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Os fluxos e refluxos das águas: o movimento do rio em direção à constituição identitária das mulheres ribeirinhas de Nazaré – RO
The ebbs and flows of the waters: the movement of the river towards the identity constitution of the riverside women of Nazaré - RO
Revista Presença Geográfica, vol. 9, núm. 1, 2022
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Artículos

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 9, núm. 1, 2022

Recepção: 28 Julho 2021

Aprovação: 16 Setembro 2021

Resumo: A identidade das mulheres que vivem no espaço da ribeira amazônica está intimamente ligada à presença do rio enquanto um elemento presente na configuração dos sujeitos e no tecido social destas comunidades. O artigo em tela é parte dos resultados da tese de doutoramento e traz como objetivo identificar as relações identitárias que são constituídas por meio dos vínculos estabelecidos entre as mulheres que vivem na comunidade ribeirinha de Nazaré – RO e o rio Madeira. A pesquisa foi desenvolvida na comunidade ribeirinha de Nazaré que está localizada na região do Baixo Madeira, há aproximadamente 120 km do município de Porto Velho, capital do estado de Rondônia. Metodologicamente este estudo se constitui de cunho qualitativo e os procedimentos metodológicos utilizados foram a pesquisa bibliográfica, pesquisa de campo, caracterizada pela realização de entrevistas semiestruturadas com quatro mulheres. Ressalta-se que as discussões realizadas em tela também se apoiam no conhecimento adquirido por meio do contato estabelecido com a referida comunidade desde o ano de 2011, período de desenvolvimento da pesquisa de mestrado (2011-2013). As múltiplas identidades das mulheres que vivem em Nazaré se conectam nesta trama de vínculos e práticas espaciais que representam a relação com o rio Madeira e com os corpos d’água que circundam Nazaré. Estes elementos ora se apresentam no campo funcional, materializado como útil para o viver cotidiano da “dona de casa” e, ora são referenciados no aspecto subjetivo ligado à cultura, ou seja, a manifestação do ser pescadora, agricultora e ribeirinha.

Palavras-chave: Rio Madeira, Mulheres ribeirinhas, Comunidade ribeirinha de Nazaré, Identidade.

Abstract: The identity of women who live on the amazonic riverside space is closely linked to the presence of the river as an element present in the configuration of subjects and in the social tissue of these communities. The article in question is part of the results of the doctoral thesis and aims to note the identity relationships that are constituted through the bonds established between women living in the riverside community of Nazaré - RO and the Madeira River, as a preponderant natural element of the space. The research was carried out in the riverside community of Nazaré, which is located in the Baixo Madeira region, approximately 120 km from the city of Porto Velho, capital of the state of Rondônia. Methodologically, this study is qualitative and the methodological procedures used were bibliographical research, field research, characterized by conducting semi-structured interviews with four women. It is noteworthy that the discussions in question are also based on the knowledge acquired through the contact established with that community since 2011, the period of development of the master's research (2011-2013). The multiple identities of women living in Nazaré are connected in this web of links and spatial practices that represent the relationship with the Madeira River and with water bodies that surround Nazaré. These elements sometimes appear in the functional field, materialized as useful for the daily life of the "housewife" and sometimes are referenced in the subjective aspect linked to culture, that is, the manifestation of being a fisherwoman, farmer and riverside woman.

Keywords: Madeira river, Riverside women, Riverside community of Nazaré, Identity.

INTRODUÇÃO

A identidade resulta de uma construção sociocultural, sendo considerada fonte de significado e experiência de um indivíduo ou coletivo, de modo que é construída por intermédio do diálogo estabelecido com o meio, uma vez que este está investido de elementos sociais, culturais e simbólicos que dão significado a existência do ser.

No espaço ribeirinho amazônico existe uma ligação de intimidade e respeito em relação aos elementos naturais que compõem o espaço de vida das comunidades, de maneira que os(as) que ali vivem sentem-se parte deste universo da floresta e das águas. Este vínculo estabelecido com o ambiente natural, em especial com o rio, se configura como um importante elemento de constituição da identidade das mulheres ribeirinhas.

Compreendo que embora homens e mulheres compartilhem o viver nestes espaços tradicionais, a forma de apropriação dos elementos espaciais se dá de modo diferenciado, segundo as especificidades de cada um dos dois grupos. Diante desse entendimento e da necessidade de estudos que tenham as mulheres ribeirinhas como centralidade é que a perspectiva de gênero deste estudo está fundamentada.

Assim sendo, o objetivo deste artigo é identificar as relações identitárias que são constituídas por meio dos vínculos estabelecidos entre as mulheres que vivem na comunidade ribeirinha de Nazaré – RO e o rio Madeira, enquanto elemento natural preponderante do espaço.

Este artigo traz parte da pesquisa de doutoramento que foi desenvolvida junto à comunidade ribeirinha de Nazaré, localizada na margem esquerda do Rio Madeira, a jusante deste, na região do Baixo Madeira, há aproximadamente 120 km de Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, como pode ser observado no mapa abaixo.


Figura 1
Mapa da comunidade ribeirinha de Nazaré
Fonte: IBGE - Org. CRUZ, Mirtilene Lopes (2013)

O acesso à comunidade se dá somente via fluvial, sendo que os(as) moradores(as) que não possuem embarcação própria podem se locomover por meio de embarcações tipo recreio ou por lanchas alugadas. Com embarcações menores – lanchas ou voadeira – o acesso à comunidade se dá em aproximadamente duas horas, enquanto que com embarcações maiores, tipo recreio, comumente chamados pela comunidade de “barco de linha”, a comunidade pode ser acessada em aproximadamente sete horas de navegação.

Nazaré surgiu em um antigo seringal, na década de 1940, momento em que houve a decadência do ciclo da borracha (MENEZES, 2014). Na época a localidade chamava-se Boca do Furo e foi da estrutura comunitária que abrigava os seringueiros que surgiu a comunidade.

Nazaré é sede de um dos onze distritos do Município de Porto Velho, Distrito de Nazaré, que foi instituído pela Lei Municipal nº 1.299, de 26 de julho de 1997. Assim sendo, a comunidade possui 40% da população do distrito e dispõe de um administrador que é indicado pelo prefeito de Porto Velho, sendo ele o responsável pela gestão pública da localidade.

Este estudo se caracteriza como qualitativo e metodologicamente a pesquisa se estruturou em duas etapas complementares, de modo que a primeira etapa diz respeito à pesquisa bibliográfica que se apoiou em estudos sobre Amazônia, comunidades ribeirinhas e mulheres.

A segunda etapa se caracterizou pelo o trabalho de campo que, por sua vez, possibilitou as análises e reflexões sobre o universo ribeirinho e, em específico, das mulheres ribeirinhas. Durante o doutorado (2015-2019) foram realizados três trabalhos campo (2015, 2016 e 2017), no entanto, faz-se relevante mencionar que as discussões realizadas neste artigo também se aportam no conhecimento adquirido em um período anterior ao doutorado, período este em que desenvolvi a pesquisa de mestrado na referida comunidade e pude, portanto, estabelecer contato com as mulheres e iniciar o processo de observações e coletas de informações sobre o ser/viver das mulheres no espaço ribeirinho. Assim sendo, durante esses anos foram realizadas nove atividades de campo, sendo que o tempo de permanência em Nazaré variou entre dias e semanas em cada saída de campo.

Para a coleta de dados, utilizou-se como estratégia a entrevista semiestruturada, com a finalidade de coletar informações pertinentes ao objetivo proposto. Esta técnica foi escolhida pensando na possibilidade de as informantes discorrerem de forma espontânea sobre a temática pesquisada, possibilitando a obtenção de outras informações para além daquelas previstas no roteiro.

Nessa aproximação estabelecida com a comunidade de Nazaré, sobretudo com as mulheres, tive a oportunidade de entrevistar quatro destas mulheres durante o doutorado, buscando fazer o levantamento de informações que pudessem dar subsídio ao desenvolvimento da pesquisa, de modo a propiciar a confrontação entre os elementos teóricos e os empíricos.

A escolha de três das entrevistadas se deu pelo tempo de moradia na comunidade e, por conseguinte, pela possibilidade de discorrer com maior propriedade sobre as experiências de vida no espaço ribeirinho. Uma das entrevistadas foi escolhida por sua proeminência na comunidade, devido ao fato de ser presidente da Associação de Mulheres de Nazaré e, portanto, ter maior abertura ao diálogo e conhecimento da realidade enfrentada cotidianamente pelas mulheres da comunidade.

