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Os conhecimentos tradicionais de cura do povo Parintintin
The traditional healing knowledges of Parintintin people
Los conocimientos tradicionales de cura del pueblo Parintintin
Revista Presença Geográfica, vol. 08, núm. 02, Esp., 2021
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 08, núm. 02, Esp., 2021

Recepção: 20 Janeiro 2021

Aprovação: 02 Fevereiro 2023

Resumo: Esse estudo busca averiguar os conhecimentos tradicionais do povo Parintintin para o tratamento da saúde e a cura a partir do uso de animais e vegetais medicinais. A metodologia consistiu em trabalho de campo, na convivência diária com os indígenas, em uma estadia de quatro meses, dividida nos anos de 2015 e 2017, a partir da observação participante, história oral, entrevistas semiestruturadas, identificação das espécies vegetais, entre outros procedimentos e técnicas de pesquisa. Constatou-se que as enfermidades podem ser do corpo (malária, sistema respiratório, sistema digestório, trato genito-urinário, etc.) e da alma (mau olhado e demais problemas espirituais). Pode-se usar de forma combinada espécies da flora e fauna, além da associação entre espécies da flora nativa (da floresta) com aquelas plantadas (dos quintais). O itinerário terapêutico envolve vários métodos de uso, como chás, xaropes, benzimentos, defumações e outros. A cura, de modo geral, ocorre quando se restabelece o equilíbrio do ser com ele mesmo (corpo e alma) e com o mundo a sua volta (meio social, biofísico e sobrenatural). Seus conhecimentos tradicionais, territorialmente arraigados, permitem que manejem os elementos da fauna e flora de forma sustentável, estabelecendo uma relação de equilíbrio, integração e coevolução com a natureza local.

Palavras-chave: Povo Parintintin, Conhecimentos tradicionais, Cura, Vegetais e animais medicinais.

Abstract: This study seeks to investigate the traditional knowledge of the Parintintin people for health treatment and healing from the use of medicinal animals and vegetables. The methodology consisted of fieldwork, in daily living with the indigenous, in a stay of four months, divided in the years 2015 and 2017, from the participant observation, oral history, semi-structured interviews, identification of vegetables species, among other research procedures and techniques. It was found that diseases can be of body (malaria, respiratory system, digestive system, genito-urinary tract, etc.) and of soul (evil eye and other spiritual problems). Flora and fauna species can be used in a combined way, in addition to association between species of native flora (from forest) with those planted (from backyards). The therapeutic itinerary involves various methods of use, such as teas, syrups, blessings, smokings and others. Healing, in general, occurs when the balance of being is restored with itself (body and soul) and with the world around it (social, biophysical and supernatural environment). Their traditional knowledge, territorially ingrained, allows them to manage the elements of fauna and flora in sustainable way, establishing a relationship of balance, integration and coevolution with local nature.

Keywords: Parintintin people, Traditional knowledge, Healing, Medicinal vegetables and animals.

Resumen: Esse estudio busca averiguar los conocimientos tradicionales del pueblo Parintintin para el tratamiento de la salud y la curación a partir del uso de animales y vegetales medicinales. La metodología consistió en trabajo de campo, en contacto diario con los indígenas, durante una estadía de cuatro meses, divididos entre 2015 y 2017, con base en observación participante, historia oral, entrevistas semiestructuradas, identificación de especies vegetales, entre otros procedimientos y técnicas de investigación. Se encontró que las enfermedades pueden ser del cuerpo (malaria, sistema respiratorio, sistema digestivo, tracto genitourinario, etc.) y del alma (mal de ojo y otros problemas espirituales). Las especies de flora y fauna se pueden utilizar de forma combinada, además de la asociación entre especies de flora nativa (del bosque) con las plantadas (desde patios traseros). El itinerario terapéutico implica varios métodos de uso, como tés, jarabes, bendiciones, sahumaciones y otros. La cura, en general, ocurre cuando se restablece el equilibrio del ser consigo mismo (cuerpo y alma) y con el mundo que lo rodea (entorno social, biofísico y sobrenatural). Sus conocimientos tradicionales, territorialmente arraigados, les permiten manejar los elementos de la fauna y la flora de manera sostenible, estableciendo una relación de equilibrio, integración y coevolución con la naturaleza local.

Palabras clave: Pueblo Parintintin, Conocimientos tradicionales, Cura, Vegetales y animales medicinales.

INTRODUÇÃO

Esse estudo busca averiguar os conhecimentos tradicionais do povo Parintintin da aldeia Traíra, Terra Indígena Nove de Janeiro (T.I.N.J), localizada no município de Humaitá - AM (figura 1), para o tratamento da saúde e a cura a partir do uso de animais e vegetais medicinais.

A aldeia Traíra fica a 45 km do meio urbano e o acesso se dá por uma estrada vicinal a partir da Rodovia Transamazônica (BR-230). São cerca de 5 km da sede da aldeia até a BR-230, o que revela uma curta distância, seja para ir ao meio urbano ou estabelecer relações com os regionais e outros povos indígenas, realizando trocas culturais. Os Parintintin – termo atribuído pelos rivais Munduruku – fazem parte de um conjunto de povos denominados de Kagwahíwa.

Os deslocamentos ao meio urbano são frequentemente realizados pelas lideranças do sexo masculino, em especial os professores indígenas, mas também podem ser feitos por mulheres, crianças e idosos. São necessários principalmente para a aquisição de alimentos, venda de farinha e acesso às instituições do Estado, como rede bancária, Secretaria de Estado de Educação (SEDUC), Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Casa de Apoio a Saúde Indígena (CASAI), dentre outras.

