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Alfabetização intercultural e cadernos escolares: qual é o percurso da aprendizagem da iniciação à cultura escrita na escola indígena Zoró?
Intercultural literacy and school notebooks: what is the path of learning from initiation to written culture at the indigenous Zoró School?
Alfabetización intercultural y cuadernos escolares: ¿cuál es el camino del aprendizaje desde la iniciación a la cultura escrita en la Escuela indígena Zoró?
Revista Presença Geográfica, vol. 08, núm. 02, Esp., 2021
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 08, núm. 02, Esp., 2021

Recepção: 28 Fevereiro 2021

Aprovação: 16 Setembro 2021

Resumo: Este artigo tem o objetivo de apresentar os resultados parciais do Projeto de Pesquisa PIBIC Af Alfabetização intercultural: O que evidenciam os cadernos das crianças indígenas Zoró-Pangỹjej e Gavião-Ikolen? Uma investigação realizada na UNIR, Campus Urupá de Ji-Paraná no Curso Licenciatura em Educação Básica Intercultural. A finalidade principal foi analisar como ocorre os processos de aquisição da língua escrita no contexto Zoró, por meio dos procedimentos metodológicos possibilitados pela pesquisa documental e narrativa. A fonte dos dados foram dez (10) cadernos escolares de crianças indígenas matriculadas em duas escolas públicas municipais das aldeias Anguj Tapua e Zawã Karej na Terra Indígena Zoró, localizada no município de Rondolândia, estado do Mato Grosso de 2018 a 2019. Os resultados informam que o processo de alfabetização ocorre priorizando a língua indígena Pangỹjej, iniciando com a apresentação das 20 letras do alfabeto Pangỹjej, com exercícios de decifração e memorização evidenciando ancoragem nas concepções empiristas com atividades baseadas nos modelos das cartilhas, como: cobrir pontilhados, cópias excessivas e frases. Por outro lado, as atividades dos cadernos escolares evidenciam concepções construtivistas, por meio de produção de textos espontâneos, acompanhados de desenhos/ilustrações vinculados ao cotidiano da aldeia, bem como a valorização de grafias em língua indígena no decorrer do processo. Concluímos que é importante que a alfabetização esteja presente nas pautas de discussões da comunidade, da escola e das agências formadoras considerando o atual contexto da cultura escrita.

Palavras-chave: Alfabetização, Cultura Escrita, Cadernos escolares. Zoró Pangỹjej.

Abstract: This article aims to present the partial results of the Research Project PIBIC Af Intercultural literacy: What evidences the notebooks of the indigenous children Zoró-Pangyjej and Gavião-Ikolen? An investigation carried out at UNE, Campus Urupá of Ji-Paraná in the Undergraduate Course in Intercultural Basic Education. The main purpose was to analyze how the process of acquiring written language occurs in the Zoró context, through the methodological procedures made possible by documentary and narrative research. The source of the data was ten (10) school books of indigenous children enrolled in two municipal public schools of the villages Anguj Tapua and Zawã Karej in the Zoró Indigenous Land, located in the municipality of Rondolândia, state of Mato Grosso, from 2018 to 2019. The results indicate that the literacy process takes place by prioritizing the Pangyjej indigenous language, starting with the presentation of the 20 letters of the Pangyjej alphabet, with decipherment and memorization exercises evidencing anchoring in empirical conceptions with activities based on the models of the booklets, as: dotted cover, excessive copies and phrases. On the other hand, the activities of the schoolbooks show constructivist conceptions, through the production of spontaneous texts, accompanied by drawings/illustrations related to the daily life of the village, as well as the valorization of spellings in indigenous language during the process. We conclude that it is important that literacy be present in the discussions of the community, the school and the training agencies considering the current context of written culture.

Keywords: Literacy, Written Culture, School notebooks. Zoró Pangỹjej..

Resumen: : Este artículo tiene el objetivo de presentar los resultados parciales del Proyecto de Investigación PIBIC Af Alfabetización intercultural: ¿Qué evidencian los cuadernos de los niños indígenas Zoró-Pangễjej y Gavião-Ikolen? Una investigación realizada en UNIR, Campus Urupá de Ji-Paraná en el Curso Licenciatura en Educación Básica Intercultural. La finalidad principal fue analizar cómo ocurren los procesos de adquisición de la lengua escrita en el contexto Zoró, por medio de los procedimientos metodológicos posibilitados por la investigación documental y narrativa. La fuente de los datos fueron diez (10) cuadernos escolares de niños indígenas matriculados en dos escuelas públicas municipales de las aldeas Anguj Tapua y Zawã Karej en la Tierra Indígena Zoró, ubicada en el municipio de Rondolândia, estado de Mato Grosso de 2018 a 2019. Los resultados informan que el proceso de alfabetización ocurre priorizando la lengua indígena Pangễjej, iniciando con la presentación de las 20 letras del alfabeto Pangễjej, con ejercicios de descifrado y memorización evidenciando anclaje en las concepciones empiristas con actividades basadas en los modelos de las cartillas, como: cubrir punteados, copias excesivas y frases. Por otro lado, las actividades de los cuadernos escolares evidencian concepciones constructivistas, por medio de producción de textos espontáneos, acompañados de dibujos/ilustraciones vinculados al cotidiano de la aldea, así como la valorización de grafías en lengua indígena en el curso del proceso. Concluimos que es importante que la alfabetización esté presente en las pautas de discusiones de la comunidad, de la escuela y de las agencias formadoras considerando el actual contexto de la cultura escrita.

Palabras-llave: Alfabetización; Cultura Escrita; Cuadernos escolares. Zoró Pangễjej.