Este artigo está estruturado da seguinte forma: no primeiro tópico apresento as mulheres ribeirinhas de Nazaré) e traço o percurso da pesquisa, com ênfase para o contato que estabeleci com o universo da pesquisa; no segundo tópico busco analisar o rio Madeira e os demais corpos d’água que circundam a comunidade, enquanto importantes elementos para a constituição da identidade das mulheres que vivem em Nazaré.

“Lá na beira do rio”: o encontro com as mulheres ribeirinhas

Aos treze dias do mês de agosto de 2011 – durante o mestrado – embalada pelo ritmado movimento das águas, naveguei pelo rio Madeira em uma pequena embarcação durante duas horas até Nazaré. A experiência vivida desde esse primeiro trajeto até os últimos momentos da pesquisa de campo, realizada em 2017 – no período de doutoramento – foram importantes para a vivência e o aprendizado de uma pesquisadora urbana que pouco conhecia sobre o viver nesse espaço que se entremeia entre a “terra firme” e a “terra molhada”, como é o caso da localidade pesquisada.

Para Fraxe (2000), duas grandes regiões naturais da bacia Amazônia são a “terra firme” e a várzea – “terras molhadas”. A maior parte da comunidade de Nazaré está em “Terra firme”, área que durante o verão amazônico não permanece alagada, mas durante o período chuvoso está sujeita a alagamento, dado o aumento do nível do rio.

Identifiquei, diante de falas de moradores(as) de Nazaré que para estes(as) as áreas de “terra firme” são aquelas que possuem relativa distância dos corpos d´água que circundam a comunidade – rio Madeira, lago do Peixe Boi, córrego Cura Ressaca e Boca do Furo. No entanto, as localidades próximas a estes, mesmo que não sejam áreas de várzea, devido à vulnerabilidade durante os períodos de cheia, não são concebidas como locais de “terra firme”.

Deste modo, pelo rio fui conduzida a esta comunidade, espaço cercado por águas correntes que emitem um murmúrio incessante e refletem uma sonoridade ora macia, ora ruidosa, devido ao barulho emitido pelo motor de barcos que por este rio trafegam.

Cheguei a Nazaré decidida a conhecer as mulheres que ali viviam/vivem e esse encontro foi orquestrado por um desejo de melhor compreender a dinâmica de vida dessa comunidade, conhecer quem são aquelas que habitam esses espaços fluidos e traçam suas histórias junto à floresta, criando laços de cumplicidade com esses elementos tão abundantes na Amazônia. Desta maneira, motivada por este interesse me lancei nesse percurso que teve o início e a conclusão no sinuoso caminho traçado pelas turvas águas do rio Madeira.

Estar em Nazaré é ter a oportunidade de mergulhar em uma realidade permeada por relações tradicionalmente concebidas, relações estas que estão entrelaçadas em um emaranhado cultural que se materializa nas vozes, nos cantos, nas danças, nos gestos e na própria paisagem que é fortemente marcada pela confluência do elemento humano e dos elementos da bio e da geodiversidade amazônica.

O barranco como o portal de entrada da comunidade; as casas suspensas sob palafitas e construídas em madeira extraída do próprio local; a passarela suspensa de madeira, tão importante durante o chuvoso inverno amazônico para ligar as casas que estão na parte central e facilitar o trajeto dos(as) alunos(as) à escola; as redes armadas na varanda das casas; o espaço ainda reservado às seringueiras que restaram do antigo seringal. Esses são elementos marcantes da paisagem de Nazaré.

Ainda durante o mestrado almejava prosseguir nos caminhos da pesquisa e, portanto, engajar-me em um programa de doutorado, mas ainda não havia definido o que gostaria de estudar/pesquisar. Essa definição veio durante um trabalho de campo realizado no período final do mestrado quando estava em uma das tardes de conversa com uma interlocutora e sua neta, que na época era uma pré-adolescente, me relatou que seu pai estava empenhado na construção de uma nova casa para a família e, ao ser indagada sobre o porquê desta mudança, ela me respondeu que a “água estava levando sua casa”. Intrigada com a tranquilidade com que a pré-adolescente me relatou essa situação, resolvi perguntar a ela como se sentia diante do que estava ocorrendo e, sua resposta foi a seguinte: “aqui tudo é do rio, se ele quer levar, deixa levar”.

Esse momento foi um despertar para a compreensão de que o rio Madeira possui um significado para além da sua função puramente material, pois permeia a vida nestes espaços, regulando a espacialidade da comunidade como um todo. A fala da pré-adolescente demonstra respeito pelo rio que, como um elemento dominante na paisagem, apresenta-se como sendo superior em relação à terra.

Diante deste relato o trecho do artigo “Entre o murmúrio do rio e o despertar das lembranças”, escrito por Oliveira e Brandão (2009, p.226), passou a fazer todo o sentido:

Um rio pode ser sentido e vivenciado em diferentes valores por diferentes pessoas que habitam as suas águas, por anos, por dias, por uma noite ou um dia apenas, por algumas horas. Isso faz do rio um lugar de vida, um lugar em movimento, um lugar em caminho.

Existe um real contraste entre aquele(a) que percebe o lugar na posição de visitante – outsider – e aquele que está em “casa” – insider, ou seja, a forma como eu percebia o rio Madeira era – e ainda o é – totalmente distante do modo como as pessoas que vivem em Nazaré o percebe, pois para estas há um envolvimento emocional que está alicerçado na experiência do lugar.

Ademais, o reconhecer que a erosão fluvial se configura como um processo natural que está relacionado à dinâmica do rio Madeira, evidencia a existência de um conhecimento empírico que fundamenta-se nos conhecimentos que são repassados de geração em geração e também são adquiridos pela própria experiência cotidiana. No entanto, essa conexão com a água, que se fundamenta em uma relação um tanto quanto particular, torna esses indivíduos exímios conhecedores dos mecanismos, potencialidade, fragilidades e ciclos do rio Madeira.

O fenômeno das “terras caídas”, expresso na fala, é responsável por reordenar espacialmente a comunidade de Nazaré, ou seja, sua organização espacial se dá em função do rio do Madeira e do seu regime de cheias e vazantes. Neste sentido, de acordo com Tocantins (1973), as comunidades ribeirinhas amazônicas estão preparadas para locomoverem-se a ré, caso as “terras caídas” ameacem as palafitas, mas estão sempre junto da água dos rios, pois é no espaço da vereda que a vida acontece e ganha contornos culturais que imprimem um modo de vida particular amazônico.

Deste modo, enquanto pesquisadora, o meu olhar para Nazaré como espaço social e lugar de vida, direcionou-se para as nuances que envolvem um viver/ser peculiar, uma forma de ver e compreender o mundo de modo particular, atentando-me para a floresta e para os cantos do rio Madeira. Não busquei compreender esse espaço com as lentes do “outro”, no caso dos(as) ribeirinhos(as), mas sim promover um encontro/confronto de visões de mundo, de um olhar “de fora” que formula a pesquisa, de uma tentativa de interlocução entre pessoas de mundos distintos e desiguais.

O meu encontro com as mulheres ribeirinhas se deu em momentos de entrevistas e conversas informais. Nós nos encontramos nas sombras das árvores que margeiam o campo de futebol durante as partidas jogadas pelos homens – esposos, filhos, amigos, nos fins de tarde à beira do rio Madeira, nos sábados e domingos no Córrego Cura Ressaca, nas varandas das casas, nas noites em que fomos festejar a cultura ribeirinha na Arena Cultural, nas caminhadas que fazia pela comunidade. Enfim, foram diversos, intensos e agradáveis os encontros com as mulheres de Nazaré ao longo do transcurso da pesquisa.

Nestes momentos, apesar do meu contato com elas permanecer no campo da “realidade objetiva do real de suas vidas”, a ótica da minha reflexão passou e direcionar-se às questões sociais que envolvem as suas vidas. Segundo Brandão (2009), o conhecimento de uma realidade perpassa também por essas questões, pois são elas que nos permitem compreender como esses grupos sociais “[...] transformam sem cessar o seu: quem somos, como nos imaginamos, quem desejamos ser, como vivemos, como queremos viver, em que mundo estamos, em qual mundo queremos estar [...]”.