Já o contato com os regionais se dá majoritariamente com a participação das famílias em festividades e jogos de futebol, porém, também pode ocorrer a prestação de serviços por parte dos indígenas (homens) àqueles. No que concerne a outros povos indígenas também há o convívio inerente às festividades assim como à realização, em conjunto, de cursos da educação formal e não formal e reuniões, ambas as ações promovidas por Organizações não Governamentais (ONGs) e instituições do Estado (FUNAI, SEDUC, SESAI, etc.).


FIGURA 1
Mapa de localização da área de estudo
Fonte: STRACHULSKI, 2021(Org)

Ao que se refere a T.I.N.J, sua demarcação ocorreu em 1995/96 e a homologação em 1997 (BRASIL, 1997). O nome da terra indígena é uma referência ao do Igarapé Nove de Janeiro, o qual recebeu esse nome por ter sido o local em que em 9 de Janeiro de 1913 ocorreu o primeiro contato entre os Parintintin e os não indígenas. Sua área oficial é de 228.777 ha.

Além da T.I.N.J, faz parte de seu território a Terra Indígena Ipixuna (T.I.I), também no município de Humaitá. A população nas duas terras indígenas é estimada em 480 pessoas (SESAI, 2014 apud ISA, 2018). Não obstante, também há indígenas desse povo vivendo em cidades dos Estados do Amazonas e de Rondônia ou ainda em terras indígenas de outros povos. Segundo estimativa dos próprios Parintintin, no segundo semestre de 2015, havia 135 pessoas na aldeia Traíra.

Os Parintintin possuem uma forte relação com o seu território, a natureza local e os elementos que o compõe, visto que nele desenvolvem suas atividades tradicionais, como caça, pesca, coleta e outras. Demonstram serem exímios conhecedores, em especial, de espécies animais e vegetais, que podem ser utilizadas por eles como mõ’ã’tai, mohağ ou mohã’ga (remédio), sejam eles nativos ou plantados, no caso de espécies vegetais encontradas em quintais.

No Brasil, grupos humanos vêm utilizando de forma ampla, ao longo do tempo, espécies animais e vegetais e produtos derivados como recursos para o tratamento da saúde, em especial os povos indígenas (SILVA; ALVES; ALMEIDA, 2004). Para tanto, desenvolveram conhecimentos profundos e complexos acerca dos elementos da natureza.

Esses saberes são entendidos como tradicionais, pois retratam a histórica e imemorial relação dos povos indígenas com os seus territórios. São essenciais para a sua existência, trilhando vários caminhos, desde a sujeição a certas condições, mas também a superação de dificuldades, as adaptações e coevoluções, a compreensão da natureza pelos grupos e a reconfiguração de ambientes. São territorialmente arraigados, cujo território, portanto, seria o fundamento dos saberes indígenas (STRACHULSKI; ALVES, 2019).

A organização destas sociedades e sua relação com a natureza e o seu território dependem, portanto, de seus conhecimentos tradicionais, frutos de mudanças históricas e culturais, que levaram a formação dos diversos grupos humanos. Assim, desenvolveram-se processos estruturantes como a linguagem, os aspectos simbólicos e as técnicas, que proporcionaram certa compreensão dos regimes naturais e permitiram aos povos herdeiros dos saberes tradicionais manejar o meio biofísico de forma a conservar a sua riqueza e satisfazer as suas necessidades (LEFF, 2000). Portanto,

Esses conhecimentos são considerados práticos, mas também frutos de crenças e imaginação, lotados de cultura e repletos de significados, baseados em observações e replicações, sendo desenvolvidos coletivamente pelos vínculos entre os indivíduos, que, a partir do contato diário com os seus, possibilita a disseminação de saberes e crenças, transmitidos oralmente entre as gerações (STRACHULSKI; ALVES, 2019, p. 47).

Os povos indígenas adquiriram saberes sobre a biodiversidade nos ambientes onde vivem a partir de observações minuciosas, tentativas, insucessos e acertos. Os conhecimentos sobre o tratamento da saúde, plantas e animais medicinais, tornam-se fundamentais e os mais estudados, pois estão atrelados a existência e prosperidade (bem-estar) desses grupos humanos. Sua relação com a natureza é de coevolução, sustentável e carregada de simbolismos. É nela que caçam animais e é dela que extraem vegetais para a produção de seus medicamentos.

Em relação aos Parintintin, o uso da flora sobressai ao da fauna, seja por sua maior abundância, facilidade em extraí-la, manejá-la, armazená-la ou outro motivo. Para Morgan (1994), as plantas de uso medicinal brasileiras não apenas curam, mas “operam milagres”, visto que além de seu efeito físico possuem grande significado cultural. Corroborando a tal fala, verifica-se que entre os Parintintin as espécies vegetais, e em menor proporção as animais, são empregadas nos processos de cura de doenças físicas (do corpo) e espirituais (da alma) a partir de várias formas de uso, como chás, defumações, benzimentos e outros.

Com a intensificação das relações com a sociedade envolvente[1], os Parintintin acabaram incorporando novos saberes, devido ao contato com novas espécies vegetais que não conheciam e, agora, não somente extraem-nas da floresta como as plantam em quintais. Ao invés de haver uma erosão[2] dos seus conhecimentos tradicionais, o povo Parintintin ampliou-os e diversificou-os ainda mais, de modo que continuam sendo transmitidos de geração em geração no seu território.

MATERIAIS E MÉTODOS

Essa pesquisa é entendida como um estudo de caso, que buscou compreender os saberes tradicionais dos indígenas Parintintin para o tratamento da saúde e a cura e os elementos usados neste processo. Para tanto, realizou-se uma convivência diária de quatro meses com esse povo, na Aldeia Traíra, sendo um primeiro momento no ano de 2015 e um segundo momento no ano de 2017.