INTRODUÇÃO

Os estudos sobre a alfabetização em territórios indígenas têm se constituído em objeto de reflexão acadêmica desde a inserção do saber formal através da implantação das escolas nas aldeias brasileiras. Muitos são os interesses que mobilizam tais estudos: compreender como culturas de tradição oral aprendem a ler e escrever, de que modo se apropriam desta forma de conhecimento e como utilizam a favor de seus interesses e ainda, como produzem modelos comunicativos nos suportes eletrônicos e de papel, sobretudo em suas línguas maternas. (NEVES, 2009; NARAYKOPEGA, 2015; SANTOS, 2020).

Inferimos que a relevância da cultura escrita na atualidade em um mundo globalizado provoca cada vez mais a necessidade da produção de investigações sobre os processos de aquisição da leitura e da escrita em contextos indígenas tendo em vista as dinâmicas da linguagem. Nesta direção, é que foi proposto o estudo no âmbito do Projeto de Pesquisa PIBIC-Af/UNIR/CNPq desenvolvido no ciclo 2018-2019 intitulado: “Alfabetização intercultural: O que evidenciam os cadernos das crianças indígenas Zoró-Pangỹjej e Gavião-Ikolen” vinculado ao Grupo de Pesquisa Educação na Amazônia (GPEA) e à Linha de Pesquisa, Alfabetização & Cultura escrita.

Neste trabalho apresentaremos os resultados parciais obtidos através de recorte no Relatório de pesquisa do Plano de Trabalho: Alfabetização Intercultural a partir dos cadernos escolares: qual é o percurso da aprendizagem da cultura escrita na aldeia? O objetivo da proposta foi investigar como ocorre a alfabetização intercultural na perspectiva da apropriação da cultura escrita em dialogia com a oralidade. O trabalho envolveu a análise dos cadernos escolares das crianças indígenas Zoró matriculadas em duas escolas públicas municipais indígenas nas aldeias Anguj Tapua e Zawã Karej na TI Zoró.

O texto está organizado em 5 (cinco) tópicos: inicialmente apresentamos um relato memorial do primeiro autor, um recurso que tem sido adotado nas reflexões da Alfabetização Intercultural como estratégia metodológica de formação docente indígena: discutir o tema a partir das experiências trajetórias dos sujeitos tendo como ancoragem metodológica a pesquisa narrativa. Em seguida elaboramos uma breve contextualização do Povo Indígena Zoró Pangỹjej, etnia que contribuiu para a realização do presente estudo. As discussões seguintes referem-se aos procedimentos metodológicos adotados que permitiram a elaboração do trabalho, a fundamentação teórica da Alfabetização Intercultural – um campo de conhecimento que se dispõe a compreender a inserção dos povos indígenas na linguagem da cultura escrita, a análise de 5 (cinco) atividades extraídas de cadernos escolares e por último, as Considerações finais.

MEMORIAL AUTOBIOGRÁFICO, REENCONTRANDO APRENDIZAGENS DE INGRESSO À CULTURA ESCRITA

[...] não se trata de encontrar nas escritas de si uma “verdade” preexistente ao ato de biografar, mas de estudar como os indivíduos dão forma às suas experiências e sentido ao que antes não tinham, como constroem a consciência histórica de si e de suas aprendizagens nos territórios que habitam e são por eles habitados […]. (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p. 371).

Meu nome é Sandro I’ Ap Zoró, nasci no dia 9 de junho de 1995, moro na Terra Indígena Zoró localizada no município de Rondolândia/MT. Sou falante das línguas Pangễjej e portugués. Sou filho do professor Francisco Embusã Zoró e Regina Sambiar Gavião. Fui alfabetizado na Escola Municipal Zawyt Wawã, na aldeia Bubyrej (central) com vários professores, comecei a frequentar a escola com seis (6) anos de idade. A Escola Municipal Zawyt Wawã leva o nome do meu bisavô que foi uma liderança muito respeitada pelo povo Zoró.

Foi nessa escola que fui alfabetizado por uma guerreira professora indígena chamada Milene Tawulup Zoró, foi minha primeira professora. Eu lembro que ela pegava na minha mão para ajudar na produção de grafias. Na segunda (2ª) série continuei meu processo de alfabetização com o professor Agnaldo Zawandu Zoró que é meu tio. Os materiais usados eram basicamente o quadro, giz, livros didáticos não indígenas e as cartilhas elaboradas pelos professores indígenas Zoró do Projeto Açaí. No início da minha alfabetização estudava o alfabeto - as vogais e depois as consoantes.

A partir disso fui aprendendo os nomes das letras e a produzir pequenas escritas em língua materna, depois em língua portuguesa. Vale ressaltar que o Projeto Político Pedagógico (PPP) de nossas escolas municipais orienta que a alfabetização deve ocorrer na língua materna como recurso de valorização da língua Zoró. A segunda língua na alfabetização é a língua portuguesa, importante para as relações na atualidade para defender e buscar nossos direitos.

Participei no projeto “Alfabetização intercultural: O que evidenciam os cadernos das crianças indígenas Zoró - Pangỹjej e Gavião-Ikolen? Foi uma experiência importante para a ampliação de meus conhecimentos sobre as aprendizagens da leitura e da escrita e para compreender a iniciação científica. Este trabalho contribuiu para a minha formação pois, além de ser estudante indígena do curso de Licenciatura intercultural e bolsista voluntário do PIBIC Af (2018-2019), atuo na docência indígena em minha comunidade há mais de três anos na Escola Estadual Indígena Zawã Karej Pangỹjej e atualmente moro na aldeia Galandjurej.

