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Covid-19 no Purus Indígena: Narrativas e percepções de lideranças Apurinã e Paumari
Covid-19 in the Indigenous Purus: narratives and perceptions of Apurinã and Paumari leaders
Revista Presença Geográfica, vol. 08, núm. 02, Esp., 2021
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 08, núm. 02, Esp., 2021

Recepção: 20 Janeiro 2020

Aprovação: 16 Setembro 2021

Resumo: Neste trabalho, são analisadas narrativas de lideranças indígenas sobre o momento crítico da pandemia da Covid-19, nos municípios amazonenses de Tapauá, Lábrea e Pauini, apontando estratégias de enfrentamento produzidas pelo movimento indígena como resistência à pandemia do Corona vírus. Essas narrativas foram proferidas no novo contexto imposto aos indígenas Apurinã e Paumari, nos referidos municípios, situados na região do Médio Purus. Para a coleta dos dados, utilizou-se o acesso às redes sociais, singularmente o whatsapp, em arquivos de áudio. As falas das lideranças participantes da pesquisa evidenciam que a crise sanitária causada pela propagação do vírus agravou fragilidades já vivenciadas, como a política de proteção territorial por parte do Estado brasileiro. Ao mesmo tempo, a restrição imposta pelas autoridades de Estado representou um choque inesperado para muitas aldeias, sobretudo aquelas que dependem de produtos da cidade no seu cotidiano. Assim, as lideranças indígenas se viram, de um momento para o outro, numa verdadeira corrida pelo atendimento à pauta dos auxílios emergenciais, que passou a ser prioritária para o movimento indígena durante aquele período.

Palavras-chave: Pandemia, Lideranças indígenas, Narrativas, Resistência.

Abstract: In this work, narratives of indigenous leaders about the critical moment of the pandemic of Covid-19 in the municipalities of Tapauá, Lábrea and Pauini are analyzed, pointing out coping strategies produced by the indigenous movement as resistance to the coronavirus pandemic. These narratives were given in the social context imposed on the Apurinã and Paumari indigenous people, in the referred municipalities, located in the Middle Purus region. For data collection, access to social networks was used, singularly whatsapp, in audio files. The statements of the leaders participating in the research show that the health crisis caused by the spread of the virus worsened weaknesses already experienced, such as the territorial protection policy by the Brazilian State. At the same time, the restriction imposed by the State authorities represented an unexpected shock for many villages, especially those that depend on products from the city in their daily lives. Thus, the indigenous leaders found themselves, from one moment to the next, in a real race to meet the emergency aid agenda, which became a priority for the indigenous movement during that period.

Keywords: Pandemic, Indigenous leadership, Narratives, Resistance.

INTRODUÇÃO

A pandemia de Covid-19 trouxe experiências múltiplas em todos os contextos sociais afetados e levará tempo para se ter a real dimensão de seu impacto. Embora o tratamento da doença ainda siga impreciso, prescrições e protocolos estão sendo avaliados ao longo do atendimento aos pacientes, variando a partir da prática cotidiana em ambulatórios, hospitais e unidades de terapia intensivas (UTI). Tal situação traz inúmeros questionamentos observadas as variações de procedimentos e de tomada de decisão nas diferentes esferas de governo no Brasil.

Passados 21 meses e com o avanço da vacinação, é possível assinalar que a pandemia de COVID 19 e toda crise sanitária decorrente, ficará marcada na história pela omissão, pela falta de liderança e de articulação, pelas informações desencontradas, além da politização do debate, o que levou ao quadro social catastrófico[1] amenizado pela adesão da população à vacinação. São expressivos os dados do impacto da pandemia em território nacional, chegando até o dia 09 de dezembro de 2021, à marca dos 616.691 mil óbitos acumulados (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2022).

No Amazonas, a precariedade da estrutura de atendimento à saúde pública se revelou nefasta, exacerbando os problemas estruturais geradores de uma desigualdade social histórica, o que nos aproxima das noções de necropolítica e necropoder propostas por Achille Mbembe (2016), ao se reportar aos novos dispositivos de controle, utilizado pelo estado, “[...] nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos'” (MBEMBE, 2016, p. 146).

Assim, imagens de valas coletivas nos cemitérios de Manaus, ou de um caminhão frigorífico na porta do hospital e de pessoas morrendo pela falta de oxigênio, ficarão marcadas como base para uma reflexão sobre a indiferença perante uma multidão de pessoas sem poder econômico, ou de uma classe de “sujeitos infames”. São pessoas sem direito ao luto, ou sequer de serem consideradas como vidas que importam para a sociedade (NAVARRO et. al., 2020)[2].

No interior do Estado, por sua vez, a doença chegou primeiro como “boato”, a partir de notícias veiculadas pelos jornais televisivos, e depois, lentamente, como uma onda, com os primeiros contaminados se deparando com as conhecidas condições precárias de atendimento nas cidades, e de nenhum atendimento nas zonas rurais.

Os Povos Indígenas, calejados com epidemias frequentes ao longo do processo histórico de invasão e espoliação de seus territórios tradicionais, se mostraram preparados ao seu modo, ou refugiando-se nas matas como faziam seus antepassados, ou fazendo uso da medicina tradicional para amenizar os sintomas de mais um vírus externo que chegara. Os indígenas urbanos, por sua vez, se viram tão vulnerabilizados quanto a população em geral. Desinformada, desassistida, e sem a alternativa de ficarem em isolamento social, as pessoas saíram normalmente de suas casas em busca de alguma de renda e de alimento, proveniente da pesca e caça, ou adquirido no comércio.

No presente artigo, busca-se dar amplitude às vozes indígenas da região do médio Purus, no sul do estado do Amazonas por meio da escuta de líderes articulados e com relevância em seus contextos sociais. Como espaço de interlocução utilizou-se a internet, as redes sociais, especificamente o WhatsApp - aplicativo de mensagens instantâneas que conecta pessoas por meio do compartilhamento de textos, áudios, imagens, documentos, chamadas de voz e vídeos.

A reflexão aqui proposta provém, portanto, da etnografia dos relatos que constituem conversas com lideranças indígenas de três municípios analisados: Tapauá, Lábrea e Pauini, no rio médio rio Purus, no estado do Amazonas. Ao longo dos relatos analisados, na perspectiva do vivido durante a pandemia de Covid-19 especificamente ao longo do ano de 2020, buscou-se evidenciar os impactos causados pela pandemia nesses municípios, bem como as estratégias de enfrentamento utilizadas pelos povos indígenas na região.