Na aproximação a realidade local e ao objeto do estudo, inicialmente, fez-se uso da técnica da observação simples, oportunizando um entendimento geral do contexto, realizando-se mais comumente observações dos acontecimentos com baixo nível de interferência, interação.

Num segundo momento, com uma maior proximidade aos sujeitos, foi possível utilizar a observação participante, que permite uma análise de dentro da comunidade estudada, a partir da participação mais ativa nas situações cotidianas e/ou especiais, como festas e outras (ALBUQUERQUE et al, 2010).

Ao passo que se aprofundava mais ao cotidiano Parintintin e se possibilitava um melhor entendimento dos processos de cura de enfermidades e os elementos utilizados para tal, passou-se a fazer uso da técnica da história oral em conjunto com a observação participante.

A história oral pode ser entendida enquanto uma técnica, cuja proposta centra-se na “recuperação do vivido, concebido por quem viveu” (ALBERTI, 2004, p. 23). Nesses termos, é mister destacar que as experiências de vida, acontecimentos, saberes e outros elementos da vida de um povo e de sua história na relação com os seus espaços de vida pode ser contada de forma diferente por cada sujeito, o que acaba enriquecendo a cultura local e consequentemente a pesquisa que a retrate. Dessa forma, oportunizam-se múltiplas visões acerca dos muitos aspectos de um povo, como o variado conjunto de saberes tradicionais aqui retratados.

Ela propicia o registro das narrativas e, por conseguinte, a perpetuação de vivências, lembranças, eventos e saberes de uma forma significativa, rica, dinâmica e vivaz, o que oportuniza a valorização das subjetividades e dos indivíduos em si, entendidos doravante como sujeitos da pesquisa; “[...] reconhece que as trajetórias dos indivíduos e dos grupos merecem ser ouvidas, também as especificidades de cada sociedade devem ser conhecidas e respeitadas” (MATOS; SENNA, 2011, p. 107).

Segundo Portelli (2010), a partir do uso da história oral os pesquisadores amplificam e levam a voz dos excluídos e marginalizados para que possam ser ouvidos numa escala muito mais ampla do que a da sua realidade local. Em relação a esse estudo, a história oral permitiu a coleta de narrativas acerca dos processos de cura e os elementos utilizados pelos Parintintin para a sua concretização, como componentes de animais e de vegetais, com vistas à divulgação e valorização de seus saberes para além de seu próprio povo.

De forma concomitante a história oral, visando mais especificidade e aprofundamento ao tema dos diálogos, começou-se a aplicar as entrevistas semiestruturadas e para informações que ainda pudessem ter ficado dúvidas, fez-se uso das entrevistas não estruturadas ou informais (GIL, 2008), buscando refinamento e elucidação.

O universo amostral para a escolha dos partícipes do estudo teve como critério os seguintes: moradia na comunidade não inferior a 20 anos e idade superior a 40 anos, pois se compreendeu que aqueles com maior vivência e tempo de residência na aldeia seriam os detentores de uma gama maior e mais significativa de saberes. Nesses termos, participaram de forma mais intensa da pesquisa três mulheres e três homens. Por outro lado, outras pessoas, como adolescentes e crianças, de forma menos assídua e em situações oportunas[3], também participaram. A rede de colaboradores se constituiu com a indicação dos próprios moradores da aldeia, de forma geral, pela recomendação dos mais velhos (comumente os próprios participantes do estudo) e por nossa própria percepção, devido à convivência com os residentes.

Ao longo da realização da pesquisa também se fez caminhadas na floresta, visitas aos quintais e nas residências com o intuito de realizar registros fotográficos dos elementos utilizados nos processos de cura, podendo este procedimento ter ocorrido ou não em conjunto com a aplicação das demais técnicas.

Durante as caminhadas e visitas na companhia dos mateiros locais e na presença de um experiente engenheiro florestal da região Amazônica, foi possível a identificação das plantas utilizadas nos processos de cura, sendo realizada em campo (na floresta e nos quintais). As espécies vegetais foram identificadas pelos saberes tradicionais Parintintin, de modo que o engenheiro florestal apenas proporcionou a correlação com os seus nomes científicos.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A Geografia revela uma afinidade com a temática dos saberes tradicionais, numa perspectiva da relação entre sociedade e natureza territorialmente localizada, desde a ótica do sujeito, do seu modus vivendi. Diegues et al. (1999) destacam que estudos têm afirmado que a manutenção e, inclusive, o aumento da diversidade biológica nas florestas, estão intimamente relacionados com as práticas tradicionais da agricultura itinerante, uso de espécies vegetais para fins medicinais e outras atividades praticadas pelos membros de populações autóctones.

Em especial os conhecimentos para proporcionar a restauração da saúde são aqueles que se destacam nesse texto, pois possuem valores ancestrais que são transportados até o presente e mesmo com a medicina moderna impondo-lhes seus métodos, acabam mantendo sua importância e sua eficácia.

Os conhecimentos tradicionais Parintintin são transmitidos de geração em geração, aprendidos entre si e ressignificados ao longo do tempo. Desse modo, não são saberes estáticos, pois se diversificam e se expandem mediante sua curiosidade e capacidade intelectual de entender os códigos da natureza e da vida, o que pode estar atrelado tanto ao surgimento de uma nova mazela que aflige seu povo e que resulta na necessidade de combatê-la como pelo contato com outras sociedades, realizando trocas culturais.

Para os povos indígenas em geral, e os Parintintin em específico, as doenças podem ser de cunho físico, que são as moléstias do corpo, e espiritual, as “coisas feitas”, as enfermidades da alma. A doença seria um desequilíbrio da vida em sociedade, na interação com os seus, mediante práticas socioculturais, e com a natureza – biofísica e sobrenatural. Assim, o entendimento de saúde, estar doente, e seu tratamento pode assim ser expresso na fala dos Parintintin:

A pessoa fica triste e muda de cor, o olho branco, come pouco. Já dá pra ver que a pessoa não tá bem de saúde (M. G. PARINTINTIN, 2015).