A primeira mulher que tive contato mais próximo na comunidade foi Maria de Nazaré, falecida em 2016 por problemas de saúde. Moradora em uma área afastada da parte central da comunidade, ribeirinha, agricultura, viúva, mãe de dois filhos e avó. A primeira vez que fui à sua propriedade foi atendendo a um convite seu para junto a ela produzir farinha, atividade que costumeiramente realizava, pois, a comercialização do excedente deste produto era fonte de renda para a família.

Em meio à intensa chuva do mês de janeiro (do ano de 2012), período do inverno amazônico, eu e algumas pesquisadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Mulher e Relações Sociais de Gênero – GEPGENERO, fomos à casa desta senhora e ao chegar fomos recebidas por ela, por sua vizinha e amiga Francisca, bem como pelos filhos e netos. O fundo de sua propriedade era banhado pelo córrego Boca do Furo, local dominado pelo silêncio, que em algum momento era interrompido pelo barulho dos motores de voadeiras que por lá passavam.

O contato com estas duas moradoras de Nazaré foi um momento de interessantes reflexões e aprendizados sobre o ser mulher em uma comunidade ribeirinha. O ato de aprender pelo contato, proporcionado tornou a pesquisa uma tarefa menos pesada ao possibilitar-me ouvir/ver a dinâmica sonora das vozes, a expressão dos corpos e dos olhares, as inclinações afetivas manifestadas nos sorrisos e as manifestações de medo e raiva evidenciadas nas expressões faciais, de modo a aproximar da ciência, sobretudo, no domínio das humanas, o que mais importa: o ser humano.

Nesta manhã, junto à Maria de Nazaré e à Francisca pude aprender sobre a vida. Em determinados momentos esquecia que estava ali na função de pesquisadora, me compreendia apenas como mulher que estava a ouvir lições sobre o viver. Maria de Nazaré nos contou parte da sua história familiar e dos enfrentamentos travados para cuidar dos filhos.

Esta senhora foi casada durante quinze anos, mas o marido veio a óbito, acometido por um derrame. Deste casamento a herança foi um filho. Passados alguns anos casou-se novamente, mas se divorciou e neste casamento concebeu outro filho. Sem um companheiro que pudesse lhe auxiliar na lida no campo, como ela mesma afirmou, plantava e colhia sozinha, enquanto os filhos ainda eram crianças. Ela pôde contar com a ajuda da vizinha e amiga Francisca que, por diversas vezes, auxiliou na alimentação da família, demonstrando uma relação de parceria. Nessa relação a sororidadade, algo fundamental entre as mulheres, é revelada.

A sororidade se caracteriza como um conceito que está relacionado às experiências subjetivas entre mulheres na busca por relações positivas, na construção de alianças existenciais e políticas com outras mulheres. Segundo a doutora em educação Simone Alves (2014, p. 56) “Sororidade significa a irmandade entre mulheres. Na sororidade a prioridade somos nós, mulheres. O objetivo central é tirarmos umas às outras das margens e nos centralizarmos”.

Os laços de companheirismo e afetividade que uniam estas duas ribeirinhas evidenciam a sororidade, demonstrando a importância dessa parceria entre mulheres como forma de promover e consolidar as relações de solidariedade e cooperação.

A vida da mulher ribeirinha é repleta de enfrentamentos diários que começam no núcleo familiar com a cansativa jornada de trabalho, relacionamentos fundamentados em relações patriarcais, a distância dos(as) filhos(as) que vão para a cidade em busca de avançar nos estudos ou em busca de emprego, o isolamento, problemas financeiros. Essas dificuldades se estendem ao espaço público em relação a questões como: poucas opções de lazer; dificuldades em acessar serviços de saúde; dificuldade na obtenção de documentos civis e trabalhistas; falta de incentivo e até mesmo proibição do cônjuge para frequentar a escola; distância do núcleo urbano para a resolução de problemas.

Além das histórias de sofrimento e labuta ribeirinha, Maria de Nazaré também relatou sua relação com os elementos naturais que cercam Nazaré, especialmente com o rio, retratando-o como um elemento associado à subsistência e aos momentos prazerosos, que se davam especialmente quando saia para pescar, sozinha ou acompanhada de sua amiga Francisca. Para esta senhora o sobreviver e o viver no espaço ribeirinho perpassava pelo significado de estar com seus filhos e com uma amiga solidária, bem como por estar cercada por água e floresta.

Desta forma, a experiência com essas mulheres naquela manhã cinzenta de janeiro me impulsionou a conhecer a realidade e as histórias de vida de outras moradoras de Nazaré. Utilizei parte do meu tempo nos trabalhos de campo (no período do mestrado) para estabelecer relações com algumas mulheres e, em nossos encontros as conversas informais sobre a vida, o existir no mundo e a relação que estabelecemos com este eram a pauta central dos diálogos.

Durante estes momentos de aproximação vivi a experiência de substituir o antigo e enfastioso eixo que Brandão e Streck (2006, p. 12) criticam: “[...] pesquisador/pesquisado, conhecedor/conhecido, cientista/cientificado”. Busquei não demarcar demais os níveis hierárquicos, no que tange a ideias preconcebidas de conhecimento, mas sim criar mecanismos para que nos envolvêssemos em uma teia entre/de pessoas e saberes, na busca por construir conhecimento por meio de uma ótica solidária.

Os diálogos estabelecidos revelaram diversos saberes que, por conseguinte, apontam muitos aspectos que envolvem o cotidiano e as atividades desenvolvidas pelas ribeirinhas. Com elas conheci, por exemplo, técnicas para descascar mandioca, uma vez que estas, sobretudo quando vão produzir farinha, descascam grande quantidade do produto – em média de quatro a seis sacos de cinquenta quilos – fato que demanda tempo e vigor físico.

O processo de fabricação da farinha também exige conhecimentos específicos para cada fase que são adquiridos com a experiência cotidiana, pois essas mulheres desde crianças auxiliam suas mães e pais, visto que o beneficiamento da mandioca é uma atividade compartilhada por todos(as) os(as) membros da família. O fabrico da farinha demanda experiência e domínio de procedimentos que vão desde o descascar da mandioca, passa pelo período adequado em que devem ficar de molho em um recipiente específico, até o processo de escaldar e secar a farinha no forno.

Os saberes também se evidenciaram quando nas conversas o rio Madeira tornava-se elemento central. Muito embora sejam os homens ribeirinhos conhecidos como exímios pescadores, as mulheres demonstraram conhecimento acerca dos peixes de maior incidência no rio Madeira, bem como de locais específicos onde a pesca deve acontecer, devido à abundância de peixes. A experiência do dia a dia vivido às margens desse rio, a observação acurada dos elementos naturais, aliada a prática da pesca, são fundamentais para produzir conhecimento e de suma importância para a sobrevivência e para a vida social no espaço ribeirinho.

Os modos de preparado do peixe também se configuram como um saber ribeirinho. A este respeito, em uma das atividades de campo realizadas fiquei hospedada na casa de uma família e, ao chegar à casa em uma das noites, após o dia de entrevistas e conversas, fui recebida pela família com um jantar tipicamente ribeirinho: peixe assado na brasa acompanhado de farinha. Durante o jantar indaguei a senhora sobre o peixe que estávamos comendo, perguntando se era uma espécie que não tinha espinha e ela me respondeu que aquela espécie era repleta de espinhas, mas antes de temperá-lo o havia “ticado”.

Ticar é uma técnica muito difundida em comunidades ribeirinhas amazônicas, uma vez que o peixe faz parte da dieta por ser um alimento abundante na região. Essa é uma prática que consiste em fazer cortes verticais no peixe com o objetivo de cortar suas espinhas, facilitando a ingestão.

Logo após receber uma detalhada explicação de como se deve ticar um peixe, o senhor que me recebia em sua casa, mencionou que os havia ticado para facilitar a minha ingestão, visto que eles/elas estão acostumados a comer peixe com espinha, sendo raros os casos de ribeirinhos(as) que se engasgam durante a ingestão.

Outro fator que remete diretamente ao saber/fazer das mulheres ribeirinhas está relacionado aos remédios caseiros que são produzidos com plantas medicinais, geralmente cultivadas no quintal das casas. Ouvi de várias mulheres que na comunidade alguns problemas de saúde cotidianos são tratados com medicamentos produzidos por mulheres. Deste modo, Nascimento Silva (2004), afirma que entre as ribeirinhas detentoras do saber tradicional é comum a utilização de massagens e recomendação de utilização de ervas medicinais.