É bem verdade que no período crítico da Pandemia da COVID 19, o campo da produção acadêmico-cientifico das ciências sociais, sobretudo da antropologia, se viu inserido no debate sobre o “espaço-lugar” do trabalho de campo no processo de produção da pesquisa:

A pesquisa antropológica, sendo tão fortemente ancorada na ideia de trabalho de campo in situ, parecia condenada ao fracasso diante das restrições e das incertezas causadas pela Covid-19. Contudo, a reflexividade, outro pilar da disciplina, tem permitido aos pesquisadores fazer da necessidade virtude. (BOLLETTIN; SANABRIA; TAVARES, 2020, p. 09-10).

A partir dessa perspectiva partiu-se por buscar alternativas de comunicação para a realização da pesquisa, de modo que a utilização do aplicativo de mensagens WhatsApp se mostrou bastante eficaz do ponto de vista etnográfico. Garantindo o espaço de encontro entre os agentes sociais e os pesquisadores, esse meio possibilitou que as duas partes, que, cabe ressaltar, se conheciam de longa data e muito antes do período pandêmico, mantivessem a comunicação e a relação de pesquisa.

O LÓCUS DA PESQUISA: A REGIÃO DO MÉDIO PURUS, AMAZONAS

A região do Médio Purus compreende um complexo de terras tradicionalmente ocupados por povos indígenas e comunidades tradicionais, “[...] as denominadas “terras tradicionalmente ocupadas”, que expressam uma diversidade de formas de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais em suas relações com os recursos da natureza” (ALMEIDA, 2008, p. 25), além dos pequenos centros urbanos, que possuem história fortemente marcada pela economia da borracha.

Esta pesquisa se delimita geograficamente na área onde estão compreendidos os municípios de Tapauá, Lábrea e Pauini, os quais formam um arco importante na calha do rio Purus. Buscou-se entender os impactos da pandemia sobre os povos indígenas que habitam essa região.

A Figura 1, a seguir, apresenta o mapa da localização geográfica dos três municípios analisados e também o alcance dos casos de Covid-19 até o final do ano de 2020:


Figura 1
Incidência de casos da Covid-19 nos municípios de Tapauá, Lábrea e Pauini, na bacia hidrográfica do rio Purus /AM no ano de 2020
Fonte: Elaborado pelos autores, 2020

Lábrea, fundada na segunda metade do século XIX, período áureo da exploração da borracha, é a cidade mais populosa da região. Atualmente, o município possui 46. 882 habitantes (IBGE/2020[3]).

O município de Tapauá, tem a população estimada de 17.015 pessoas (IBGE/2020[4]). Geograficamente está mais próximo da capital Manaus, com intensa movimentação pela via fluvial.

Pauini, por sua vez, com uma população estimada em 19.522 habitantes para o ano de 2020, segundo o IBGE, fica situada mais ao “alto” do rio Purus, em relação a Lábrea e a Tapauá.

Na região da bacia hidrográfica do Purus, a maioria dos indígenas tem um contato intenso com a cidade, sobretudo os Apurinã e Paumari, muitos com residência fixa nas cidades. Também os povos Jarawara, Jamamadi e Madiha-Deni são frequentes em Lábrea, a maior parte acessando benefícios sociais governamentais, outros indo receber salário, dinheiro que é utilizado para o consumo de produtos industrializados encontrados no comércio local.

No momento em que os gestores municipais impuseram restrições de atividades nestas cidades, frequentadas intensamente pela população interiorana algumas questões se apresentam para a pesquisa: Como ficar nas aldeias, se há necessidade de produtos que estão na cidade? Veio à tona a questão histórica da aproximação entre os indígenas e os espaços e produtos dos não indígenas incorporados ao cotidiano das aldeias. É a partir desse contexto que se apresentam as narrativas das lideranças indígenas analisadas neste trabalho. Essas narrativas, a princípio, dão uma pista da posição e estratégias utilizadas pelo movimento indígena diante da situação das Terras Indígenas (TI) e aldeias da região do Médio Purus.

Vale salientar que o contexto que perpassa a situação de crise sanitária propicia a produção de um determinado discurso, aqui entendido na concepção de que “[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar” (FOUCAULT, 2011, p. 10). Nesse sentido, as lideranças indígenas se colocam em oposição ao discurso oficial do governo federal, nesse momento sensível da história do Brasil e do mundo.

LÁBREA NA PANDEMIA: ENTRE A BUROCRACIA E AÇÕES SOLIDÁRIAS

O município de Lábrea, assim como os demais municípios do interior do Amazonas, foi surpreendido com a chegada da pandemia da Covid-19 que atingiu o Brasil desde março de 2020. A Covid-19 entrou no estado pela capital, Manaus, de onde se espalhou para a região do alto rio Solimões e demais regiões. Os impactos da pandemia começam a ser sentidos fortemente na segunda metade do mês de março, o que levou as autoridades municipais à adoção de protocolos de controle rígidos, como paralisação das atividades consideradas não essenciais, implantação da quarentena e toque de recolher (MAXIMIANO; FRANCO, 2020).

A partir daí, iniciou-se um momento de tensão jamais vivenciado no contexto da sede municipal. No caso dos povos indígenas da região do Purus, o alerta pelo isolamento social emitido pelo órgão de atenção à saúde indígena (SESAI-DSEI Médio Purus), pedindo a interrupção abrupta do fluxo com as cidades, causou muita apreensão nas aldeias nesse momento inicial.

Medidas como o fechamento quase total do comércio e interrupção de viagens intermunicipais fluviais e rodoviárias, decisões políticas e sanitárias de forte impacto econômico, foram todas estabelecidas no âmbito de um “Comitê de enfrentamento e combate ao vírus do novo Corona vírus (COVID-19) ” por meio do Decreto Municipal n. 658/2020 GPML.

Embora a prefeitura tenha feito restrições ao transporte de passageiros - por avião, ônibus e barcos (este último é o mais utilizado no período de inverno amazônico e todos os barcos vêm de Manaus, epicentro da epidemia no Amazonas no primeiro semestre), estima-se que foi justamente pela via fluvial que chegaram os primeiros casos de Covid-19 à cidade, em 10 de abril de 2020, quanto um barco de passageiros teria trazido clandestinamente pessoas infectadas de Manaus.