Só quer saber de dormir, não tem ânimo de fazer nada, fica deitado. Então essa pessoa da dor de cabeça. Pode contar, aquele ali tá com olho grande, tá com mau olhado. Dá muita dor de cabeça, modo que a cabeça da gente é quente, aquela quentura. Pode mandar rezar, aí faz banho desse cravo, a mucura-caá e o cravo (R. PARINTINTIN, 2015).

Tem coisa que realmente o médico ele vai fazer um exame e através de exame ele pode saber o que a pessoa tá doente né (S. PARINTINTIN, 2015).

[...] mas tem coisas que só o pajé consegue resolver. Então há essa diferença. Por exemplo: quebranto e mau olhado, o médico não vai adivinhar que você tá com mau olhado. Aí o pajé já vai ver (M. B. F. N. PARINTINTIN, 2015).

Entretanto, não há uma separação entre o biofísico e o sobrenatural, pois entende-se que as doenças possam surgir com o desequilíbrio de um desses componentes (corpo ou alma), sendo que um pode afetar o outro. Assim, quando se trata o corpo, trata-se da alma concomitantemente e o contrário também é válido. “Não há saúde do corpo sem saúde da alma e, freqüentemente, um corpo doente contribui para a doença da alma e vice-versa” (LOYOLA, 1991, p. 127). Nesses termos,

A doença é sempre vista como resultado de um desequilíbrio na ordem social, ecológica e cosmológica, envolvendo a relação entre a sociedade humana [...] e o mundo dos ‘outros’, uma série de categorias de alteridade que inclui os animais, os inimigos, os mortos (GALLOIS, 1991, p. 181).

Quando os sintomas são muito semelhantes, podem ser relacionados a qualquer agente causador da moléstia, como visto na fala dos Parintintin acerca do entendimento de saúde. Doenças espirituais podem ser causadas por “mau-olhado” (LOYOLA, 1991), como destacado anteriormente.

Seus processos de cura incluem, normalmente, a manipulação de elementos do mundo biótico, como partes de animais e vegetais, além de rezas, benzimentos e rituais. De acordo com Silva, Alves e Almeida (2004), no Brasil grupos humanos têm utilizado amplamente, ao longo do tempo, espécies da flora e da fauna para o tratamento da saúde.

Essas possuiriam a essência da natureza, capaz de proporcionar a restauração da saúde aos enfermos, sejam eles problemas de ordem espiritual ou biológica, pois quando o indivíduo bebe o chá, é benzido, toma o banho ou recebe qualquer outro tratamento dessa ordem, se está reequilibrando suas energias consigo mesmo e com o cosmos, restabelecendo aquilo que foi debilitado pela moléstia. No quadro 1, apresentam-se alguns elementos acerca das formas de tratamento da saúde e cura de enfermidades na visão dos Parintintin.

QUADRO 1
Conhecimentos tradicionais Parintintin para prosperidade em saúde

Fonte: Povo Parintintin.Org.: STRACHULSKI, 2015

Como visto, os Parintintin acabam utilizando elementos animais e vegetais em conjunto ou separadamente para o tratamento da saúde, que acabam se perpetuando mediante seus conhecimentos tradicionais. Conforme Campos (1967), há uma predominância do uso de partes de vegetais em relação ao uso de animais, porém, o emprego destes em sua totalidade, de suas partes ou subprodutos ocorre em diversos povos indígenas, como exemplo, banhas, couro, patas, dentes, bicos, garras, ossos e chifres, utilizados como amuletos ou transformados em pó para a ingestão a partir da preparação de chás.

No caso Parintintin o mais comum é a utilização de gordura de animais, como a sucuri e a anta: “Banha da anta passa no corpo pra tirar a dor” (N. PARINTINTIN, 2015). A gordura (figura 2) é derretida e utilizada mais frequentemente na forma de massagem.


FIGURA 2
Gordura de anta derretida e engarrafada
Fonte: STRACHULSKI, 2015

A partir de um diálogo com uma criança e uma fala de uma idosa, evidencia-se que, além das partes citadas anteriormente (pata, dente, moela, pena, gordura e outros), para os Parintintin o cérebro animal também é importante, pois para aquele que o ingere propicia-se a sanidade mental, desenvolvendo-se a capacidade cognitiva e acentuando-se os sentidos de localização:

E aí, já matou algum passarinho? – “Não. Quase meu primo matou”. Mas o que vocês fazem com o passarinho depois de morto? – “A gente come ele, o miolo dele”. Por quê? – “A minha avó disse que a gente fica inteligente”.

Miolo de tucano, o vô dele que dava. Aí ele não se perde não. Tucano ele vai cantando, ele vara no mesmo canto (M. G. PARINTINTIN, 2015).

Como constatado por Strachulski e Alves (2019) em relação ao uso simbólico de espécies vegetais pelos Kaingang, o emprego de partes animais pelos Parintintin também age por meio de analogia, ou seja, de forma ritualística transmitem-se os atributos do animal ao usuário (SILVA, 2002). Assim, ao comer o cérebro do tucano significa simbolicamente que a pessoa vai adquirir a capacidade do animal em se localizar e se deslocar na mata, elemento que retrata a conexão dos indígenas com o território da floresta.