A este respeito, Morais (2016), ao estudar a medicina tradicional na comunidade de Nazaré, afirma que:

A medicina tradicional torna-se a amálgama cosmo-mítico-religioso dentro das comunidades rurais. A saúde da mulher no contexto ribeirinho não é somente de importância biológica, mas é também determinada de forma social, em que os conhecimentos adquiridos e repassados pelas mulheres mais velhas possuem uma importância, senão maior do que as orientações advindas de profissionais de saúde convencional (MORAIS, 2016, p. 39).

Estes saberes ligados à saúde apresentam-se tanto no campo das questões ambientais, quando se trata do manejo e cuidados que se fazem necessários com as plantas medicinais, quanto no campo do relacionamento interpessoal entre aquele(a) que oferece o tratamento e aquele(a) que necessita ser tratado(a), pois faz-se necessário que seja criada uma relação de confiança, para que as causas e os sintomas da doença sejam tratados.

Deste modo, o espaço da terra onde brotam as manivas da mandioca que serão transformadas em farinha e onde as ervas medicinais se ramificam para auxiliar no tratamento de doenças, se imbrica com o espaço das águas, onde a prática da pesca se efetiva e de onde é retirado o principal alimento do(a) ribeirinho(a). É nesta imbricação terra-água que os saberes e fazeres se constroem e se remodelam ao longo do tempo.

Diante desses saberes e fazeres que se manifestam na convivência com o rio e com a floresta é que Porto-Gonçalves (2015), nomeia esses indivíduos como “produtores(as) polivalentes”, pois possuem uma visão e prática que combina esses diferentes ambientes amazônicos com a agricultura, o extrativismo e a pesca. Essas questões se apresentam como parte do universo cultural ribeirinho, na medida em que remetem a práticas cotidianas e a uma espacialidade específica.

A espacialidade ribeirinha está impregnada do modo de saber-fazer dessas mulheres, uma vez que este espaço tradicional também é estruturado por meio do processo de produção e reprodução concebido e estruturado também por estes sujeitos. Ao adentrar a este campo de análise faz-se necessário olhar atentamente para os vínculos estabelecidos por estas mulheres como elementos espaciais, bem como sociais.

As experiências cotidianas das mulheres de Nazaré são construídas ao longo de uma história vivida no espaço da ribeira e mesmo aquelas que não nasceram nessas comunidades, como é o caso de algumas interlocutoras da pesquisa, ao mudarem-se passam a fazer parte deste espaço, vivenciando as adversidades impostas aos(as) que habitam nestas áreas e adquirindo, paulatinamente, os saberes que foram tradicionalmente constituídos.

O cotidiano remete à espacialidade vivida de um grupo e pode ser compreendido, de acordo com Silva (2014, p. 30), como um conjunto de práticas relacionadas à inventividade, à criatividade e à resistência, no que tange às formas de imposições institucionalizadas de poder. A prática cotidiana assenta-se na reprodução das relações sociais e na reprodução da vida como um todo, conjugando elementos sociais, culturais, ambientais, políticos e econômicos.

Damiani (1999), aponta que para além das questões econômicas e políticas, o cotidiano indica outras relações estabelecidas entres os indivíduos e os grupos, incluindo o vivido, a subjetividade, as emoções, os hábitos e os comportamentos. Neste sentido, o cotidiano, enquanto um conjunto de interelações, é considerado como mediação fundamental ao conhecimento da relação dialética entre o lugar e o mundo.

O cotidiano se constitui pela imagem que um grupo tem de si próprio, bem como pelas convenções do senso comum que expressam uma forte ligação no/com o lugar, uma vez que esse universo que está alicerçado nas relações de proximidade, de convívio e intimidade, assegura o lugar dos(as) sujeitos no mundo, uma vez que o mundo está no lugar e este, por sua vez, está no mundo.

O cotidiano das mulheres de Nazaré é marcado pelas relações que estas estabelecem no contexto doméstico, enquanto mães, esposas e donas de casa, uma vez que todas as funções ligadas ao núcleo familiar são exercidas por elas. Mesmo que estas se ocupem em outras tarefas ligadas, por exemplo, a estudo e a atividades pluriativas, ainda assim o trabalho doméstico continua sendo de sua inteira responsabilidade.

A este respeito Fechine (2007), ao desenvolver pesquisa com comunidades ribeirinhas do Rio Madeira, analisando o cotidiano das mulheres, constatou que:

[...] o dia de trabalho começa com as atividades relacionadas com a manutenção da família. Em alguns casos é relatada a participação dos demais membros da família, como capazes de “ajudar”. No entanto, a mulher se considera responsável, fazendo referência em ser a “dona de casa”, expressão que se destacou em primeiro lugar quando foi perguntada qual a condição atual e/ou profissão naquele momento.

Além desempenhar papel fundamental na reprodução familiar, as atividades produtivas também fazem parte das ações cotidianas desenvolvidas pelas ribeirinhas, referindo-se especificamente às atividades agrícola e extrativista. Em Nazaré, os principais produtos extraídos e cultivados são: o açaí, a castanha, a melancia, o cupuaçu e a banana. De acordo com dados de estudo realizado por pesquisadores(as) do Grupo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Mulher e Relações Sociais de Gênero – GEPGENERO – e publicados na dissertação de mestrado de Lopes (2013), em Nazaré 47% das entrevistadas dedicam-se à agricultura.

Na comunidade também identifiquei mulheres que são funcionárias públicas, desenvolvendo atividades como agentes de limpeza escolar e auxiliar de cozinha na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Francisco Desmoret Passos. Ao refletir sobre o adentrar destas mulheres no mercado de trabalho, é possível observar estreita relação das funções que exercem no ambiente externo de trabalho com aquelas que desempenham no âmbito familiar, sendo os instrumentos de trabalho os mesmos e o espaço da cozinha mantido sob seu total domínio. A lógica de incorporação destas mulheres no espaço público está permeada pela essência naturalizante que dita as funções e o espaços a serem ocupados por homens e mulheres.

A associação do trabalho desenvolvido pela mulher na esfera pública com aqueles que tradicionalmente lhe são impostos no âmbito reprodutivo familiar, traz a noção da mulher como “Força de trabalho secundária” (ABRAMO, 2007). Este conceito estrutura-se:

[...] em primeiro lugar, a partir da separação e da hierarquização entre as esferas do público e do privado e da produção e da reprodução. Em segundo lugar em torno de uma concepção da família nuclear na qual o homem é o principal ou o único provedor e a mulher é responsável principal ou exclusiva pela esfera privada (ABRAMO, 2007, p. 17).

Segundo a visão desta pesquisadora a entrada da mulher no mercado ocorre geralmente quando o homem, na qualidade de provedor da família, não pode cumprir com a sua função, devido a situações de desemprego, doença, separação, falecimento, dentre outras causas. No caso específico das funcionárias da escola, identificamos que uma delas presta serviço para o governo estadual, pois, segundo ela, precisa sustentar os dois filhos, enquanto a outra é mãe de quatro filhos e precisa auxiliar no sustento do pai que está idoso.

O trabalho, para estas mulheres, é encarado como necessário para assegurar o sustento familiar, devido à falta da presença do homem como provedor. Conciliar o trabalho fora de casa com as atividades no âmbito doméstico provocou, segundo elas, sobrecarga de trabalho, trazendo significativa transformação na rotina, uma vez que estas deixaram de executar tarefas que tradicionalmente ocupam o tempo daquelas que vivem nestas comunidades, como o empenho nas atividades agrícolas, o fabrico da farinha e a pesca.

O espaço de vida e luta das mulheres de Nazaré está apoiado em elementos subjetivos que muito dizem sobre o ser mulher e ser ribeirinha amazônica e é diante desta perspectiva que me encontro com esses sujeitos. Neste processo de estabelecimento de contatos e de realizar um estudo que estivesse alicerçado em um contato dialógico com as mulheres, vivi interessantes momentos junto as interlocutoras da pesquisa e, de fato conheci e me identifiquei com o lugar e com os (as) que ali habitam.

Entendo que sempre fui vista pela comunidade como uma outsider, mas não considero que esta situação tenha causado danos ao desenvolvimento da pesquisa, pois encontrei o meu lugar ideal, ou seja, deixei-me conhecer, participei de atividades cotidianas – ir à beira do rio nos finais de tarde, estar presente em momentos de produção de farinha, conversar nas varandas das casas, fazer lanche e outras refeições junto às famílias locais – participei de reuniões com os(as) agricultores(as), fui recebida pelo Instituto Minhas Raízes para uma conversa sobre a comunidade, ministrei uma oficina, sobre turismo comunitário, para os(as) alunos(as) da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Francisco Desmoret Passos. Enfim foram diversas atividades e momentos que me aproximaram das pessoas que vivem em Nazaré.