Na ocasião, a Secretaria Municipal de Saúde conseguiu mapear e controlar os casos, inspecionando todas as embarcações que chegavam. O governo do estado, por sua vez, baixou uma medida proibindo o transporte de passageiros nessas linhas permitindo somente o transporte de cargas. Mesmo assim, foram surgindo novos casos e aumentando a transmissão da doença.

Em 09 de junho de 2020, registrou-se a primeira vítima fatal na cidade de Lábrea: o professor Pedro Pires, com livro publicado sobre a história de Lábrea, perda que causou grande comoção e luto no município. Já no mês seguinte, no dia 02 de julho, ocorreu a primeira morte dentro do movimento indígena de Lábrea: Docineide Paumari, esposa de Agenor Paumari, ex-coordenador do movimento indígena do Purus. Em seu relato, Agenor faz um apelo para que o poder público se articule melhor através de ações para diminuição do avanço do vírus nas Terras Indígenas da região:

O meu filho pequeno tá na aldeia, acabaram de sair umas pessoas para fazer a remoção deles para ficarem aqui em casa em Lábrea. Porque com essa notícia a Mayara e Angélica, que são minhas filhas, eu quero que eles fiquem aqui perto da gente, pelo menos aqui eles ficam ligando para a gente, eu não posso tá com eles mas eu vou estar sempre com telefone, pra estar conversando com ele e com elas, e aí, eu tô aqui torcendo para que isso não venha afetar mais, mas tá muito avançado nas aldeias, está muito avançada. A maioria dos parentes, da Morada Nova, do Uidá, do Extrema, do Crispim tão com esses sintomas. Aí eles estão tomando bastante chá uns está se recuperando, o Raimundo Onório, que é cacique lá do Uidá, ele tá, ele tá ruim, muito ruim levaram ele para o polo, eu não sei do estado dele daqui para a frente. O Augusto lá do Vista Alegre se encontra internado, não sei se já removeram ele pra Manaus, então, e outros que tão com mesmos sintomas e tão na aldeia. Então, tá sendo muito difícil. Eu queria que a FUNAI e a SESAI fizesse um planejamento de ir pra combate mesmo, não fazer aquelas palestras através dos técnicos. Tem de chamar mesmo a atenção, tem que envolver as autoridades municipal, o secretário de Saúde, a FUNAI local daqui regional, a SESAI, FOCIMP, OPAN. Essas pessoas para fazer um planejamento para que venha combater mesmo essa doença nas aldeias. Graças a Deus, que não tenho notícias dos Jamamadi que se isolaram né, mas eu vi o boletim saindo ontem que quinze caso fora os outros que não chegaram. Então é isso, estou me cuidando eu sei que estou muito abalado mais estou me cuidando tentando ser forte (AGENOR PAUMARI, julho 2020).

A Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (FOCIMP) emitiu nota de pesar em suas redes sociais, destacando o papel de Docineide Paumari no Movimento de Mulheres Indígenas regional e na sua atuação pela valorização da língua materna, algo que vem sendo tocado pelo seu marido juntamente com outras lideranças Paumari das aldeias Ilha da Onça, Uidá e Morada Nova, da Terra Indígena Paumari do Lago Marahã.

Matias Apurinã, jovem liderança da Terra Indígena Caititu, estava como coordenador regional da FOCIMP. Matias avaliou que, no momento inicial da pandemia, as atividades de articulação foram importantes:

Eu como membro da coordenação regional aqui da FOCIMP, nesse momento de pandemia, o que de fato nós estamos observando é a FOCIMP ter articulando algumas, né, alguns parceiros fora, alguns parceiros de dentro, mais perto da gente, e aí a gente fica nessa corrente, criando esse movimento contra o covid-19, e aí a gente, cada vez que vem, os parceiros entram em contato, né, conversam com a gente, diálogo com a gente, né, e aí a gente fia na expectativa de dias melhores, né, pra população indígena. Como bem sabe, a nossa população, o nosso rio é muito grande, a jurisdição da FOCIMP são seis municípios, né, mais de vinte e dois povos diferentes, e aí é uma logística muito grande, e aí a gente conta com esses parceiros, a gente conta com o Estado, a gente conta com o governo municipal, né, a gente tá, né, apoiando de fato essas aldeias, não só essas aldeias indígenas, mas também os extrativistas, né que a gente vê que eles estão ficando de fora, né e a gente fica mais preocupado, por que eles é que estão ao nosso redor, né eles é que estão ali, lado a lado com a gente, e aí a gente vê nenhum apoio pra eles, nenhum apoio do município, através da secretaria do município, nenhum informe pra eles, boletim informativo sobre esse contexto (MATIAS APURINÃ, maio 2020).

Zé Bajaga Apurinã (José Raimundo Pereira Lima), liderança da TI Caititu, que foi ex-coordenador da FOCIMP e que, no momento em que deu seu depoimento, estava como coordenador local da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), destacou as ações de envio de cestas básicas para as aldeias e a mobilização de ações solidárias:

[...] aqui no Purus a Covid-19, ela vem assim, é devastadora, mas... por traz da Covid-19 tem muitas outras coisas que está acontecendo. Enquanto nós estamos com foco bem grande nela, outras coisas também estão acontecendo. A gente informou às comunidades, como representante da FUNAI e como liderança indígena, informamos aos parentes que continuem o máximo possível nas aldeias e que venham só se for preciso mesmo na cidade. A FUNAI está com distribuição de cestas básicas nas aldeias, a gente já conseguimos aqui em Lábrea entregar cestas básicas em mais de 45 aldeias, em todo o Purus entre Tapauá, Canutama, Lábrea e Pauini, aproximadamente mil e poucas cestas básicas. E a gente tá fazendo campanha também, no caso, conseguindo aí mais cestas básicas pela FUNAI, e como liderança mesmo, como liderança indígena estou fazendo uma campanha em nível nacional, com o pessoal do Instituto Mpumalanga, atrás de conseguir cestas básicas paras pessoas, para nós indígenas, os indígenas que não vivem nem nas terras indígenas demarcadas, mas que vivem, nas RESEX Médio Purus e Ituxi, na praia de Lábrea, nos bairros daqui de cidade e nos ramais. No quilometro 126, no ramal vinte seis, no ramal vinte e quatro, no doze, e nos rios Passiá e Mari, ramal do Tauaruã e nos bairros de nossa cidade, a gente está fazendo uma campanha, para ver se consegue alimento para essas pessoas que também estão passando pela situação difícil agora, como todos sabem (ZÉ BAJAGA APURINÃ, maio 2020).