Ao que concerne ao quadro 1, além das doenças do corpo os elementos animais e vegetais também podem curar doenças espirituais, como o mau olhado. Aparentemente cura-se o corpo, porém, como corpo e alma não representam duas faces de um indivíduo, mas o seu conjunto, quando se cura um está automaticamente curando o outro. Ou seja, restabelece-se por completo a saúde do enfermo e não uma parte de seu ser. Na fala de dona R. Parintintin (2015) o processo de cura do mau olhado é assim especificado:

E a pessoa também as vez a gente faz, bota sete folhas de mucura-caá, bota um dente de alho, tudo pilado junto, o cravo, o pião-roxo. Aí faz, mede três litro de água num balde assim e deixa lá e pega o sal grosso e coloca junto. No outro dia, por exemplo, aí faz segunda, faz de domingo pra segunda e deixa lá no sereno, pra segunda a pessoa ir lá tomar banho no rio. ... Faz os três banho, até inteirar os seis ou sete, conforme a pessoa sentir melhor. Aí toma banho e não veste mais aquela roupa. Porque se for mau olhado, alguma coisa, olho grande que os outro tenham butado, a pessoa, assim, o coro fica modo oliento, fica assim que tivesse passado creme, fica liso. Aí tem que tirar o sabão pra pessoa só pegar, sem ninguém nunca ter usado. Pega o sabão pra tu usar só pra tomar banho.

No método de cura do mau olhado não aparecem elementos animais, porém, cabe destacar que estão presentes em outros processos de restabelecimento da saúde, inclusive se tratando de mal espiritual, como explicitado nas falas a seguir:

O gergelim pra espantar o mal de dentro de casa. Aí bota os carocinho de gergelim, aí você bota copaíba tudo junto, o pelo do macaco-prego, a pena de nambutona, que é contra o mal. Aí defuma. Passa aquela fumaça dentro de casa, na criança, na gente grande, gente adulto também pode ser esse daí (R. PARINTINTIN, 2015).

Pião-roxo nós utilizamos junto com a pena do nambu e junto com a casca do alho. Defumação na casa e na pessoa. Por exemplo, você tá muito ruim, você não tá conseguindo, a defumação é pra funcionar melhor e tal (M. B. F. N. PARINTINTIN, 2015).

Breu branco também é muito bom, quem sofre dor na cabeça, tontera, assim, fica meio bilé da cabeça. Faz curativo com pena de tona, queima. Tona é um pássaro. Tira a pena, bota em cima e queima e fica rudiando ele, fazendo aquele fumaça. Ouriço de castanha seco bota carvão dentro, aí bota a pena. Criança que fica chorando, assim doentinho, só chorando, só chorando, tira o cabelo do suvaco do pai e da mãe, corta o cabelo do cangote. Aí queima junto com a pena e pega o breu branco e queima, aí bota aquela pena de tona e saí fazendo difumar a criança. Aí esse pelo junto mistura com pena de tona, pega pena um pouquinho, cabelo, aí bota pra difumar. Passa na cara da criança, nos pés, nas mãos (M. G. PARINTINTIN, 2015).

A saúde, enquanto dádiva da natureza, “[...] depende de permanente vigilância e cuidado contra os espíritos maus da natureza” (LUCIANO, 2006, p. 173). Para tanto, as defumações, como praticadas pelo povo Parintintin, constituem processos de cura mais comuns no tocante ao afastamento de males espirituais, sendo responsáveis por afastar os “espíritos maus”.

Quando não há um diagnóstico específico do desequilíbrio, da moléstia, emprega-se um tratamento genérico, normalmente defumações a partir de componentes da flora e/ou fauna, que pode ser útil para tratar problemas físicos e espirituais, como se apresenta na fala a seguir: “Leite de jatobá, a gente pega uma casca de pau e colhe umas brasa, aí bota ele pra queimar, quando chega aquela fumaça recende tudinho, tirando doença. Fica rodando com a fumaça por fora de casa” (M. G. PARINTINTIN, 2015). Pode-se entender que o ato de andar ao redor da casa aplicando a defumação seria uma forma simbólica de afastar a doença e seu agente causador, não só das pessoas como da sua morada em si, visto que:

Saúde é um estado de equilíbrio espiritual, de convivência comunitária e ecológica, o que explica provavelmente a inclusão em sistemas de cura tanto de remédios para cura física, quanto para a melhoria e fortalecimento do bem-estar. [...] Plantas e medicamentos podem ser efetivos não apenas em função de sua ação farmacológica, mas em função do significado cultural que lhes é atribuído (HOEFFEL et al., 2011, p. 6).

Outro aspecto relevante do uso de partes animais para o tratamento da saúde pode se referir ao simples ato de friccionar um componente do animal ao local do corpo do ser humano que se pretende curar ou prevenir de algo, como passar a perna da ave Jacamim na perna da criança: “É que esse aí você não pega queda. Vai correndo muito longe” (M. A. PARINTINTIN, 2017). Dentro do princípio de analogia ou transmissão ritual de propriedades, passar a perna da ave na criança garante, de forma profilática, que essa não caia com facilidade, adquirindo as características almejadas do animal.

Conhecimentos tradicionais sobre o uso de componentes animais em conjunto com vegetais, nos processos de cura, demonstram uma natureza holística de compreensão da realidade, possuindo componentes espirituais, intuitivos e morais, englobando, principalmente, os elementos da vida (vegetais e animais) e os sociais (BERKES, 1993).

No caso dos elementos da vida, o uso dos vegetais sobressai sobre o dos animais, seja por sua maior facilidade em extraí-los, manejá-los, armazená-los, por sua maior abundância ou outro motivo. A vegetação se torna o fundamento central na relação dos indígenas com a natureza, no tocante à satisfação de suas necessidades físicas e espirituais de cura (STRACHULSKI, 2018), pois essa possibilita a percepção do sentido anímico que um povo indígena possui na sua conexão com o meio em que vive (COSSIO, 2015). Nas palavras de Lacaze (2010), a utilização de plantas medicinais é outra forma de se trazer a tona a perspectiva de que com a natureza se cura a natureza.

