Joint-PhD in Social Representation & Comunication Research Lab.- Università di Roma: La Sapienza/IT, como parte do programa brasileiro de &quot;doutorado sanduíche&quot;. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC (2012). Especialista em Residência Multiprofissional em Saúde da Família RMSF/UFRO (2009), Psicóloga Clínica formada pela Universidade Federal de Rondônia-UFRO (2007). Atua clinicamente na saúde pública, por meio do SUS, com indivíduos e diferentes grupos, a partir da abordagem centrada na pessoa ACP e da Ludoterapia com crianças.
[2] Enfermeira, Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo e Pós-Doutora em Psicologia Social pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), Paris/França. Professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; Professora Titular da Área de Pesquisa na Faculdade de Enfermagem/UERJ.


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