Zé Bajaga Apurinã destaca, ainda, a preocupação com o relaxamento das medidas de segurança, além do problema da educação escolar indígena, de alunos e professores indígenas, discriminados pelo poder público local, com contratos precários de trabalho:

No começo o nosso parente, eles estavam mais apreensivos estavam, mas se resguardando mais, ainda tem bastante, só que agora eles tão, vindo mais para a cidade. [...] A covid19 também tá afetando todos nós, não tá tendo aula nas escolas nas aldeias, como todos sabem, e aqui em Lábrea, os nossos professores, mais de sessenta professores aí, cinquenta professores não foram contratados, então eles estão também passando por dificuldade, e a minha visão aqui dessa Corona vírus no Purus, ela está sendo muito drástica, ela está trazendo consequência difícil para todos nós (ZÉ BAJAGA APURINÃ, maio 2020).

Ambos os líderes indígenas evidenciam a necessidade de ajuda dentro e fora das TIs, reconhecendo a necessidade de ribeirinhos e assentados, e também de indígenas que por algum motivo foram morar fora das terras demarcadas. Também ressaltam a articulação e parcerias com instituições para que se possa alcançar todas essas pessoas, como se pode observar na seguinte fala de Matias Apurinã:

Hoje, o que é que a gente pode contar como parceria, né pra questão indígena: hoje a gente pode contar com o IFAM (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas) hoje a gente pode contar com o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) com a OPAN (Operação Amazônia Nativa), né, com a SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena), mesmo aos trancos e barrancos ela tá contribuindo de fato, né, com profissionais, disponível. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio), com poucos servidores, com a jurisdição que ela abrange, né, também são poucos funcionários, né essa é a maior burocracia, e o Purus vem enfrentando ao longo dos anos, né ,mas com a chegada da Pandemia multiplica o dobro de cada pessoa de cada instituição dessas (MATIAS APURINÃ, maio 2020).

TAPAUÁ: EXPLOSÃO DE CASOS DE COVID-19

Munícipio da calha do Purus com intensa comunicação fluvial com a capital do estado, Tapauá teve o primeiro caso confirmado por teste rápido registrado pela Secretaria Municipal de Saúde no dia 23 de abril de 2020. No dia 08 de maio daquele mesmo ano, o boletim municipal divulgou a confirmação de 60 casos por teste rápido no município, sendo dois entre indígenas. As internações eram três, e já se apresentava um óbito pela doença (FUNDAÇÃO DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE-AM).

A explosão de casos de Covid-19 em Tapauá foi percebida no dia 5 de junho: 456 confirmados, 9 indígenas, 3 óbitos. Salienta-se que a Secretaria Municipal de Saúde de Tapauá especificava os indígenas em seus boletins informativos sobre os casos confirmados e descartados. Em 06 de junho os casos saltaram para 477 (quase 20 por dia). No dia 11 de junho, saltaram para 562 casos confirmados, sendo 11 indígenas, três óbitos. 781 casos no dia 29 de junho, com quatro óbitos, segundo dados da Secretaria de Saúde do Amazonas (SUSAM).

No mês de agosto com o aumento do número de testes rápidos, registrou-se um aumento de mais de 400 casos confirmados no intervalo de um mês, como demonstra o boletim diário da Secretaria de Saúde de Tapauá, conforme ilustrado na Figura 2:


Figura 2
Em um mês um aumento de 695% (quase oito vezes) nos casos confirmados em Tapauá
Fonte: Boletim da Prefeitura Municipal de Tapauá-AM.

Valdomiro Apurinã, então vice coordenador executivo da FOCIMP, relatou que a doença pegou a todos de surpresa na cidade, propagando-se muito rapidamente. A partir do momento em que ele e sua família foram contaminados, Valdomiro passou a se preocupar com a situação das aldeias, onde os indígenas estavam sem muitas informações e sem uma assistência direta dos órgãos de saúde:

Então, aqui em Tapauá né, só teve caso de sete pessoas indígena né e principalmente eu também tive com caso da Corona vírus, mas tá tudo bem por aqui graças a Deus. A gente está tentando falar para os parentes ficar nas suas comunidades né, e nós ficamos muito preocupados, no entanto aqui em Tapauá, mas é o médio Purus todo né, então isso, nós ficamos preocupados com isso né. E, outra coisa, né, a Corona vírus, a gente tá aqui, todo mundo isolado na aldeia, como aqui na cidade, nós ficamos preocupado por causa da alimentação que não tem pras aldeias, então várias vezes as lideranças saem das aldeias pra vir comprar a sua alimentação né, então na aldeia também tem alguma alimentação né só que falta também as outras alimentação de sal, essas coisas né, então isso é a nossa preocupação. Em Tapauá a gente ficou preocupado com isso, mas tá tudo bem né, não tem transmissão nas aldeia, eu não sei ainda, mas espero que não né, mas tá tudo bem em Tapauá, a nossa preocupação é que ela chega nas aldeias. Aqui em Tapauá a gente chegou a ficar preocupado né, principalmente eu e o Gilberto (FOCIMP), pegamos, contatamos com esse Corona Vírus, inclusive até agora ainda tô ainda em casa, tô melhorando, a minha pressão descontrolou toda, mas tá tudo bem comigo, graças a Deus (VALDOMIRO APURINÃ, maio 2020).

Como coordenador executivo em exercício da entidade representativa do movimento indígena regional, Valdomiro Apurinã foi contatado por diversas entidades da sociedade civil, com sede em Manaus e em outras localidades do Brasil, que ofereceram apoio e desejavam obter informações sobre o avanço da pandemia. Por ter sua sede em Lábrea, a FOCIMP acabou trabalhando com esses apoios, a partir dessa cidade, onde há escritórios locais de algumas Organizações não Governamentais (ONG) e também o restante dos coordenadores da organização indígena.

PAUINI: NARRATIVAS INDÍGENAS DE ENFRENTAMENTO AO COVID-19

Devido ao seu relativo isolamento geográfico, talvez por não ter acesso por estradas, Pauini conseguiu evitar ao máximo a chegada da Covid-19, sobretudo pela via fluvial, uma vez que não estava sendo permitido que os barcos de passageiros vindos da capital subissem o rio Purus.