A partir do manejo das espécies vegetais, nesse caso medicinais, vem se permitindo uma maior riqueza em termos de biodiversidade da floresta, conservando a inscrição da cultura local sobre o seu território. Nesses termos, “Fica retratado um enraizamento ao território, visto que se gera um vínculo quase que cotidiano com a floresta, a partir da coleta de espécies medicinais” (STRACHULSKI; ALVES, 2019, p. 46-47).

O território, antes de qualquer coisa, pode ser entendido enquanto uma convivialidade (BONNEMAISON, 2002). Nesse sentido, as relações que os povos originários estabeleceram com seus territórios ao longo do tempo, definindo suas formas de atuação perante esse, possibilitaram estabelecer uma conexão essencial com a natureza local para a satisfação de suas necessidades tanto biológicas quanto intelectuais e espirituais.

Para Haesbaert (2007), o território seria um espaço-tempo-vivido produzido nas tramas materiais e imateriais do diário social, cuja gênese se assenta em processos diversos e complexos atrelados as vivências e a apropriação humana, que resulta em um continuum com este, calcado em valores, representações espaciais (locais sagrados, de caça, pesca, coleta, etc.) e no sentimento de pertencimento. Exerce sobre as pessoas uma força de atração, que se cria pelos sentimentos, subjetividades, pelos valores de uso atribuídos aos seus espaços de vida, que são caracterizados por suas ações sobre os elementos naturais, nesse caso a vegetação, e que configuram as trocas realizadas com a própria natureza.

Além do uso de espécies da floresta, essa relação com a vegetação também se estende para a aldeia, pois há espécies que são cultivadas em seus terreiros e quintais, característica herdada da sociedade envolvente. Desse modo, o quadro 2 destaca espécies encontradas tanto na mata[4] quanto na aldeia[5].

QUADRO 2
Espécies medicinais utilizadas pelos Parintintin para o tratamento da saúde

Fonte: Povo Parintintin. Org.: STRACHULSKI, 2015

Muitas plantas são provenientes, em especial, dos quintais e da floresta (mata). Há uma soma de elementos indígenas e não indígenas ligados às espécies vegetais e seus tratamentos de cura. De acordo com Lindenmaier e Putzke (2011, p. 8):

É provável que muito do conhecimento tradicional atual sobre o uso das plantas seja oriundo da cultura indígena. Também é possível que a abertura cultural desses povos possa ter acrescentado novos elementos vegetais de outras regiões do Brasil e do mundo dentro de seu conhecimento tradicional (Grifo nosso).

A prática do plantio de espécies vegetais medicinais em quintais, em princípio, não se torna um empecilho à reprodução dos saberes indígenas sobre as espécies da floresta, pois apesar dessa influência dos não indígenas lhes apresentando novas plantas eles acabam incorporando-as ao seu arcabouço de conhecimentos, visto que esse saber não se erode e sim se diversifica e se amplia.

O conhecimento tradicional sobre as medicinais torna-se ainda mais holístico, pois se pode produzir um medicamento a partir da combinação das espécies ancestralmente conhecidas pelos indígenas com aquelas de contato mais recente, como a arruda que é utilizada em conjunto com o óleo (resina) da copaíba.

Além do uso combinado entre plantas da mata e de quintal, pode-se ter também uma associação entre aquelas de mesmo ambiente, como a folha do cravo (Figura 3) com a semente do gergelim-preto – espécies da cultura não indígena – e a raiz de urucum com a de açaí (Figura 4) – espécies próprias da cultura indígena.


FIGURA 3
Cravo (espécie do quintal)
Fonte: STRACHULSKI, 2015


FIGURA 4
Açaí (espécie da mata)
Fonte: STRACHULSKI, 2015

Retrata-se um enraizamento dos indígenas ao seu território que é mediado também pelas espécies vegetais, nesse caso as de cura. “Viver no território com o desenvolvimento de suas práticas, aliadas aos conhecimentos tradicionais, definem seu modo de vida(STRACHULSKI; ALVES, 2019, p. 47, grifo nosso). Quando se extrai um recurso produzido pela floresta ou plantado em quintal está se utilizando a energia da sua terra (território), dos seus antepassados e dos seres e não seres, o que permite restabelecer a saúde do enfermo e criar um vinculo inextricável entre indígena e território.

O povo Parintintin não busca controlar a natureza, mas compreendê-la e conviver com ela de forma equilibrada, retirando somente o necessário para a manipulação do medicamento na cura de doenças, que seriam:

[...] o resultado da transgressão das leis da natureza e da vida. Para as comunidades indígenas, a natureza não é um recurso manipulável, mas um habitat, uma casa, um lugar em que se está e onde se vive. Para os índios, o território é um lugar sagrado, no sentido de que ele é o próprio gerador da vida (LUCIANO, 2006, p. 103).

Nesse caso, o território, para o povo Parintintin, emana saúde a partir de seus elementos naturais como as espécies vegetais. Essas possuiriam a energia vital que possibilita o bem-estar (físico e espiritual) das pessoas e promoveriam o equilíbrio com a natureza e a vida em si quando manipuladas de forma correta, seguindo os princípios da cultura local.

As espécies aqui citadas estão entre as mais utilizadas que auxiliam na cura das enfermidades mais recorrentes. Em sua maioria possuem mais de uma aplicação medicinal e várias espécies podem ser destinadas para tratar uma mesma enfermidade, fato que possibilita reduzir a pressão de uso e permite, em especial, um manejo sustentável acerca da vegetação nativa. As partes mais empregadas são as folhas e cascas e a forma mais comum de administração são os chás. Os problemas de saúde mais frequentemente tratados pelos Parintintin referem-se a doenças infecciosas como a malária, sistema respiratório, sistema digestório, trato genito-urinário, entre outros (STRACHULSKI, 2018).