OS ZORÓ PANGYJEJ

Os Zoró vivem na Terra Indígena Zoró (TIZ), localizada no noroeste do estado do Mato Grosso, na região de fronteira com o estado de Rondônia, entre os rios Roosevelt (leste) e o rio Branco (oeste). (APIZ, 2015). Os registros e narrativas Pangỹjej sobre os primeiros encontros com os não índios dão conta que esse contato ocorreu às margens do rio Branco, os grupos ficavam em lados opostos (LISBOA, 2008). Sobre a autodenominação, informam que os não índios perguntavam: quem são vocês? Aquele Zoró que entendia um pouco da linga portuguesa respondia: “[...] zarej – que se origina de zat=gente mais o wej=plural de alguns adjetivos, formando zarej=gente, pessoa – e que os interlocutores entendiam como Zoró”. (LISBOA, 2008, p. 19). A área territorial corresponde a 355.789,5492 hectares, foi regularizado pelo Decreto nº 265 de 29.10.1991; CRI 31352 em 05.11.87; SPU em 06.11.87. (APIZ, 2015. p. 14). De acordo com os dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) esta etnia é composta por 677 indivíduos (IBGE, 2010).


Figura 1
Terra Indígena Zoró
Fonte: Google Maps. 2019

Esse último censo populacional evidenciou o nascimento de muitas crianças o que sugere que o número de indígenas Pangỹjej tenha aumentado na TIZ. Os Zoró Pangỹjej são falantes da língua Pangỹjej, que pertence à família linguística Tupi-Mondé, e a segunda língua falada pelos adultos é o português língua incorporada em função do contato com os grupos não indígenas. Parte do território tradicional do Zoró ficou de fora da demarcação e da homologação que aconteceu em 1991. A TIZ faz limites com as Terras Indígenas Sete de Setembro (do povo Paiter Suruí de Rondônia), a Terra Indígena Roosevelt e Parque Indígena do Aripuanã (ambas do povo Cinta Larga), que compõe o Corredor Etnoambiental Tupi Mondé. Embora a TIZ se localize quase totalmente no Estado do Mato Grosso, a mesma está jurisdicionada a Coordenação Regional de Ji-Paraná (CRJP) no Estado de Rondônia, segundo informações da CRJP, o motivo é a proximidade com Rondônia para o atendimento aos indígenas, inclusive a Associação do Povo Zoró (APIZ) fica na cidade de Ji-Paraná-RO. (APIZ, 2015). Os registros (PRAXEDES, 1977), apontam que foram um dos últimos grupos indígenas a serem contatados pela equipe da Fundação Nacional do Indio (FUNAI), chefiada na época pelo então sertanista Apoena Meirelles, oficialmente contatados em 1977, os Pangỹjej foram os últimos dos Tupi-Mondé a se aproximar das frentes de expansão regional, que compreendia a Noroeste de Mato Grosso e Sul de Rondônia. (DAL POZ, 2006).

Dentre as muitas comunidades indígenas que perderam seu território devido ao intenso processo de ocupação e colonização da Amazônia Legal, especificamente os estados de Mato Grosso e Rondônia nas décadas de 60, 70 e 80, destaca-se o Povo Zoró, que tiveram sua terra invadida e loteada para centenas de colonos, fazendeiros, madeireiros o que ocasionou sérios e graves conflitos, desrespeito e mortes de muitos índios. Além do enfrentamento de um longo processo judicial para retornar ao território, no final da década de 1980. Os relatos dos mais velhos Pangỹjej narram que há muito tempo o povo começou a sofrer com a chegada de pessoas desconhecidas ao território tradicional Zoró, antes mesmo de 1977 ocasião do contato oficial. Em 1968 os sertanistas Francisco Meirelles e seu filho Apoena Meirelles identificaram as primeiras moradias e o território de ocupação dos Zoró. Durante os nove anos seguintes os Zoró tiveram contatos esporádicos e violentos com trabalhadores da Fazenda Castanhal, situada à margem esquerda do Rio Branco e com muitos seringueiros e fazendeiros. Houve perda de território indígena e mortalidades (não existem registros oficiais de quantos morreram) e finalmente em 1977 a FUNAI realizou o contato[1]. (DAL POZ, 2006).

Além das fazendas, no entorno da TI Zoró, no Noroeste de Mato Grosso, surgiram os garimpos de ouro, diamante e madeiras/madeireiras que ganharam força após abertura de estradas interligando a região a cidades próximas à BR-364 (SANTOS, 2020). Um importante conjunto de relatórios (MINDLIN, 1986; 1996; GAMBINI, 1984; BRUNELLI, 1985; OPAN/CIMI, 1987) apontaram inúmeros problemas entre eles as invasões de posseiros, além da pressão sob o território dos Zoró por parte de fazendeiros e dos conflitos violentos vivenciados pelo grupo. Esses registros trazem informações sobre invasões por parte também da empresa CANOPRA de iniciativa privada ao território Zoró, além da abertura de estradas dentro da área indígena feitas pelas Fazendas e Condomínio Lunardelli com autorização expressa da própria FUNAI. Mindlin (1986), registra de forma reiterada no relatório de novembro/1986, uma série de situações de invasões, conflitos, mortes e consequências da não demarcação dos territórios dos diferentes grupos indígenas da região. Até 1986, Mindlin registra em seu relatório denunciando que nenhuma área foi demarcada desse mesmo ano no território tradicional Zoró. Esses registros evidenciaram que o quadro de tensão e conflitos se agravavam na TIZ, sobretudo de 1977 a 1992, época em que os Zoró sofreram vários golpes advindos das frentes capitalistas/colonizatórias que se instalaram no entorno regional. Eram numerosos e sucessivos conflitos de terra com violência física e mortes de indígenas e não indígenas na região de Rondônia e Noroeste de Mato Grosso registrados no período. Mindlin (1986) e Gambini (1984) denunciaram que a FUNAI poderia reunir todas as condições para executar uma política indigenista exemplar na região e que isto não estava ocorrendo.