O primeiro caso de Covid-19 na cidade foi registrado no dia oito de maio de 2020, com registro no Boletim da Comissão de Enfrentamento à COVID-19, liderado pela SEMSA de Pauini. Esse primeiro caso chegou provavelmente por meio do transporte aéreo, algum voo fretado vindo de Rio Branco, a capital mais próxima, no estado vizinho do Acre. O vírus se disseminou muito rapidamente, primeiramente entre núcleos indígenas do povo Apurinã. Na ocasião, a comunidade local da sede do município chegou a acusar a comunidade indígena de ter trazido a doença, motivando a Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi (OPIAJ) a divulgar nota de repúdio e de esclarecimento.

O gráfico reproduzido na Figura 3, abaixo, apresenta os números do avanço da pandemia no município. Percebe-se que o aumento rápido da curva se deu no mês de junho de 2020, menos de um mês da detecção do primeiro caso:


Figura 3
Evolução dos casos de Covid-19 no município de Pauini/AM
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Pauini, 2020

Na Figura 4, a seguir, o gráfico elaborado pela SEMSA demonstra os casos de cura clínica (quando o paciente passa o período de transmissão do vírus). Percebe-se, entre a população indígena, em torno de 30% dos contaminados:


Figura 4
Proporção de casos curados de Covid-19 no município de Pauini em 30/06/2020
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Pauini, 2020

Em Pauini, assim como em outras localidades do interior do Amazonas, a atenção à saúde indígena é realizada pela Equipe Multidisciplinar da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). A quarentena coincidiu com a campanha de vacinação da equipe multidisciplinar nas aldeias. Segundo Evangelista Apurinã, coordenador da FUNAI-CTL/Pauini, durante o trabalho de campo, três profissionais de saúde foram diagnosticados positivos para o Corona vírus e logo empreendeu-se uma busca ativa nas aldeias atendidas pela referida equipe. Nas 12 aldeias atendidas, foram encontradas pessoas com síndrome gripal. Não foi possível verificar se eram casos de Covid-19, pois não havia testes rápidos no momento. Salienta-se a falta de estrutura, a inexistência de UTI no município e a total carência de qualquer teste para a Covid-19 naquele período de início de transmissão da doença.

Para o enfrentamento à Covid-19, em Pauini, foi formada uma equipe composta por 14 profissionais, representando as seguintes instituições: FUNAI, OPIAJ, FOCIMP, Secretaria Municipal de Saúde, Equipe de vigilância do Polo Base. Evangelista Apurinã, coordenador da CTL/Pauini, relata que existe uma distribuição de funções/papeis nesse processo:

O meu papel é ter o poder de convencimento, junto com o Movimento Indígena. Então, essas pessoas farão parte para ajudar no diálogo no entendimento do que é esse COVID-19. Os profissionais de saúde na questão de fazer o tratamento de fazer o diagnóstico. O Purus de cima[5] temos aldeias que o aceso e mais fácil para Boca do Acre do que por Pauini, não tem ninguém que os oriente e, ai vão para filas da Lotérica, pra fila da Caixa Econômica e aí lá vai, sem proteção nenhuma, de uso de máscara do uso do álcool em gel e do sabão das orientações de lavar as mãos. (EVANGELISTA APURINÃ, maio 2020).

Evangelista Apurinã faz, ainda, uma reflexão sobre as categorias apresentadas nesse processo de ações de enfrentamento, nas seguintes palavras:

O isolamento, a gente entende que não é só chegar lá e dizer: parente, está isolado, não visita outra aldeia, não recebe ninguém, não visita o outro principalmente esse que apresenta sintoma ne de síndrome gripal e que sinta falta de ar tenha febre alta, em fim não é só isso. Nós precisamos, também, dar uma assistência com cestas básica no mínimo, ou com equipamento de pesca, para que eles fiquem de fato no isolamento. Então esse é o nosso desafio agora, para que a gente consiga conter esse aumento de casos, que a gente teve nos últimos dois dias, já pulamos para oito casos só de indígena. Porém, nós não temos as cestas básicas, nós temos álcool em gel, que foi doado pelo Instituto Boticário, através da CUFA, Central Única das Favelas, chegou álcool em gel, chegaram duzentos quilos e tem mais duzentos quilos em Lábrea para chegar. Iremos fazer a distribuição, porém falta as cestas básicas, essa é a situação que a gente está vivendo aqui hoje. (EVANGELISTA APURINÃ, maio 2020).

Segundo o líder indígena, muito já vinha se perdendo da culinária tradicional Apurinã, situação que se agravou no período da pandemia e que provocou a busca por cestas básicas, tendo em vista a diminuição do deslocamento para a cidade, pois os indígenas saem das aldeias para receber rendimentos de programas sociais, como Bolsa Família, aposentadorias, além dos salários dos professores, agentes de saúde e, nesse momento também, o auxílio emergencial:

Por que a gente não está conseguindo mais tomar o vinho da caiçuma, o vinho da macaxeira, não estamos mais fazendo comida simples que era a sopa de macaxeira, que a gente chama de cabeça de galo, que é uma sopa, tipo um mingau de caridade só com leite de castanha. Então, essa parte está faltando porque se o negócio é vir buscar alimentos na cidade, a gente tem esses alimentos lá, então a nossa ida para as aldeias, trabalhar essa conscientização é mais nesse sentido de ajudar a equipe de saúde nesse momento, não é que a gente é o salvador da pátria, mas a gente, tem e deve contribuir. (EVANGELISTA APURINÃ, maio 2020).

Evangelista Apurinã relata que muitos se viram na situação de buscar centros de refúgio para os mais velhos, pessoas que já não conseguem caminhar muito, sem acesso de canoa devido à baixa das águas. Ele cita que várias aldeias adotaram o isolamento social voluntário. Na TI Água Preta/Inari, a quarentena foi eficaz para a prevenção ao Covid-19 e seguiu por 60 dias sem contaminação; a aldeia São Benedito adotou a quarentena, mas apresentou alto número de infectados[6].