Os saberes sobre a utilização de espécies vegetais para a cura do indígena Parintintin pode ser entendido, primeiramente, como um conhecimento prático implícita ou explicitamente compilado no seu território e a ele pertencente, sendo o resultado de observações minuciosas, tentativas, insucessos, acertos e inovações, que ficam evidentes nas falas reproduzidas a seguir:

Vou ali, pego uma raiz que já tá dizendo que é bom pra febre, se realmente deu certo eu continuo fazendo. Agora, se eu ver que não é, eu não vou prosseguir aquele remédio né. [...] porque caseiro é uma coisa que é bom, mas também a pessoa tem que saber usar, porque também pode prejudicar, fazer mal né (S. PARINTINTIN, 2015).

Tudo essas plantinha natural se você ferve junto com a água ele morre (M. A. PARINTININ, 2015).

A utilização de espécies vegetais também pode conter riscos a saúde do enfermo, bem como provocar alergias, prejudicar o funcionamento de órgãos e até levar a óbito ou simplesmente não surtir efeito algum ao organismo, tornando ineficaz o tratamento nos dois casos. Dessa forma, deve-se seguir corretamente o receituário para que o agente apresente o resultado esperado. Por isso, para a maioria das espécies há medidas corretas para fazer o tratamento para restabelecimento da saúde, como quantidade de partes utilizadas, uso conjunto de espécies distintas, tempo de tratamento, período do dia para o uso, dentre outros fatores.

De modo a corroborar ao dissertado, Jaboti (2015) e Gavião (2015) destacam que cada povo possui as suas formas próprias de preparação dos remédios e de entender o que a natureza lhes possibilita, e que mesmo que esses sejam produzidos pela manipulação de espécies vegetais, de forma natural, também podem causar males se elaborados e administrados de forma incorreta.

O saber local revelou-se holístico e complexo, haja vista que apesar do maior emprego das espécies vegetais para a cura de males físicos também possibilita o tratamento de problemas espirituais, o que “[...] mostra-se muito importante, pois reflete a relação de uma determinada comunidade com o mundo simbólico-mágico-mitológico” (STRACHULSKI; FLORIANI, 2013, p. 147). Para tanto, há espécies como mucura-caá, cravo e pião-roxo que são usadas para banhos mediúnicos, já espécies de breu e copaíba servem para a defumação, enquanto o babaçu é utilizado para benzimentos e a arruda é plantada próxima a casa para proteção espiritual.

Assim sendo, o conhecimento tradicional Parintintin sobre espécies medicinais pode ser entendido como prático, pois proporciona a cura do ser, “[...] mas não somente atende as necessidades materiais ele é também fruto de crenças e imaginação, lotado de cultura e repleto de significados” (STRACHULSKI, 2014, p. 41). Aliado a prática empírica também está presente um conjunto de crenças, simpatias, superstições e rituais que permitem a longevidade da vida para os Parintintin:

Tem uma árvore que chama casca-doce, é um tipo de madeira. A madeira dela vai ficando velha e vai descascando né. A gente se cura, desde pequeno a gente se cura pra ficar mais novo né, porque a gente vai descascando. Antigamente era assim: a gente passava três vezes, sexta-feira, passa no rosto, no braço, passa na árvore, aí depois passa. Só que naquela árvore que você passou se curando você não passa nunca mais, já passa no outro. É um segredo né. Nóis chama ela de Casca-doce né (J. C. PARINTINTIN, 2015).

Atrelada a existência de espécies que curam por meio de gestos simbólicos, rituais de cura e/ou de promoção da vida, vem subjacente uma perspectiva de ligação física e espiritual dos Parintintin com os vegetais, como se estes lhes fornecessem energia para prolongar as suas vidas, visto que se curam com a espécie mencionada (Casca-doce) desde jovens.

Espécies como a citada acabam promovendo uma ação preventiva e profilática, de caráter mágico. Como enfatiza Plotkin (1993, p. 141), “O segredo da cura não reside apenas no armamento bioquímico das próprias plantas. A cura de doenças graves quase sempre envolve o ritual”. Para o tratamento e a cura e mesmo a prevenção, portanto, é essencial dialogar tanto com o material como com o sobrenatural, em que pese à necessidade de mediação entre ambas as dimensões para alcançar a sanidade completa.

Essa diversidade de espécies utilizada na promoção de saúde e longevidade mostra a importância dos povos indígenas como os maiores responsáveis pela biodiversidade dos ecossistemas brasileiros – a partir do emprego de práticas de manejo sustentáveis, com o respeito aos ciclos naturais –, sendo esta o resultado de uma coevolução entre indígenas e natureza.

Na mesma perspectiva, Toledo et al. (2003) inferem que o principal objetivo da estratégia indígena é maximizar a diversidade e o número de opções disponíveis, de forma a garantir a sua subsistência e minimizar os impactos. Isso é alcançado mediante o uso múltiplo do espaço, do tempo e das populações e comunidades de seres vivos, em especial as plantas.

A natureza como um todo não é vista apenas como recurso a ser manejado pelos indígenas. Para entender essa relação de equilíbrio com o meio é preciso levar em conta a sua cosmovisão, que vê a natureza como outra sociedade, em que animais e plantas são animados por forças espirituais (LACAZE, 2010) e dotados de poderes, capazes de compartilhar suas energias com os humanos e promover a restauração do equilíbrio destes com o meio, mediante a cura de suas enfermidades (físicas e espirituais).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudos como esse podem ser entendidos como de grande relevância cultural e também ambiental, pois buscam a valorização e divulgação de conhecimentos tradicionais indígenas. O registro de tal forma de cognição colabora para a sua perpetuação, evitando que se eroda ao longo do tempo. Pois, a utilização de animais e, principalmente, vegetais acompanha os grupos humanos desde tempos imemoriais.