Já no início da década de 1980, quando os Zoró retornaram da TI Igarapé Lourdes-RO para reocupar o seu território tradicional foram sedentarizados pela FUNAI em aldeias nos limites de sua área, na Aldeia Bubyrej, ocasião que implantou o sistema de colônia agrícola, construindo casas, campo de pouso, farmácias e instalações na sede. (TRESMANN, 1994). Mas muitos velhos Zoró não gostaram desse tipo de agrupamento e então resolveram continuar em sua moradia tradicional, bem como da alimentação à base de carne de caça e outras comidas.

Na atualidade, existem em seus aldeamentos um conjunto de escolas de educação básica, mantidas pelas redes municipal e estadual conforme a esfera de competências definidas pela Constituição Federal de 1988 sob a responsabilidade de docentes indígenas e não indígenas. E foi nas escolas públicas municipais das aldeias Anguj Tapua e Zawã Karej que desenvolvemos o estuo em tela.

METODOLOGIA - CONTRIBUIÇÕES DA PESQUISA DOCUMENTAL E PESQUISA NARRATIVA

A metodologia necessária a elaboração deste estudo foi a pesquisa qualitativa, bibliográfica, documental e narrativa. As pesquisas qualitativas consideram que, “As experiências educacionais [...], tanto em contexto escolar como exteriores à escola, podem constituir objeto de estudo” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 16). Nesta direção, como aspecto obrigatório de uma investigação consideramos a pesquisa bibliográfica que leva em conta os saberes relevantes existentes sobre o tema em discussão, é “[...] desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos”. (GIL, 2002, p. 44) como a leitura de produções importantes referentes ao ato de ler e escrever (FERREIRO; TEBEROSKY, 1991; NEVES, 2009), além de normativas e orientações oficiais (BRASIL, 1996; 1998; 2015).

Foi necessário recorrer à pesquisa documental, uma “[...] fonte de coleta de dados [que] está restrita a documentos, [...] o que se denomina de fontes primárias.” (LAKATOS; MARCONI, 2011, p. 174). Em nosso trabalho foram expressas por um conjunto de atividades referentes ao caderno escolar um “[...] objeto quase invisível que guarda a memória da educação” (MIGNOT, 2008, p. 13), considerado na atualidade um importante material informativo sobre a alfabetização. Já a pesquisa narrativa de caráter autobiográfico constitui a “[...] a escrita de si é considerada como um dispositivo mediante o qual a pessoa que escreve é levada a refletir sobre seu percurso de formação [...]”. (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p. 373). Este recurso tem sido adotado nas discussões propostas pela Alfabetização Intercultural como um mecanismo de valorização das experiências indígenas e como forma de conhecer os processos de aquisição da leitura e da escrita em outras temporalidades, subsídios importantes para a história da Educação Escolar indígena.

As atividades iniciais envolveram a produção e análise de memoriais da alfabetização com a realização de leituras individuais e em grupos e posterior sistematização através de fichamentos com destaque aos elementos que mais contribuíram para o entendimento da alfabetização no contextos indígenas nos encontros do Projeto de Pesquisa financiado pelo Programa Institucional de Bolsas em Iniciação Científica (PIBIC) nas Ações Afirmativas (Af) na UNIR.

Após a fase de leituras e debates procedemos o trabalho de campo, momento em que coletamos os dados. Neste sentido, foram fotografados atividades de 10 (dez) cadernos escolares de 2018 e 2019 para a efetivação da análise documental. Mediante autorização dos responsáveis – mães, pais de crianças matriculadas em turmas de 1º ao 4º ano do ensino fundamental desenvolvemos o referido trabalho e, em seguida, selecionamos as atividades e realizamos a análise, que será descrita e discutida no tópico que segue.

A ALFABETIZAÇÃO INTERCULTURAL EM QUESTÃO E AS EXPERIÊNCIAS DA CULTURA ESCRITA NO CONTEXTO INDÍGENA

As discussões teóricas evidenciadas nas pesquisas sobre o processo de aquisição da língua escrita em contextos no âmbito da Alfabetização Intercultural foram iniciadas há mais de uma década com a primeira publicação A Psicogênese na aldeia: refletindo o processo de alfabetização com professores e professoras indígenas (NEVES, 2005). Posteriormente esta temática foi aprofundada na investigação que resultou na tese de doutoramento Cultura escrita em contextos indígenas (NEVES, 2009). Trata de uma documentação acadêmica sobre o ingresso dos povos indígenas Arara-Karo e Gavião-Ikolen de Rondônia no mundo da escrita – como aprenderam a ler e escrever na língua indígena e na língua portuguesa e de que forma este saber tem sido utilizado pelos indígenas nas práticas sociais. Em relação aos aspectos conceituais, o termo Alfabetização Intercultural é compreendido como um desdobramento ou recorte da Educação Intercultural estabelecida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9.394/1996:

[...] um processo formativo decorrente das relações biculturais ou multiculturais, envolvendo o estudo de duas ou mais línguas e as aprendizagens no campo da leitura e da escrita em uma perspectiva dialógica, onde os elementos culturais de ambas precisam estar em um processo de permanente negociação com vistas a um possível equilíbrio e superação de assimetrias (NEVES, 2009, p. 183).