Desta forma, no decorrer das conversas que realizei identifiquei informações[1] que se repetiam, de modo que o surgimento de novos elementos, com o passar das atividades de campo realizadas, passou a ser cada vez menos frequente. A cada nova conversa as informações outrora coletadas se confirmavam. Desta maneira, a essência do que havia me proposto a estudar, começou a ser revelada.

Entendo que esse desvelar não se dá puramente em um ato de descoberta, mas requer um esforço mental, em que uma série de elementos que envolvem as questões pesquisadas e fazem parte de sua extensão não podem ser dissociados da totalidade. Foi necessário empreender análises, refletir sobre o contexto estudado e realizar conexões entre os elementos encontrados na fala das mulheres e aqueles que são próprios da realidade socioespacial ribeirinha, sobretudo do grupo estudado.

Neste sentido Dartigues (2008, p.33) afirma que a essência do fenômeno “[...] se definirá com uma ‘consciência de impossibilidade’, isto é, como aquilo que é impossível à consciência pensar de outro modo”. Para alcançar tal essência é necessário reduzir e purificar de tudo o que não é fundamental e elementar, de modo que se manifeste o que lhe é essencial. Essa redução é denominada por Husserl de “Redução Eidética”, aquela se obtém por meio de um esforço analítico.

Assim sendo, buscando compreender como o rio Madeira vincula-se a constituição da identidade das mulheres que vivem em Nazaré, deixei-me levar pela correnteza das águas deste rio, de modo que meus pensamentos divagaram por entre os banzeiros que agitados davam movimento às ideias e às análises que aos poucos foram tomando forma. A imagem fluida das águas deste rio trouxe-me vida, inspiração, força e desejo. Como afirma Bachelard (2013, p. 136), “A água leva-nos. A água embala-nos”. Eu fui levada por essas águas, ora de forma literal, ora de forma imaginária, subjetiva.

No compasso dos banzeiros: a constituição identitária da mulher ribeirinha

As reflexões que tenho realizado sobre as mulheres ribeirinhas levaram-me a compreensão do quão complexas são suas tramas de vida, uma vez que sua espacialidade é marcada por fatores intimamente ligados a questões culturais que estão enraizadas em seu lugar de vivência.

O mundo vivido destas mulheres, assim como grande parte das mulheres que vivem no espaço rural, é marcado pelo patriarcalismo e pelo empenho nas atividades agrícolas, mas, as ribeirinhas possuem peculiaridades que as diferenciam das demais mulheres que vivem no campo e, estas estão ligadas à relação com as narrativas míticas vinculadas aos elementos do meio ambiente natural, a exemplo do mito do boto, à pesca e à presença do rio, como importante componente do lugar.

Ao refletir sobre a relação das mulheres de Nazaré com rio Madeira, busquei compreender os vínculos que são estabelecidos, como forma de identificar e analisar a influência deste elemento da paisagem e do viver ribeirinho na formação identitária destas mulheres. Foram levantadas algumas situações que apontam para uma realidade de ligações que vão do domínio funcional/material ao afetivo/subjetivo.

Como outrora mencionado, Nazaré localiza-se às margens do rio Madeira, sendo que à margem direita está o córrego Boca do Furo, limitando o território de Nazaré e o da comunidade de Boa Vitória e, na margem esquerda encontra-se o córrego Cura Ressaca, espaço utilizado para lazer aos finais de semana.

Em Nazaré há água encanada em quase todas as residências, porém muito embora a água seja um recurso abundante na localidade, os(as) moradores(as), há alguns anos, enfrentam dificuldades de acesso à água devidamente tratada para o consumo e utilização doméstica. Este problema foi resolvido em partes com a instalação de uma rede captação de água.

A captação da água é feita no córrego Cura Ressaca, por meio de uma bomba que conduz a água para um reservatório. Atualmente a dificuldade consiste no fato que essa rede de captação não é suficiente para atender a comunidade de modo adequado, visto que não abastece as residências com a quantidade necessária, além do fato de que não há uma rede de tratamento da água para consumo.

Segundo o administrador do distrito de Nazaré, o governo do estado de Rondônia contratou uma empresa para a instalação da rede de tratamento de água. Pouco antes da enchente que acometeu a comunidade em 2014, a empresa contratada visitou a comunidade e levou os equipamentos necessários para montagem da infraestrutura. Entretanto, com o aumento do nível do rio, os equipamentos foram retirados e até o momento da conversa com o administrador – julho de 2017 – a obra não havia sido retomada e nem havia previsão para o reinício das atividades.

Deste modo, é comum que algumas famílias utilizem água mineral ou façam o uso de componentes químicos para tratar as impurezas, fato que pode ser observado na fala de uma das entrevistadas:

[...] é a água do rio que a gente usa pra tudo, a gente não tem água tratada, [...] nós temos água encanada entre aspas, mas a água do jeito que ela vem do igarapé ela vai direto pras casas. Em casa, no domicílio, cada um faz o seu tratamento, inclusive tem gente que nem trata, entendeu? Manda direto pra cima e aquele barro e pronto! E a água do rio tu sabe ela é muito barrenta, muito suja e tem gente que usa assim mesmo, inclusive até para cozinhar. Aqui em casa não, aqui em casa a gente decanta ela na caixa embaixo, coloca sulfato de alumínio aí depois coloca pra cima, pra caixa de cima pra poder limpar ela, ao menos tirar um pouco do barro (ENTREVISTADA, agosto, 2016).

Durante os períodos em que estive em Nazaré, seja na estadia em pousadas ou nas casas de membros da comunidade, fui alertada para a necessidade de economizar durante os banhos e demais atividades que necessitassem da água, visto que o uso demasiado poderia prejudicar outras pessoas que, porventura, necessitassem utilizá-la.

O paradoxo abundância-escassez é uma realidade vivida cotidianamente em Nazaré, pois a água enquanto elemento abundante na paisagem ribeirinha e, especificamente em Nazaré que é cercada pelas águas do rio Madeira e dos dois córregos – Boca do Furo e Cura Ressaca – é insuficiente para atender a demanda.

Diante das informações obtidas e das observações realizadas durante as atividades de campo, foi possível identificar que não apenas o rio Madeira, enquanto o corpo d’água se apresenta como importante, no que tange à experiência cotidiana das mulheres, pois os córregos que margeiam a comunidade, bem como o lago do Peixe Boi, também se apresentam como elementos relevantes no que se refere as questões levantadas para discussão e análise na pesquisa, pois estes ambientes aquáticos estão conectados, formando uma complexa cadeia que permeia o viver das ribeirinhas.

O rio Madeira aparece com maior frequência na fala das entrevistadas, pelo fato de ser o elemento de maior identificação espacial, no entanto, ao observar a interação dessas mulheres com os componentes naturais que integram o lugar, fica claro que há uma ligação com o elemento água em si, pois os outros corpos d’água que cercam a comunidade também estão intimamente vinculados ao cotidiano e, portanto, ao lugar de vida das ribeirinhas.

A este respeito, Damiani (1999) afirma que “Relacionar o cotidiano e o lugar é envolver as relações próximas, ordinárias, singulares [...]”. A vida mais íntima, com características peculiares, situa o lugar destas mulheres, que é cercado por água, no mundo, mediado pelas ações e práticas cotidianas.

Para tanto, este espaço limitado territorialmente por água traz marcas simbólicas que constituem a lugaridade destas mulheres, objetivando-se nas práticas cotidianas que ocorrem neste interstício espacial água-terra e abarcam as atividades desenvolvidas por estas no espaço privado e no público.

As mulheres de Nazaré são as responsáveis pelo cuidado dos filhos e pelos afazeres domésticos, enquanto os homens são identificados como aqueles que provêm o sustento financeiro para o lar, muito embora elas se empenhem em atividades agrícolas e tenham a pesca como uma atividade importante para a subsistência familiar – como será apresentado posteriormente, demonstrando que as divisões, segundo o trabalho, são fronteiras possíveis de atravessar. Sendo assim, associado às atividades domésticas e ao cuidado com os filhos, a água aparece como fator de importância na vida destas mulheres, pois é um dos mais relevantes recursos que possibilita a realização destes afazeres, fazendo parte, portanto de suas experiências cotidianas.