Esse texto buscou averiguar os saberes Parintintin na utilização de elementos da flora e da fauna para o tratamento da saúde e a cura. O itinerário terapêutico mostrou-se diversificado, envolvendo vários métodos de uso, como chás, xaropes, benzimentos, defumações e outros.

Evidenciou-se que é possível haver a combinação entre espécies vegetais e animais, além da associação de plantas da cultua indígena, provindas da floresta, com aquelas da herança cultural da sociedade não indígena, oriundas dos quintais. A influência de outras culturas sobre os conhecimentos tradicionais Parintintin, com o incremente das espécies de quintais, vem permitindo a expansão destes ao invés de sua erosão.

As espécies vegetais e animais demonstraram possuir um valor curativo das moléstias físicas (corpo), como doenças infecciosas, sistema respiratório, sistema digestório, trato genito-urinário, e outros, como também um valor simbólico-mágico, proporcionando a cura espiritual (alma), com proteção e afastamento do infortúnio.

Porém, corpo e alma representam o todo do indivíduo e quando se trata da alma ou do corpo, trata-se dos dois concomitantemente, apesar do tratamento ser específico para cada caso. Destarte, permite-se compreender que há uma conexão entre doenças espirituais e físicas, de modo que quando uma dimensão é afetada a outra também se torna vulnerável ao(s) agente(s) pernicioso(s).

A cura, de modo geral, ocorre quando se restabelece o equilíbrio do ser com ele mesmo (corpo e alma) e dele com o mundo a sua volta (meio social, biofísico e sobrenatural).

Foi possível entender que as espécies vegetais são mais empregadas que as animais para o restabelecimento da saúde. Esse fato fez com que fosse atribuída maior ênfase as primeiras. Dentre essas, as de maior conhecimento e utilização, remontando a uma herança cultural imemorial, são aquelas oriundas da mata (nativas), posto que é com as quais os Parintintin vêm tendo um contato mais antigo e intenso ao longo do tempo. Desse modo, constrói-se um laço profundo que une o povo ao seu território, visto que cotidianamente entra-se na mata para a caça de animais e a coleta de espécies vegetais para o preparo de remédios ou vai-se ao quintal e o terreiro com a mesma finalidade.

No território é que se encontram as espécies vegetais e animais e onde se desenvolvem os conhecimentos tradicionais sobre estas. Ele emana saúde a partir desses elementos. Portanto, ter território e utilizar seus recursos de forma sustentável também é ter saúde, uma vez que a relação dos Parintintin com a natureza visa ao equilíbrio, a integração e a coevolução.

Estudos com povos indígenas, que visem abordar seu vínculo com a natureza e a conservação dos seus saberes tradicionais em relação com o território, devem buscar associar elementos do meio biofísico (animais, vegetais e outros) com aqueles do sociocultural (crenças, práticas, etc.). Dessa forma, torna-se possível mostrar a importância desses povos e de seus saberes para o manejo e a gestão dos elementos naturais numa perspectiva menos exploratória e de superioridade para uma de mais respeito e de convivialidade.

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ENTREVISTAS

PARINTINTIN, J. C. Entrevista na Aldeia Traíra. Humaitá: Terra Indígena Nove de Janeiro, 2015

PARINTININ, M. A. Entrevista na Aldeia Traíra. Humaitá: Terra Indígena Nove de Janeiro, 2015

PARINTINTIN, M. A. Entrevista na Aldeia Traíra. Humaitá: Terra Indígena Nove de Janeiro, 2017.

PARINTINTIN, M. B. F. N. Entrevista na Aldeia Traíra. Humaitá: Terra Indígena Nove de Janeiro, 2015.

PARINTINTIN, M. G. Entrevista na Aldeia Traíra. Humaitá: Terra Indígena Nove de Janeiro, 2015.

PARINTINTIN, N. Entrevista na Aldeia Traíra. Humaitá: Terra Indígena Nove de Janeiro, 2015.

PARINTINTIN, R. Entrevista na Aldeia Traíra. Humaitá: Terra Indígena Nove de Janeiro, 2015.

PARINTINTIN, S. Entrevista na Aldeia Traíra. Humaitá: Terra Indígena Nove de Janeiro, 2015.

Notas

[1] Apesar de se entender que há diferenças entre a sociedade que reside no meio rural, nas proximidades da T.I.N.J, e a sociedade urbana, adotou-se o termo “sociedade envolvente” como referência a sociedade não indígena tanto urbana como rural. Por vezes também se empregou o termo “regionais”, porém, com vistas a se referir especificamente a população rural do entorno da T.I.N.J.
[2] No sentido aqui expresso o termo “erosão” se refere ao esquecimento, perda e abandono gradual dos saberes tradicionais, acarretando em seu desuso.
[3] Exemplo: o diálogo com uma criança acerca da ingestão de cérebro de pássaro.
[4] Para os Parintintin a floresta, além de fonte de animais e vegetais medicinais, é considerada sagrada, lar de seres sobrenaturais e espíritos de seus antepassados. Porém, locais como cemitérios e aqueles atrelados a lendas e mitos, como igarapés, possuem uma sacralidade mais explícita, pois alguns não podem comportar nenhuma atividade produtiva e outros nem mesmo serem visitados. Já a roça, por estar dentro da floresta, também é vista como possuidora de misticidade, sendo palco de mitos e lendas, além de estar atrelada a rituais agrícolas e a transmissão de saberes, devido à prática da agricultura de subsistência.
[5] O quintal e o terreiro não são considerados espaços sagrados, mas também de grande importância, em especial para a convivialidade. São locais onde as pessoas estabelecem relações sociais, realizam a partilha de remédios e alimentos e a troca de conhecimentos.


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