Oziel Apurinã, da TI Água Preta Inari, aldeia Kasiriki/Pauini, narra que:

Esse momento de pandemia que a gente enfrenta do Covid-19, é uma preocupação aonde, teve a preocupação nossa da Terra Indígena, onde o polo também do município, juntamente com articulação da FUNAI, e a gente se preocupou com esse período de pandemia que vem matando milhares e milhares de pessoas. A gente se preocupou também que a gente faz parte de quadro, qualquer um de nós corre o risco, e a gente se preocupou com o que era indígena com o povo, e nesse momento a gente, está fazendo a vigilância da entrada e saída de pessoas, na base fica situada na boca do igarapé. A gente mantém esse controle, a gente abordou isso por trinta dias, mas quando a gente abordou isso a doença não tinha chegado em Pauini ainda, mas a gente já tinha abordado nesse sentido de preventivo. Nós somos oito comunidades cada uma delas tem agentes ambientais e os agentes de saúde e nossos caciques. Eu, sou um AISAN (Agente Indígena de Saneamento), é com a preocupação de vida da nossa terra a gente se preocupou, qual as três aldeias do Mipiri, Afucate, Kasiriki. A gente se preocupou, ao pouco de gente que estaria ainda penetrando na nossa terra indígena, que nós temos nossos vizinhos tem um pouco de nossa terra indígena, e a gente se preocupou de como a gente abordaria isso, como esse período chega no nosso Brasil (OZIEL APURINÃ, maio 2020).

Oziel Apurinã se refere ao processo de articulação e organização das aldeias da TI para o enfrentamento à Covid-9:

Essa pandemia que está acontecendo, a gente reuniu três aldeias, as três aldeias, e formamos uma aliança de pensamento, e lá a gente tirou para a gente fazer essa, esse acampamento lá na boca uma base, e ao combate ao covid-19, sem nenhum caso afetado na T. I Agua Preta/Inari. A gente alcançou essa meta. As terras indígenas todas foram parabenizadas pela secretaria, pela FUNAI, IEB[7] e o Pólo, aonde a gente teria tomado essa iniciativa, e hoje a gente tem isso em mente como jovem de luta a gente precisa de mais. A gente vai conseguindo conforme o objetivo que a gente for fazendo e realizando a gente vai ganhando. Pra mim é uma luta por que eu tenho família deixei minha família em casa, pra mim passa esse período de quarentena mais os colegas que prevê o futuro, da nossas aldeias, e cheguemos a posição de deixar a nossa própria família em casa, e fomos tentar combater esse vírus que não é fácil, e um vírus que a gente não consegue prevê ele é invisível, ninguém não consegue observar quem é que tá, mas mesmo assim, a gente colocou à disposição da nossa pessoa pra fazer esse tipo de serviço correndo o risco pra nós. (OZIEL APURINÃ, maio 2020).

A proximidade da TI com a área urbana, ressalta-se, tento em Pauini como em Lábrea e Tapauá, foi fator importante para os indígenas buscarem criar uma barreira de proteção para as aldeias. Outro ponto importante diz respeito à posição de autoridades do governo brasileiro que menosprezaram a potência do vírus e seus impactos para a saúde da população.

A nossa aldeia, nossa terra indígena, ela faz extrema com a cidade com o município de Pauini, então a gente faz isso, mas mesmo assim ainda tem pessoas teimosas. A gente pede apoio, do nosso parceiro que nem eu falei, FUNAI, Pólo, IEB e Secretaria de Saúde do Município, então é isso pra mim isso não é coisa de outro mundo, é uma prevenção e a gente está disposto a lutar pelo nosso povo, pelo bem estar de cada um. A gente vai continua vai a luta se Deus quiser essa pandemia vai passar, mas nossos parentes ela não vai conseguir levar. Aquelas pessoas que acham que a gente está fazendo errado, mas que eles trouxessem um quilo de cará, um cacho de banana, uma colher de açúcar já era uma diferença então é isso, ao combate ao covid-19 foi isso que a gente fez, é pelo bem de todos, a gente sofre também com isso porque que nem eu já falei não e fácil. Muitos acham que brincadeira isso, é uma gripezinha, não é uma gripezinha qualquer que está aparecendo por aí, isso não mata ninguém, mas milhares e milhares de pessoas morreram, a gente tem uma facilidade porque a gente é muito natural aqui. A gente é muito natural a gente come muitas coisas natural então a gente tem essa facilidade talvez por isso ela está chegando muita fraquinha aqui, mas a gente acaba de perder uma parente nossa que é triste isso a gente saber disso essa notícia. Agora acaba de perder também uma pessoa importante também para nós que é nossos idosos, que para mim são um arquivo de sabedoria que temos ali. E nesse momento a gente acaba de perder né um, um grande conhecido da gente. Um matatarezim que é muito conhecido, seu Moacir a gente perde também isso, então e assim pessoal vamos trabalhar ao combate vamos se ajudar (OZIEL APURINÃ, maio 2020).

Dessa forma, fica explícita da fala do líder indígena, o lamento pela morte dos mais velhos, fato que, sempre que ocorreu durante a pandemia, foi registrado, seja por nota de pesar emitida pela FOCIMP, seja por outras iniciativas que visaram dar destaque para a perda de vidas indígenas para uma doença que lamentavelmente chegou a ser tratada pelo próprio chefe do executivo federal do Brasil como mera “gripezinha”.

ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO PRODUZIDAS PELO MOVIMENTO INDIGENA COMO RESISTÊNCIA À COVID-19

A partir das narrativas coletadas junto a um grupo de lideranças indígenas ativamente envolvidas no contexto da crise sanitária instalada na região do médio Purus, Amazonas, foi possível tecer uma análise sobre a ações de enfrentamento ocorridas nos primeiros meses da pandemia em três municípios dessa região da Amazônia brasileira. A questão norteadora que conduziu esta reflexão foi: qual a situação das aldeias e quais as estratégias que estão sendo realizadas para o enfrentamento da Covid-19 nas Terras Indígenas?

Em Lábrea, destaque para o depoimento de Matias Apurinã, que trouxe a questão do pequeno número de servidores da FUNAI para atender às demandas da região, destacando o papel das instituições parceiras durante a pandemia. Essa questão se se aplica também ao DSEI, com o agravante da falta de medicamentos e outras fragilidades que se apresentam no cotidiano da saúde indígena no município.

Também sobre o assédio dos políticos locais às aldeias e comunidades no período de campanha eleitoral, de modo que ações de solidariedade, como a distribuição de cestas básicas correriam o risco de serem utilizadas para fins eleitoreiros, não fosse o controle do Movimento Indígena organizado para conter isso.