Para os homens a água do rio Madeira, os córregos e o lago, também assume papel importante, na medida em que são considerados meios de ligação entre outras comunidades ribeirinhas e Porto Velho, uma vez que os “piloteiros” das embarcações são, geralmente, homens e, por conta disso, em muitos casos, são eles que se deslocam para tratar questões fora da comunidade. Além deste fato, esses corpos d’água também se configuram como fundamentais para o universo masculino, pois muitos praticam cotidianamente a pesca, como atividade comercial e, portanto, de sustento familiar.

O papel reprodutivo da mulher ribeirinha está nas bases que irá compor sua identidade, uma vez que elas se auto-reconhecem e também são reconhecidas pela sociedade como donas de casa ou “do lar”, como comumente é denominado, mesmo que muitas delas desempenhem outras funções como, por exemplo, aquelas ligadas à atividade agrícola.

Considera-se que neste cenário historicamente construído e impregnado de subjetividades associadas às práticas patriarcais, algumas ribeirinhas são privadas no que tange ao desenvolvimento de atividades fora do âmbito doméstico, como pode ser observado no relato da interlocutora:

[...] embora tenha algumas [mulheres] que a gente encontra bastante dificuldade né, mas vamos tentar resgatar elas todas e trazer [...] é mais obstáculo sobre... mais mesmo sobre influenciar elas a ficar em casa [...] trabalho de casa, tem menino, tem marido e tem marido que tem opinião diferente né de outros maridos né que deixa participar de reunião, que deixam a mulher participar de um curso e tem umas que se encontram muito nessa barreira né, não tentam né, porque assim, tipo, ele é o que banca a casa né e, elas encontra essa barreira. [...] tem que ouvir ele, tá certo né, tem que respeitar, mas tem que fazer alguma coisa né. Se eu fosse ouvir meu esposo, eu não saia nem na rua, mas assim, ele é machista, mas eu tento [...] (ENTREVISTADA, agosto, 2016).

De acordo com o relato da entrevistada, é possível identificar que uma das barreiras enfrentadas pelas mulheres de Nazaré quanto ao desenvolvimento de outras atividades que não estejam ligadas ao cenário familiar, está relacionado ao fato de que o marido enquanto provedor financeiro sente-se no direito de requerer da esposa a dedicação ao lar. No entanto, é possível observar que as mulheres estão se despertando para se posicionar contrariamente, em alguns momentos e situações, a essa autoridade masculina, ao se mobilizarem para fazer cursos, ir à escola, participar de reuniões da Associação de Produtores Moradores e Amigos de Nazaré – AMPAN – ou de outros encontros que tratem de questões específicas para as mulheres. Identifica-se, portanto, que há iniciativas, tomadas por elas, que buscam alterar este quadro tradicionalmente estabelecido, promovendo a transgressão de princípios de conduta, mediante o reconhecimento de posicionamentos voltados as práticas patriarcais como foi relatado acima: “[...] ele é machista, mas eu tento”.

Deste modo, Przybysz e Silva (2010, p. 32) afirmam que:

O papel feminino está mais ligado aos aspectos de reprodução social como o cuidado com a alimentação, educação, afazeres domésticos, por mais que a mulher tenha adquirido outros papéis como trabalhadora. Nesse sentido, a vivência do espaço privado é mais forte no exercício da feminilidade e por consequência, da maternagem.

Sendo assim, a água retirada do córrego Cura Ressaca se apresenta como um importante elemento na vivência destas mulheres, uma vez que está diretamente associada aos afazeres domésticos. Atividades como lavar roupa, lavar louças, a limpeza da casa e a cocção de refeições, são realizadas diariamente e, portanto, fazem parte do cotidiano destas mulheres.

Esta água traz para estas mulheres uma conotação cultural/funcional. Proponho estes dois eixos estruturantes como importantes para esta análise, muito embora compreenda que na realidade empírica eles não estão dissociados, mas sim imbricados em um conjunto de práticas e experiências espaciais.

A dimensão cultural, neste contexto específico da discussão, está relacionada à atribuição das tarefas domésticas às mulheres, como princípio que organiza e constitui a dinâmica cultural do espaço ribeirinho, uma vez que este está estruturado e é ordenado por meio de uma perspectiva patriarcal.

O aspecto funcional, também denominado por Cruz (2006), como “práticas espaciais materiais”, por sua vez, fundamenta-se na utilização da água do córrego Cura Ressaca como um componente do espaço ribeirinho essencial à manutenção das famílias. Especificamente, esta significação cultural/funcional da água para as mulheres não é vivenciada e experienciada pelos homens, visto que as funções domésticas não fazem parte do cotidiano e nem mesmo são notadas como tarefas que possuem relevância no contexto espacial.

A identidade das mulheres sempre está atrelada também aos papéis sociais que a estas são atribuídos, ou seja, determinadas características identitárias são delineadas em torno do desempenho de tarefas e funções no espaço privado, o que de acordo com Silva e Amazonas (2009, p.4), traz a conotação de oposição em relação à identidade masculina, pois “o que se espera de um, não se espera de outro”.

Desta forma, as águas do córrego Cura Ressaca remetem diretamente à identidade cultural das mulheres ribeirinhas, uma vez que diz respeito a uma origem comum, bem como a práticas comuns a um grupo (ALMEIDA, 2005).

A centralidade da identidade cultural baseia-se no fato de que um indivíduo é parte de um grupo que possui determinados valores culturais que são praticados de forma natural como um atributo legítimo que alicerça as bases de formação dos comportamentos e costumes coletivos.

Hall (2011), ao discutir a identidade cultural, afirma que a projeção do “eu” nas identidades culturais, traz como implicação a internalização de significados e valores, transformando-os no que ele denomina de “parte de nós”, além de contribuir para alinhar os sentimentos subjetivos com os lugares ocupados no mundo social e cultural.

A representação que os sujeitos têm de sua posição no espaço social é fundamental para definir a identidade. É neste contexto que o córrego Cura Ressaca, ao ser considerado essencial na execução das atividades domésticas, torna-se, para além de um corpo d’água, um componente que apresenta ligação direta com as experiências espaciais vivenciadas pelas mulheres no espaço privado, atuando ativamente na formação da identidade cultural destas.

Ressalta-se que diante das observações realizadas e análise das falas das mulheres, foi possível constatar que a casa é um espaço de predomínio feminino, na medida em que estas permanecem parte considerável do dia neste espaço, ocupadas no desenvolvimento das atividades domésticas e cuidado com os filhos.

Outra característica proveniente do contato estabelecido com a água está relacionada à atividade pesqueira. Em Nazaré esta é praticada em grande parte pelos homens, mas as mulheres também a praticam como atividade associada ao lazer, de forma que é comum ouvir narrativas de mulheres que dizem estar cansadas da lida diária e, na busca por conter o cansaço, encontram na pesca uma forma de revitalização da força física e mental.

Nascimento Silva (2004, p. 36). traz essa constatação ao afirmar que:

A responsabilidade da pesca é sempre do chefe de família, ou do filho mais velho (quando adulto); quando as mulheres e as crianças pescam é apenas para o consumo, sempre próximo da casa, nas margens dos rios, lagos ou igarapés, geralmente usam o caniço ou linhada e raramente aventuram-se a águas perigosas que são as profundas ou as que possuem banzeiro.

As mulheres com as quais tive contato afirmaram que pescam em áreas próximas à comunidade, geralmente no lago do Peixe Boi e em alguns pontos próximos do rio Madeira, pois o distanciamento torna-se perigoso.

Algumas delas afirmaram que utilizam a canoa para deslocar-se a áreas onde há maior incidência de peixe, mas normalmente não o fazem sozinhas, sempre há uma companheira de pesca, inclusive uma das entrevistadas afirmou que há algum tempo não pescava, pois, sua companheira de pesca havia se mudado de Nazaré para outra localidade.

Maria de Nazaré, uma das mulheres que tive a oportunidade de conhecer no início de 2012 e revê-la em 2015, contou-me sobre sua companheira de pesca, dona Francisca, vizinha de lote. Segundo esta senhora, em momentos de estresse e cansaço, as duas se deslocavam em sua canoa a locais próximos à comunidade para juntas pescarem. A pesca deixou de ser uma atividade cotidiana por conta do avançar da idade e do surgimento de problemas de saúde.