A Alfabetização Intercultural de que Neves (2009) está se referindo neste contexto é referente à leitura e escrita entre indígenas, onde os saberes compartilhados em sala de aula nos remete às aprendizagens iniciais da cultura escrita, onde podemos observar e compreender a importância dos diferentes saberes referentes às formas de aprender a ler e escrever: “É nosso intuito aprofundar cada vez mais, os conhecimentos sobre essa alfabetização, no sentido de compreender as possíveis implicações da cultura escrita em sociedades de tradição oral e, sobretudo, entender o papel dos sujeitos e suas interações com este objeto (NEVES, 2009, p. 183).

É importante ressaltar que dependendo do contexto é necessário que a alfabetização seja desenvolvida no uso de ambas as línguas, a materna e a portuguesa, levando em conta seus conhecimentos fundamentados nas práticas cotidianas adquiridas através de seus ancestrais e que esse processo educativo de aprendizagem contribua para a aproximação entre os saberes étnicos e os saberes escolares: “Ler e escrever não faz parte do dia-a-dia da aldeia, e nem figura no contexto das suas relações sociais. O que se pretende com a alfabetização é que os índios possam captar a linguagem verbal em português para melhor articulação no seu relacionamento e nas negociações com a sociedade do branco, da qual dependem e são solicitados (LADEIRA, 1981, Apud NEVES, 2009, p. 185). Este processo deve acontecer com o foco principal na língua materna oral, ou seja, no ponto de partida da comunicação dos povos indígenas e as atividades elaboradas devem enfatizar os conhecimentos existentes neste modelo comunicativo, além dos diferentes modos culturais e sociais existentes de forma com que o educando perceba as relações entre o oral e a escrita no âmbito da interculturalidade.

As orientações oficiais sobre a alfabetização nas aldeias indígenas estão presentes em vários documentos. Destacamos as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar, elaborado pelo comitê de Educação Escolar Indígena ainda em 1994, que nesta época já reconhecia a importância das finalidades sociais e culturais da linguagem escrita e oral na escola indígena. Este documento enfatiza que as atividades propostas na alfabetização intercultural em contextos indígenas, devem levar em conta as diferentes finalidades: [...] O aluno deve perceber o que é ler e escrever e quais são as funções sociais da escrita, estabelecendo uma relação efetiva com a mesma, tornando-a uma atividade significativa” (BRASIL, MEC, 1994, p. 34).

Citamos também, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (BRASIL, MEC, 1998) que orienta sobre o direito à escrita em língua indígena na escola “[...] O aluno deve perceber o que é ler e escrever e quais são as funções sociais da escrita estabelecendo uma relação efetiva com a mesma, tornando-a uma atividade significativa”. (BRASIL, MEC, 1998, p. 180).

Este documento como as próprias Diretrizes Curriculares para a Educação Escolar Indígena, enfatizam que qualquer que seja a situação envolvendo a ortografia da língua indígena e a alfabetização com propostas e alternativas pedagógicas não devem ser impostas de fora para dentro, mas, ao contrário, devem ser discutidas com os professores indígenas. Deste modo, a Alfabetização no contexto em que estamos falando deve acontecer em língua materna como uma forma de valorização, sentido e preservação da cultura oral do povo, para isso é importante ressaltar que deve haver textos na língua indígena com significados para quem está lendo, nesse sentido:

É importante lembrar ainda que alfabetizar em língua indígena em nada resulta quando não há textos significativos para serem lidos. Quando não há modelos para serem seguidos ou aperfeiçoados, é um esforço vão. É preciso que existam muitos textos, diversos, variados, circulando em língua indígena. Não podem ser só textos escolares. É indispensável estabelecer funcionalidades para a língua escrita. É preciso que existam muitos textos para a comunidade - científicos, literários, informativos - que sirvam para alguma coisa. Que sirvam para veicular idéias as mais diferentes, idéias de renovação e de tradição. E, naturalmente, é necessário que existam escritores de textos e estes escritores só poderão ser os próprios índios (OLIVEIRA, 1999, Apud NEVES, 2009, p. 204).

Assim, o processo de Alfabetização Intercultural na perspectiva de Neves (2009) ao documentar a experiência de cultura escrita junto ao Povo Arara e Gavião evidenciou que esta iniciativa foi impulsionada pela Constituição de 1988. Inicialmente a escolarização de indígenas começava com os missionários que, sabiam falar a língua indígena, alfabetizavam a partir dela. Depois pesquisadores e até funcionários da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) assumiram esta tarefa. Verificou a adoção de materiais didáticos não indígenas utilizados nas aldeias como os livros do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) e a simultaneidade das aprendizagens das línguas tanto na oralidade como na escrita: “[...] Ao que tudo indica o processo de aprendizagem da leitura e da escrita dos Gavião, foi simultâneo, aprender a ler e escrever em português e a falar o português”. (NEVES, 2009. p. 255). Posteriormente, quem aprendeu ensinou os demais que com os cursos de formação, e aos poucos foi se delineando os primeiros professores indígenas.

Para Monte apud Neves (2008, p. 3) a escrita era originalmente fruto do mundo não indígena, do outro, do desconhecido, já o oral complementar da sua linguagem própria, pessoal, mas por sua vez distanciada do contexto escolar. A carência do português oral no espaço escolar significa o silêncio e a ausência da escrita nas práticas sociais da língua indígena a folha branca algo que ainda está em construção.