Zé Bajaga Apurinã apontou para o aumento dos deslocamentos aldeia-cidade-aldeia, considerado um grande vetor de contaminação. Também destacou nas suas falas a assistência dada pelo Estado e as cestas básicas distribuídas pela FUNAI e a relevância das ações solidárias realizadas pelas ONGs.

Um aspecto que merece atenção é a educação escolar indígena. A pandemia, fez com que as escolas indígenas não iniciassem suas atividades, sendo que a Secretaria de Educação e Cultura (SEMEC) do município de Lábrea não renovou a contratação dos professores, que ficaram todos sem salário e sem nenhuma assistência. Como a maioria mora na cidade, passaram por severas necessidades financeiras. Cabe esclarecer que a contratação dos professores (indígenas e não indígenas) da zona rural do município ocorre a cada ano, por volta dos meses de abril ou maio, diferentemente dos professores da cidade, onde as aulas iniciaram em fevereiro.

Desta feita, como a pandemia foi anunciada a partir de março, os professores indígenas não foram contratados, ficando em condição de penúria. Em agosto, a SEMEC, alheia às medidas de biossegurança, iniciou um movimento para o reinício das aulas nas aldeias, sinalizando a possível contratação dos professores. Tal posicionamento foi questionado pela FOCIMP e pela FUNAI, visto que colocava ainda em risco os povos indígenas da região. Tal posição da prefeitura, por meio da SEMEC, foi interpretada por algumas lideranças como estratégia política, às vésperas das eleições municipais. Assim, partir da pressão do Movimento Indígena e da FUNAI local, foi impedido o reinício das atividades escolares nas aldeias.

A questão da não contratação dos professores tem produzido um debate interno no movimento indígena regional sobre a legalidade ou não dessa ação da Prefeitura de Lábrea. Essa prática repercute da mesma forma para os professores das escolas rurais das comunidades não indígenas e nos outros municípios da calha do Purus. A situação desses professores ficou agravada com a pandemia, pois, sem contratação, ficaram dependentes das ações solidárias e à espera do auxílio emergencial do governo federal.

Em sua narrativa, Agenor Paumari apresenta a situação das aldeias, o aumento dos casos positivos da COVID-19, que se alastra na TI Paumari do lago Marahã, em Lábrea. Frente a tal situação Agenor faz um apelo, um grande pedido de ajuda, para que as diversas instituições se posicionem e tomem medidas de forma conjunta, no sentido de combater o avanço da doença nas aldeias. Tal apelo aponta para as questões do enfrentamento institucional à Covid-19. A fragilidade das instituições de apoio aos povos indígenas é evidenciada no contexto da crise das políticas de proteção territorial às TI e de garantia aos direitos específicos dos povos indígenas.

A narrativa de Agenor está carregada de sofrimento e angústia diante do momento vivido. Sua esposa foi uma das primeiras vítimas fatais, vindo a óbito em 02 de julho de 2020. Considerando as reflexões de Bourdieu (1998), esse é um sofrimento social que ecoa no choro e nas lágrimas das milhares de famílias que vivenciam o luto de seus entes queridos, vítimas da Covid-19.

A crise na política nacional reflete diretamente nas bases, por consequência da falta de atendimento às demandas das aldeias. Esse clamor se soma ao clamor de outros segmentos sociais no Brasil, atingidos pela necropolítica implementada pelo atual governo, que age na linha da negação de direitos. Na análise de Oliveira (2020, p. 2),

A doença se espalha nas favelas, nos presídios, comunidades terapêuticas, entre a população de rua. Faltam políticas e orientação para a população trans e profissionais do sexo. Direitos indígenas são violados em suas terras, que inclui omissão ante ao contágio trazido por garimpeiros e desmatadores. A maneira desigual das ocorrências de mortes atingindo negros e negras e a subnotificação por falta de testes. [...] A escalada do autoritarismo, a perda de direitos. E em meio a isso tudo, a desinformação – o chefe de Estado contraria diariamente as recomendações das autoridades médicas do Brasil e do mundo (Grifo nosso).

No caso de Tapauá, a fala do Valdomiro Apurinã, coordenador da FOCIMP em exercício naquele momento se refere ao crescimento dos casos de Covid-19, apontando, ainda, a dificuldade de conter o deslocamento aldeia-cidade e vice-versa, devido à necessidade de comprar alimentos. A circulação dos barcos entre Manaus e o município foi apontada como um fator de disseminação da Covid-19 para as TIs no município. O discurso do líder indígena, ele próprio acometido pela doença, se reporta à solidariedade e à mobilização de várias frentes de apoio aos povos indígenas, adiantando-se à resposta do estado com relação ao fornecimento de alimentação.

As campanhas solidárias tornaram-se um instrumento importante para a defesa da vida nas aldeias, sobretudo no momento de pico da chamada “primeira onda” da Covid-19 nessa região. Outros entraves apontados foram: a falta de possiblidade de comunicação; a não capacitação para lidar com os meios tecnológicos; e a falta de acesso à internet, que dificultam a articulação das lideranças com suas bases. Tais situações agravaram ainda mais o processo de entendimento sobre a gravidade da pandemia, bem como a articulação política do movimento indígena.

No município de Pauini, Evangelista Apurinã também falou da necessidade de os indígenas irem à cidade para comprar alimentos. O desuso das práticas culinárias tradicionais, intimamente ligado ao intenso contato com a sociedade não indígena foi relacionado a essa necessidade de se recorrer com frequência à cidade.

Abruptamente, os indígenas, assim como toda a população, tiveram que lidar com conceitos que não conheciam, como isolamento social, quarentena. Nesse sentido, Evangelista afirma que, para que houvesse isolamento, era preciso dar condições aos indígenas de ficarem nas aldeias, já que vários produtos precisavam ser comprados na cidade. Ele aponta que é preciso pensar nas condições que os indígenas necessitam para vivenciar o isolamento social, sem fazer o deslocamento para a cidade.

Outro dado importe apontado por Evangelista se refere aos testes rápidos para Covid-19, que demoraram a chegar ao município, sendo necessária a intervenção da FUNAI. A equipe de saúde testou grande parte dos moradores das aldeias. Outro ponto da narrativa recai sobre a falta de estrutura e a fragilidade administrativa da SESAI, pois faltou até álcool em gel para a equipe multidisciplinar, motivo pelo qual a OPIAJ teve que se posicionar diante do ente federal. A precariedade da assistência à saúde indígena é pauta histórica do movimento indígena e a pandemia veio dar maior visibilidade a essa problemática.