De acordo com as entrevistadas, poucas são as opções de lazer em Nazaré, sendo uma das principais os jogos de futebol que acontecem diariamente no campo da comunidade, e os torneios que geralmente ocorrem nos finais de semana, reunindo pessoas de outras comunidades, todavia, esta atividade é apreciada, em geral, apenas por homens e por pessoas jovens.

No entanto, a pesca se apresenta como atividade de lazer para estas mulheres, de modo que a sua prática reforça os laços de amizade e companheirismo e revela o estreito vínculo com as águas do rio Madeira e do lago do Peixe Boi, como espaços de entretenimento e convívio.

Associado ao desenvolvimento da pesca como lazer está o fato de que esta atividade é considerada de suma importância para a subsistência familiar, uma vez que a dieta alimentar dos(as) ribeirinhos(as) é baseada na carne de peixe. Assim, as mulheres, enquanto encontram na pesca uma oportunidade de desfrutar de uma atividade de recreação e pausa nas ocupações domésticas e agrícolas, também a reconhecem com fonte de alimento para a família.

Diante desta questão, uma das entrevistadas ao ser interrogada quanto à prática da pesca pelas mulheres da comunidade, fez a seguinte afirmação: “Pesco, pesco [...] elas pescam também, tem muitas que gostam de pescar” (ENTREVISTADA, agosto, 2016). Questionei ainda se as mulheres pescam para comercialização e, segundo ela algumas pescam para “ajudar” o marido, como pode ser observado nesta fala: “[...] tem umas que ainda pesca, mas isso é algumas que ajudam o marido né. Algumas. A maioria é só pra comer mesmo”. Mulheres pescam por diversão, por prazer, porque gostam, algo que os homens talvez façam em algum espaço-tempo.

Outra entrevistada, devido a problemas de saúde, deixou de desempenhar diversas atividades, inclusive as domésticas, mas ainda assim no decorrer de nossa conversa questionei se ela pescava em período anterior ao seu problema de saúde e sua resposta foi: “pescava muito”. Para esta mulher a atividade estava relacionada ao lazer, como pode ser verificado em sua fala: “De lazer. Não, era mais, era esporte mesmo. Mais era lazer. Pescar e fazê o caldinho pá nós tomar” (ENTREVISTADA, agosto, 2016).

Lopes (2013), em sua pesquisa de mestrado desenvolvida em Nazaré, aponta que entre as mulheres entrevistadas – o universo desta pesquisa foram onze mulheres, 29% apresentaram a pesca como profissão, sendo que destas algumas – não foi dado número exato na pesquisa – têm carteira profissional da pesca que foi adquirida na própria localidade a partir da atuação do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, por meio do Programa Nacional da Trabalhadora Rural – PNDTR. Mas, diante das narrativas obtidas durante as entrevistas, bem como das análises realizadas, a autora supracitada chegou à conclusão de que mesmo com a carteira de pesca as mulheres não atuam nesta profissão “[...] dedicando-se mesmo as atividades de dona de casa, a pesca atualmente desenvolve como uma forma de lazer, para consumo familiar. Desenvolve esta atividade com varas simples, sem nenhuma característica profissional” (LOPES, 2013, p.75).

Mesmo que a prática da pesca, para a maior parte das mulheres de Nazaré, não se direcione para fins econômicos, elas se identificam como pescadoras, pois embora a atividade se constitua como lazer, por meio do seu desenvolvimento elas provêm o alimento para a família, sendo em alguns casos uma atividade cotidiana, ligada estritamente a reprodução familiar, como pode ser verificado na fala da interlocutora:

[...] eu ajudava, ia pra roça, pescava [...] pra consumo de casa. Quando eles estavam trabalhando, quando meus filhos criaram e já estavam adolescente, eu sou mãe de dez filho, sete mulher e três homem, [...] e aí quando meu marido ia pra roça, de manhã cedo, daí eu tinha que ir pescar, a gente criava galinha, a gente criava pato. Aí quando um [filho(a)] estudava de manhã, outro de tarde, que eu pescava de manhã, daí um estudava a tarde, ia pescar comigo, as menina ia ficar comigo de manhã pra de tarde ir pra escola. Aí quando eu não conseguia pegar nada de peixe eu vinha pro terreiro, aí matava uma galinha, matava um pato, a gente fazia. A nossa rotina foi essa.

Deste modo, o rio associado à pesca imbrica dois tipos de identidade, a “identidade vivida” (ALMEIDA, 2005), uma vez que retrata elementos do cotidiano da vida destas mulheres, bem como a “identidade cultural” que se apresenta por meio do reconhecimento da mulher ribeirinha com o papel de reprodução no âmbito familiar.

Este auto-reconhecimento enquanto pescadoras está intrinsecamente relacionado às práticas sociais que este grupo compartilha, no que tange à sua relação com o espaço ribeirinho, evidenciando o vínculo, por meio da pesca, com as águas que cercam a comunidade. Neste sentido, segundo Penna (1992), as formas de auto-reconhecimento têm como critério primordial a vivência, sendo representadas de modo simbólico pelo compartilhamento de experiências espaciais que forjam e consubstanciam os sentidos e significados do existir no espaço.

Além da pesca, como atividade ligada à subsistência, as mulheres de Nazaré, lidam com a produção agrícola, tanto no que diz respeito às atividades de beneficiamento dos produtos agrícolas produzidos na localidade, quanto no desempenho das funções de plantio e colheita, como pode ser observado nos dois depoimentos:

[...] a gente planta, a gente colhe, não é com química nenhuma. Se tivesse uma oportunidade eu ia te amostrar meus pés de feijão é... do sul que eu plantei. Tem um feijão de outra qualidade, já tá tudo madurando, eu tô sem tempo de colher. [...] Minha juventude tudo foi na roça, carregando paneiro de mandioca nas costa [...] eu parei de trabalhar na roça em 90 [ano de 1990]. [...] Em 94 [ano de 1994] eu me aposentei, aí não trabalhei mais porque eu comecei um problema na coluna, aí eu fui fazer um exame e o médico me proibiu de carregar peso, aí eu tenho duas hérnias de disco nas costas, não posso mais carregar peso (ENTREVISTADA, agosto, 2016).

[...] a gente trabalhava na agricultura né [ela e o esposo], sempre a gente criou nossos filhos trabalhando, fazer quinem meu marido, na roça mesmo! No duro! Eu ia pra roça [...] Eu consegui minha aposentadoria como agricultora [...] (ENTREVISTADA, agosto, 2016).

Estas mulheres se auto-reconhecem como agricultoras e, embora a agricultura esteja intimamente ligada à terra, na comunidade a fertilidade do solo é atribuída à conjunção com a água, como está indicado na narrativa de uma entrevistada:

“[...] tudo que você planta aqui nessa terra aqui dá, negócio de verdura, só se você quiser plantar, então um significado muito bom pra nós, quem é beradeiro né, que mora aqui no interior. Você planta maxixe dá, você planta tomate dá, tudo que você planta dá e, nós ir pra dentro de uma terra firme você não vai ter esse privilégio né, que é diferente a terra lá [...] (ENTREVISTADA, agosto, 2016).

A prática da agricultura também está de certo modo ligada aos ambientes aquáticos que circundam a comunidade, visto que é atribuída a estes a responsabilidade de fecundação do solo, favorecendo a produção de culturas agrícolas.

Bachelard (2013), em suas reflexões sobre a água apresenta-a como um elemento maternal, marcando-a com um cunho profundamente feminino, visto que esta fornece um alimento completo, um leite prodigioso. Este autor argumenta que “[...] a terra prepara em suas matrizes um alimento tépido e fecundo [...]” (BACHELARD, 2013, p. 124), assim esse elemento que nasce na terra, a ela permanece vinculado em uma combinação que encontra no princípio eminentemente nutritivo o seu pretexto realista.

Os corpos d’água que cercam Nazaré se apresentam como elemento de garantia e limitação, na medida em que, durante o período da cheia, invadem o espaço das plantações, mas mantém a vida da gente ribeirinha, pois intumescem o solo de nutrientes, assim como uma mãe alimenta seu filho, sendo fundamental para o desenvolvimento da agricultura e, concomitante para a sobrevivência das famílias.

Faz-se importante observar que as áreas de várzea em Nazaré, as “terras molhadas”, encharcadas pela água maternal, são utilizadas para produção de melancia, pois segundo os(as) moradores(as) da comunidade, essa cultura necessita de irrigação e, como estão em um ambiente privilegiado pela abundância de água, utilizam estes espaços para a produção.