Os estudos apontam que a educação indígena destas etnias também acontece dentro da família, é ela que educa uma criança conforme a sua cultura. Isso pode ser observado nas falas dos professores e lideranças do Povo Gavião e Arara que enfatizam muito esse tipo de educação tradicional, como afirma o texto: “Tem a ver com as responsabilidades familiares e sociais no âmbito da cultura” (NEVES, 2009, p. 251). No processo de alfabetização dos indígenas, houve vários desencontros - os não índios tiveram dificuldades, porque os alunos indígenas não falavam português, alguns aprenderam com os seringueiros que tinham contatos com os povos. Só que a intenção dos missionários era ensinar os índios a falar português e aprender a ler e escrever um pouco para facilitar a evangelização dos povos. Foi dessa forma que começou a alfabetização do Povo Gavião, com os jovens e adultos daquela época com objetivo de facilitar a evangelização deles, como a autora afirma no seu texto:

Inicialmente a alfabetização dos Gavião-Ikolen, começa na modalidade da educação de jovens e adultos, completando um pequeno grupo de estudantes exclusivamente do sexo masculino e em língua indígena, não por uma questão de respeito à cultura dos índios, mas com intuito de alcançar o objetivo central da MNTB: a evangelização desta etnia (NEVES, 2009, p. 253).

É notável que isso não é uma situação vivenciada por apenas uma ou duas etnias, aconteceu com o povo Zoró. No texto a autora retrata que os indígenas relataram que vieram outros professores para a área Gavião contratados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), então já começa outro processo de alfabetização, um desafio para os estudantes do povo Gavião, eles não entendiam o que os professores falavam, só ensinavam na língua portuguesa, os indígenas sentiam muitas dificuldades por não falar essa língua: “Avaliamos que as maiores dificuldades para aprender a ler e escrever consistia no desconhecimento da língua portuguesa e no quase inexistente sentido da escrita para os estudantes indígenas. [...]”. (NEVES, 2009, p. 257).

É muito interessante observar que ao aprender um pouco a ler e escrever os indígenas Gavião assim como os Zoró começaram assumir a sala de aula, na época iniciava também a primeira formação dos professores indígenas através do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMA) onde participaram os professores Gavião: “O primeiro projeto de formação docente em âmbito continuado que contribuiu para o aperfeiçoamento do fazer pedagógico dos professores Gavião-Ikolen e Arara-Karo foi a proposta desenvolvida pelo IAMÀ-Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (NEVES, 2009, p. 267).

O espaço em que discute o ensino de duas culturas é a escola, assim deve-se pensar de que forma devemos trabalhar as duas culturas ou seja ensino intercultural, pois: “A análise é que os usos da escrita na prática social, em língua indígena e língua portuguesa, por parte das comunidades indígenas, contribui para a própria ressignificação da escola” (NEVES, 2009, p. 331). Concepções que se aproximam dos estudos da Psicogênese da Língua Escrita. De acordo com Emília Ferreiro, as elaborações das crianças que estão em processo de aprendizagem a respeito do funcionamento da língua escrita passam por três períodos estáveis de avanço de compreensão deste objeto: “Distinção entre o modo de representação icônico e o não-icônico; a construção de formas de diferenciação (controle progressivo das variações sobre os eixos qualitativos e quantitativos) e a fonetização da escrita (que se inicia com um período silábico e culmina no período alfabético)”. (FERREIRO, 2001, p. 19).

As contribuições desse referencial teórico (FERREIRO; TEBEROSKY, 1991) permite compreender como as crianças pensam e expressam seu entendimento em relação a esse objeto de conhecimento que é a escrita. As hipóteses de escrita são construídas e transformadas a partir do universo de informação disponível para as crianças e das situações didáticas de que participa. Portanto, as respostas provisórias das crianças indígenas revelam seu conhecimento em um determinado momento, ou seja, considerada como hipóteses provisórias. As crianças não entram vazias na escola sem saberem de nada sobre a língua e a linguagem, pelo contrário, constroem sentidos para o objeto escrito por meio de conceituações, já afirmavam Emília Ferreiro e Ana Teberosky, assim, ambas pesquisadoras conceituaram este processo e o percurso construído pela criança sobre o objeto de conhecimento (escrita) como a Psicogênese da Língua Escrita. Este material teórico tem contribuído para os estudos da Alfabetização Intercultural – uma perspectiva pedagógica que busca compreender os processos de aquisição da língua escrita em contextos indígenas da Amazônia.

RESULTADOS E DISCUSSÕES: O QUE REVELARAM OS CADERNOS ESCOLARES ANALISADOS NO CONTEXTO ZORÓ?

O trabalho de alfabetização nas escolas Zoró tem previsão de ocorrer em quatro anos, neste sentido analisamos os cadernos das crianças indígenas Zoró com idades entre 6 (seis) a 12 (doze) anos, das Aldeias Zawã Karej e Anguj Tapua, matriculadas na Escola Zawyt Wawã. Observamos que a alfabetização inicial na escola acontece priorizando a língua Pangỹjej e vai até o final do primeiro ciclo do ensino fundamental. Os Zoró definiram a política linguística da escola considerando a realidade do seu povo, as crianças e os adultos se comunicam entre si em língua Pangỹjej, deste modo, compreendem que a alfabetização das crianças do 1º ao 4ª ano do ensino fundamental (anos iniciais) deve ocorrer priorizando a língua em que são falantes. Consideram ser importante porque a comunidade se comunica exclusivamente em Pangỹjej, no dia a dia da aldeia. Segundo o professor Francisco Embusã Zoró[2] e atual coordenador da Escola Municipal Indígena Zawyt Wawã, na educação infantil indígena e nos primeiros anos do Ensino Fundamental, os professores trabalham somente a língua materna. “[...] é na língua Pangỹjej que nós conhecemos os nomes das coisas, dos animais, das aves, dos peixes [...] é melhor para explicar o mundo para os alunos, para escrever livros e registrar os conhecimentos indígenas, por isso que nossas crianças aprendem primeiro a escrita da nossa língua”. (RONDOLÂNDIA, 2010, p. 4 - 5).