Oziel Apurinã enfocou a vigilância e o controle como estratégias importantes para o combate e prevenção da contaminação na TI Água Preta Inari, em ação produzida a partir de uma decisão coletiva dos moradores das aldeias da TI e que vem garantido a não contaminação dos indígenas. Sua fala apresenta situações de conflito, visto que muitas pessoas não acreditam no potencial letal da doença, classificada como uma “gripezinha” por ninguém menos que o presidente da república, para minimizar os impactos da pandemia.

Outro dado a se destacar é a perda dos mais velhos. Oziel afirma que “eles são arquivos vivos de sabedoria”. A profundidade dessa fala remete à descrição de muitos outros indígenas frente à perda de seus anciões. A pandemia da Covid-19 trouxe perdas incomensuráveis dos saberes indígenas, que se vão com a morte de seus anciões.

Por fim, deve-se salientar o protagonismo dos povos indígenas na defesa de seus territórios, ameaçados pela pandemia, madeireiros, garimpeiros, grileiros e outros. Nesse sentido, é necessário o enfrentamento à necropolítica estrategicamente assumida pelo governo brasileiro, com relação aos territórios tradicionais, tornada pública com a divulgação de reunião ministerial ocorrida em 22 de abril de 2020, quando o ministro do Meio Ambiente do Brasil anunciou que é hora de “passar a boiada”, enquanto todos estão voltados para a questão da pandemia. A revelação do vídeo dessa reunião em Brasília trouxe à tona o que já se anunciava desde a posse do atual presidente e de sua equipe ministerial. Como afirma Sandra Caponi (2020, p. 210-211):

Esse negacionismo que foi adotado pelo atual governo já na campanha eleitoral, com seu desprezo pelas universidades, pela pesquisa científica, pelos direitos das populações vulneráveis, pelas comunidades indígenas, LGBT, populações de rua, mulheres em situação de violência etc., agrava-se em tempos de epidemia, quando existe maior necessidade de um Estado presente que garanta o exercício dos direitos (Grifo nosso).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia atingiu diretamente o fazer das lideranças indígenas, alterando a pauta do movimento indígena. De um momento para outro, as lideranças se viram obrigadas a iniciar uma verdadeira corrida para dar conta de uma pauta emergencial: a busca por levar assistência às aldeias das diversas Tis, as reconhecidas e as ainda não reconhecidas oficialmente pelo Estado, e informações sobre os perigos que todos os povos passaram a viver a partir do mês de março de 2020.

A restrição da circulação nas cidades foi um choque para grande parte das aldeias, pois uma significativa parte do que é consumido pelos indígenas é comprado fora: itens como sal, açúcar, arroz, feijão, combustível, pilhas e munições, entre outros produtos. O isolamento social, imposto com a pandemia provocou um forte desequilíbrio, sentido especialmente pelos indígenas que mantêm contato com as cidades.

A estratégia encontrada e vivenciada pelas lideranças foi buscar apoio nas redes de solidariedade, que se formaram em todo o Brasil, e também no plano internacional, envolvendo ONGs, Igrejas, grupos de pesquisa, dentre outros, que deram apoio direto às aldeias e comunidades, com o envio de cestas básicas e kits de higienização.

Tais ações se destacaram frente ao descaso e à lentidão das ações governamentais, sobretudo do governo federal, na liberação dos recursos do auxílio emergencial. Vale destacar que o auxílio emergencial, quando liberado, causou uma série de transtornos, a começar pelas restrições no acesso a informações e à obrigatoriedade do uso da rede mundial de computadores, o que se transformou num grande problema para os grupos sociais aos quais se objetivava essa ação, singularmente os povos e comunidades tradicionais que vivem em regiões onde não há acesso à internet.

Além disso, houve aglomeração de pessoas nas Agências da Caixa Econômica Federal, o que pode ter favorecido o aumento de casos de contaminação nos municípios.

Outra estratégia apresentada nos relatos das lideranças foi a criação de uma base de vigilância de enfrentamento, construída na T.I. Água Preta/Inari no município de Pauini. Tal iniciativa se constitui como um espaço coletivo, democrático e deliberativo das ações de proteção territorial. Nesse sentido, a vigilância do território, entendida como uma estratégia importante de mobilização, é uma atividade realizada com dedicação na defesa da vida e pode ter contribuído muito com a não contaminação de muitos indígenas até a chegada da vacina.

Destaque-se a importância das ações de vigilância e controle, pois os relatos analisados apontam situações de conflito, invasores que classificam a Covid-19 como uma “gripezinha” e se alinham à posição do chefe maior do estado brasileiro, para minimizar os impactos da pandemia, no contexto da chamada necropolítica (MBEMBE, 2016). As lideranças da TI Água Preta/Inari seguiram na oposição da postura do governo federal, a qual se apresentou como uma estratégia importante na defesa da vida dos povos indígenas do Purus, frente à forte onda de desinformação que se espalhou.

Para concluir, deve-se frisar que este texto está circunscrito a um tempo-lugar específico em que se vivenciou a pandemia da Covid-19. Como o tempo da escrita segue em descompasso com a cotidiano vivido, espera-se que este trabalho venha a compor a complexa rede de reflexões feitas pelos demais pesquisadores que também foram surpreendidos e envolvidos pelas situações sociais que emergiram desse tempo singular, o ano de 2020, em decorrência da pandemia do novo Coronavírus.

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Notas

[1] Em junho de 2020, a imprensa nacional e internacional repercutiu a falta de transparência na divulgação dos dados sobre os casos de Covid-19 no Brasil, pelo Ministério da Saúde.
[2] Conceito trabalhado por Foucault (2010), em artigo intitulado A vida dos homens infames.
[5] As instituições locais dividem sua atenção às localidades da zona rural, ribeirinhas e indígenas, em duas sub-regiões: Purus de Cima e Purus de Baixo. O Purus de Cima indígena registra 19 aldeias, enquanto o Purus de Baixo, 21 aldeias.
[6] Devido à condição de síndrome gripal, a aldeia São Benedito fez busca ativa em quase todos os seus moradores. Como resultado, o primeiro teste registrou 12 contaminados pelo coronavírus. A segunda leva de testes, 37 contaminados, o que colocou a aldeia em destaque, haja vista o alto número de caso positivos.
[7] Instituto Internacional de Educação do Brasil.


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