Diante dos relatos das mulheres foi possível verificar que estas se identificam como agricultoras e esse auto-reconhecimento, como apresentado por Maura Penna, se dá pela relação concreta que é construída em sua ligação com o solo e, de forma indireta com o rio Madeira e com os córregos que circundam a comunidade, enquanto elementos responsáveis pela fertilização do terreno.

De acordo com Cruz (2007), o auto-reconhecimento do indivíduo diz respeito à consciência de pertencimento que é construída a partir de práticas e representações espaciais que envolvem tanto o domínio funcional sobre um espaço específico, quanto à apropriação expressiva deste, sendo esta ligada a afetividades. O modo de vida que está intrinsecamente relacionado às questões culturais de um corpo social, trazendo como implicação a manifestação de elementos identitários associados ao espaço e àquilo que o compõem, neste caso específico os corpos d’água.

Ainda associada à conexão com este espaço cercado por água, identifiquei que as mulheres entrevistadas consideram-se ribeirinhas e este fato relaciona-se diretamente ao lugar em que vivem, pois das quatro entrevistadas, três afirmaram que não conseguem se imaginar vivendo em local distante do rio.

A minha compreensão da categoria ribeirinho(a) está baseada no conceito elaborado por Silva (2000), que afirma que a cosmovisão destes indivíduos é marcada pela presença das águas, não apenas como elemento da paisagem, mas como algo que caracteriza o modo de viver e ser destas pessoas.

Cruz (2006), afirma que a particularidade da identidade ribeirinha está na ligação da terra com o elemento água, construindo o que ele denomina de “territorialidade anfíbia”. Neste sentido, Therezinha Fraxe (2000), ao estudar os(as) camponeses(as) que vivem em comunidades as margens do rio Solimões-Amazonas, propõe o termo “homem anfíbio” para definir as populações que além da terra, utilizam a água como fundamental meio de produção para o sustento familiar. Muito embora parte do território de Nazaré não esteja em área de várzea, como é o caso das comunidades estudadas pela autora, a água também é considerada elemento fundamental para a subsistência das famílias.

Apesar de, como ora abordado, os corpos d’água que circundam a comunidade serem importantes para o viver dos(as) ribeirinhos(as) e, no caso específico deste estudo para as mulheres, o rio Madeira é o referencial e o diferencial que organiza o espaço de Nazaré, sendo a marca de múltiplas vivências que se manifestam na espacialidade vivida neste interstício água-terra. A identidade das mulheres, no entanto, interage com esta dinâmica, de forma que o identificar-se como ribeirinha está para além do habitar em “terra firme”, mas evoca o sentido da água enquanto agente mediador dos saberes e fazeres, bem como da sociabilidade cotidiana.

Para Leandro Tocantins (1973, p. 280), o ser humano “[...] são os dois mais ativos agentes da Geografia Humana da Amazônia. O rio enchendo a vida [...] de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na vida regional”. Ressalta-se que o autor faz uma afirmação um tanto quanto generalista, mas compreendo que o rio apresenta essa importância, retratada por ele, principalmente para as comunidades ribeirinhas, que têm sua espacialidade organizada por este elemento natural e dele necessita para sobreviver.

Diante desta compreensão, é possível afirmar que tanto as águas do rio Madeira, dos córregos Cura Ressaca e Boca do Furo e do lago do Peixe Boi, são fontes de referência identitária para as mulheres de Nazaré, estando nas bases que fundamentam a criação de elementos que caracterizam o ser/estar no espaço. O ser dona de casa, pescadora, agricultora e ribeirinha as situam neste espaço que ao mesmo tempo em que é fixo está em movimento, como afirma Dardel (2015, p. 20), “[...] o riacho ou rio, ele corre, ele coloca em movimento o espaço”.

No entanto, as múltiplas identidades das mulheres da comunidade estudada se imbricam nesta trama de vínculos e práticas espaciais que representam uma relação dialética com os corpos d’água que circundam Nazaré, que ora se apresenta no campo funcional, materializado como útil para o viver cotidiano da “dona de casa” e, ora é referenciado no aspecto subjetivo ligado à cultura, ou seja, a manifestação do ser – pescadora, agricultora e ribeirinha.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na busca por identificar e analisar as relações culturais e identitárias das mulheres da comunidade de Nazaré-RO com o rio Madeira, me lancei neste vasto universo de águas amazônicas a fim de averiguar questões que me inquietavam e ao mesmo tempo traziam-me entusiasmo, impulsionando-me nesta caminhada junto às mulheres de Nazaré.

No decorrer das nove atividades de campo experienciei momentos de intenso aprendizado, tanto no que tange às questões levantadas para a discussão nesta pesquisa, quanto sobre a vida e sobre o ser mulher em uma comunidade ribeirinha amazônica. As observações, os encontros, os diálogos, os momentos em que apenas escutei e registrei as histórias relatadas, proporcionaram a reflexão sobre um viver experimentado nas práticas cotidianas.

No desenvolvimento deste estudo parti da hipótese de que o espaço é socialmente generificado, de forma que as mulheres ribeirinhas amazônicas, particularmente da comunidade de Nazaré, situada às margens do Rio Madeira, em Porto Velho, constituem uma identidade própria que diferem fundamentalmente do universo masculino, ou seja, mulheres e rio configuram uma espacialidade diferenciada.

Deste modo, diante das observações e dos relatos das interlocutoras foi possível identificar que não somente o rio Madeira, mas também os demais corpos d’água que delimitam territorialmente a comunidade, o córrego Boca do furo, bem como o Cura Ressaca e o lago do Peixe Boi, são importantes na constituição identitária das mulheres de Nazaré. O elemento água é que se configura como essencial para a vida das ribeirinhas.

Como pôde ser observado nas discussões realizadas, a água está intimamente ligada aos afazeres domésticos que são responsabilidade das mulheres, de modo que a este papel social está atrelado a identidade de “dona de casa”, uma identidade culturalmente instituída porque diz respeito a uma prática comum a um grupo, neste caso específico, ao agrupamento de mulheres que vivem na comunidade.

O trabalho doméstico como sendo de exclusiva responsabilidade delas, reflete a dominação masculina que permanece forte nas comunidades ribeirinhas, espaço este carregado de princípios culturais que são ditados a partir da lógica patriarcal que se apoia em um sistema hierárquico de relações entre homens e mulheres.

Essas mulheres também se identificam como agricultoras e, muito embora a agricultura esteja ligada diretamente à terra, foi constatado, diante de relatos, que esta prática também possui ligação com o ambiente aquático que circunda a comunidade, uma vez que foi atribuída a estes a responsabilidade pela fertilização do solo, remetendo a função da água como um elemento maternal, um líquido que alimenta.

Desta forma, o ser agricultora, enquanto característica identitária, está intimamente atrelado ao pertencimento destas mulheres a um lugar em que é possível produzir, dada a proximidade da água como um elemento que fecunda a terra.

Este espaço cercado por estes corpos d’água confere especificamente duas características particulares à identidade destas mulheres, diferenciando-as daquelas que habitam a “terra firme”: o ser pescadora e o ser ribeirinha. A primeira delas está relacionada a uma prática voltada ao lazer e ao fortalecimento dos vínculos de companheirismo entre as mulheres, bem como a subsistência familiar, sendo este último o fator de maior influência para que estas se reconheçam como pescadoras.

O fato de se auto-reconhecerem enquanto pescadoras está relacionado às práticas sociais que são compartilhadas por esse grupo. O “ser pescadora” está ligado a duas classificações de identidade: a vivida, por retratar uma prática cotidiana, e a cultural, que se apresenta pelo reconhecimento do papel das mulheres ribeirinhas em relação à reprodução no âmbito familiar – subsistência.

O “ser ribeirinha”, embora pareça óbvio, se apresenta como relevante, na medida em que estas mulheres poderiam ter se identificado, por exemplo, como mulheres rurais, mas em nenhuma das falas foi constatado, pois o rio Madeira, enquanto elemento de identificação espacial é muito presente na configuração da comunidade.

O rio marca as múltiplas vivências que se manifestam na espacialidade vivida neste interstício água-terra, de modo que a identidade destas mulheres interage com essa dinâmica e evoca a água como agente mediador tanto dos saberes e fazeres como da sociabilidade cotidiana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

[1] Essas informações foram de suma relevância para a construção do segundo tópico desse artigo.


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