Na TI Zoró existem quatro escolas municipais de ensino fundamental (anos iniciais), com 17 salas anexas distribuídas no interior das aldeias. A criação dos anexos das escolas é justificada pelas grandes distâncias geográficas entre as aldeias dentro da TI. As Escolas Municipais de Educação Indígena Zoró apresentam uma estrutura baseada em escola-sede e anexos. A primeira centraliza e expede as informações relativas à documentação escolar dos alunos e orientações pedagógicas. A população Zoró está organizada em 24 aldeias. Muitas aldeias antigas voltaram a ser habitadas após o processo de desintrusão de invasores na TI Zoró. Hoje, em função da quantidade de moradores a maioria das aldeias possuem salas anexas das escolas de ensino fundamental (1º ao 4º ano).

Apresentaremos abaixo o resultado dos trabalhos analisados que evidenciam os processos pedagógicos na alfabetização através dos cadernos escolares, considerada como “[...] pesquisa documental [...]”. (GIL, 2002, p. 44). Os registros analisados neste trabalho correspondem às atividades de alfabetização que ocorreram em 2018. O processo de aquisição do conhecimento escrito na escola indígena Zoró inicia com a apresentação do alfabeto na língua materna por meio de exercícios de memorização, conforme evidenciam as imagens abaixo:


Figura 2
Alfabeto e Vogais Pangỹjej
Fonte: Sandro I’ Ap Zoró


Figura 3
Alfabeto e Vogais Pangỹjej
Fonte: Sandro I’ Ap Zoró

É possível observar que algumas atividades no caderno seguem um modelo da estrutura de cartilhas, com muita ênfase no ato de reproduzir traços gráficos a partir de uma concepção estabelecida, tais como: copiar as letras, cobrir letras e pontilhados. Essa forma de trabalho partiu de concepção empirista, através do método sintético – que segue da parte para o todo, isto é, da letra até as frases, recurso presente nas abordagens instituídas pelos missionários da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB). Organizações como está de caráter religioso por um tempo significativo atuaram nas escolas indígenas (NEVES, 2009).


Figura 4
Atividades da cartilha Pangỹjej de autoria de Alfredo Zoró
Fonte: Agnaldo Zawandu Zoró, maio de 2016


Figura 5
Atividades da cartilha Pangỹjej de autoria de Alfredo Zoró
Fonte: Agnaldo Zawandu Zoró, maio de 2016

A imagem acima apresenta atividades referentes as famílias silábicas B e D acompanhadas de ilustração de animais cujos nomes iniciam com estas letras em Pangỹjej. Esta forma de trabalhar corresponde ao modelo ocidental que identificamos como concepção de alfabetização empirista: “[...] A hipótese subjacente a essa concepção é a de que o aluno precisa memorizar e fixar informações — as mais simples e parciais possíveis e que devem ir se acumulando com o tempo. O modelo típico de cartilha está baseado nisso [...]”. (WEISZ, 2000, p. 21).


Figura 6
Atividades da cartilha Pangỹjej de autoria do Prof. indígena Alfredo Zoró
Fonte: Vanúbia Sampaio. Março de 2019.

Nesta figura 6, há a apresentação de uma atividade bilíngue envolvendo leituras de frases em Pangỹjej, acompanhada de solicitação para identificar e ligar o nome dos animais em Pangỹjej para as palavras em língua portuguesa, evidenciando uma atividade de alfabetização intercultural. Ainda na atividade ilustrada (figura 6), observa que há uma outra em que solicita que a criança crie e escreva espontaneamente uma lista de palavras com nomes de objetos que iniciam ou que tenha a letra K na sua formação. Esta atividade revela a importância de considerar o conhecimento da própria criança. Esse tipo de atividade é relevante no processo de alfabetização, visto que a criança explora a escrita espontânea tanto em língua indígena quanto em língua portuguesa utilizando os seus conhecimentos prévios sobre esse sistema, articulando o desenho junto ao significado da escrita, evidenciando uma característica da Alfabetização Intercultural (NEVES, 2009).

Uma outra observação do ponto de vista da aprendizagem significativa com base na Psicogênese da língua escrita diz respeito ao trabalho com listas de nomes que pertencem ao mesmo campo semântico (Ex: lista dos nomes de animais, lista de alimentos, etc.), na atividade da figura 6, observamos que há um lista de palavras cujo nomes iniciam com a letra W.


Figura 7
Ditado de palavras em Pangỹjej
Fonte: Vanúbia Sampaio

No que diz respeito a utilização do ditado como mostra a imagem acima, há diferentes modos de utilizar esta estratégia didática em sala de aula. Uma proposta que permite descobrir o que o aluno já sabe sobre a escrita. Inferimos que na imagem acima o professor pode ter usado este instrumento para o aluno reproduzir cópias de palavras que iniciam com a consoante “W”.

No decorrer das atividades analisadas verificamos a existência de atividades que trabalham com a escrita espontânea de listas – um conjunto de palavras ligadas pelo mesmo campo semântico. Relacionadas a elas, percebemos a presença de desenhos e escritas espontâneas evidenciando aproximações com a proposta construtivista. Um modo de pensar a alfabetização na perspectiva de quem aprende e considerando as práticas sociais de oralidade e escrita que circulam no universo dos aprendizes. (FERREIRO; TEBEROSKY, 1991; NEVES, 2009).

Neste sentido, as diferentes ilustrações, desenhos de animais e produção de pequenos textos durante a aprendizagem da língua escrita sobre aspectos da cultura indígena Pangỹjej, evidenciam pistas de como as crianças indígenas aprender a ler e escrever. Nas atividades seguintes é possível vislumbrar como o dia a dia da aldeia se materializa no cotidiano escolar por meio de imagens de animais, floresta e os diferentes locais em que habitam conforme nas imagens das figuras a seguir:


Figura 8
Desenhos infantis
Fonte: Vanúbia Sampaio.

A utilização do desenho durante o processo de aquisição da língua escrita é um instrumento importante (FERREIRO; TEBEROSKY, 1991), visto que além de retratar o cotidiano da criança favorece uma aprendizagem com sentidos. Essas atividades funcionam como uma negociação com as crianças pois a partir do que criam é possível relacionar estes saberes à escrita na alfabetização na escola indígena (NEVES, 2009). Na figura 9, a atividade de desenhos espontâneos produzidos pela criança, envolveu a escrita do nome dos animais que escolheu desenhar, são animais de diferentes lugares, dentre eles alguns domésticos, como também os da floresta que possivelmente a criança conhece, como o “Peixe, Ave e Porcão do Mato”. Desse modo, ela vai explorando a escrita inspirada em elementos do seu contexto social, numa constante socialização de informações entre as culturas.

Essas atividades (figura 8) consideram os conhecimentos infantis e a sua realidade. Inicialmente as crianças participam do processo de alfabetização com a produção de desenhos que compõe uma lista de animais que conhecem. Nesta ocasião tomam contato com as grafias que nomeiam cada um destes animais. Uma atividade importante para as aprendizagens da leitura e da escrita porque explicita uma das funcionalidades da língua escrita: representar imagens a partir de seus nomes, ou seja, da combinação das letras do alfabeto Pangỹjej, confirmando que: “[...]. É importante entender que ela está, nessa fase, num período muito ativo de construção da escrita. Ela está descobrindo, aprendendo como a escrita funciona. [...]. (BRASIL, MEC, 1998, p. 136).

A Alfabetização Intercultural reconhece que há marcas empiristas baseadas nas cartilhas no dia a dia das salas de aula nas escolas indígenas. E por outro lado entende que há atividades que permitem uma maior participação das crianças como no desenho e nas escritas espontâneas. Nesta direção, valoriza a ênfase nas aprendizagens interculturais com sentido para as crianças que podem ocorrer mediante suas participações na compreensão do objeto escrito na língua indígena e portuguesa. Nos cadernos escolares percebemos como as experiências infantis, suas percepções de mundo se apresentam, por exemplo nos desenhos livres que estão diretamente relacionados aos seus contextos. Nestes ensaios observamos os aspectos da cultura indígena, com possibilidades de ampliação da discussão por meio da linguagem oral: onde este animal vive, como pode ser descrito, como podemos imitá-lo, etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso propósito neste trabalho foi compreender como a alfabetização acontece no contexto indígena Zoró. A pesquisa documental permitiu analisar 10 (dez) cadernos escolares de crianças indígenas matriculadas em duas escolas públicas municipais pertencentes às aldeias Anguj Tapua e Zawã Karej na Terra Indígena Zoró no ciclo de agosto de 2018 a julho de 2019.

Foi possível compreender que o ponto de partida da alfabetização é o estudo do alfabeto. As atividades de cobrir pontilhados de letras traçados permitem atestar a presença da concepção empirista apoiada no método sintético nos cadernos escolares. Notamos que há também atividades de concepções construtivistas: produção de desenhos livres, grafias destes desenhos inspirados no ambiente das aldeias, além do uso do alfabeto fixo, a valorização da oralidade e da escrita em língua indígena. Assim, afirmamos que os processos formativos de orientação construtivista tensionam as concepções de reprodução mecânica da língua escrita.

Foi perceptível observar que o modo de alfabetização apresentado no memorial do primeiro autor apresenta relações com as atuais práticas pedagógicas nas escolas indígenas Zoró, envolvendo as atividades empiristas e a própria adoção de cartilha. Nesta direção, vislumbramos aproximações da trajetória Zoró Pangyjej no âmbito da aprendizagem do ler e escrever com outras etnias, caso dos Gavião-Ikolen e Arara-Karo. Evidências que atestam elementos importantes para se pensar a cultura escolar, as didáticas da alfabetização e a demandas para a formação docente intercultural.

Assim refletir os saberes das crianças Zoró no processo de aquisição da língua escrita significa disponibilizar pistas sobre o entendimento de como sociedades de tradição oral lidam com os objetos culturais diferentes, que não pertenciam, às culturas indígenas como a escrita e seus usos nos suportes eletrônicos e no papel. Considerando que a alfabetização é um fenômeno social importante, é a etapa inicial de ingresso nas culturas do escrito também nas aldeias indígenas avaliamos ser necessário que este tema constitua elemento de reflexão dos Povos Indígenas, Secretaria de Estado da Educação (SEDUC) e instituições formadoras tendo em vista a relevância deste objeto cultural na atualidade.

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Notas

[1] (TRESMANN, 1994); (DAL POZ, 2006). Em 1978 se deu a aproximação do povo com os missionários evangélicos da MNTB.
[2] (RONDOLÂNDIA/MT, 2010, p. 4 - 5).


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