Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Do Sertão aos Seringais: história de vida de um seringueiro amazônico, a Família Sussuarana
Revista Presença Geográfica, vol. 08, núm. 03, 2021
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 08, núm. 03, 2021

Resumo: Este trabalho tem como proposta apresentar a história de vida de um seringueiro amazônico que, como tantos, viveu os desafios e as mazelas impostas pelas secas do nordeste e as dificuldades do trabalho na floresta, iniciado no século XVIII. Trata-se do Seu Chico, Francisco Alves Sussuarana, de nome popular e sobrenome exótico cuja origem envolve narrativas que incidem em variações sincrônicas e diacrônicas, alimentando o imaginário de seus descendentes.

Francisco Alves Sussuarana não foi herói nacional, muito menos, internacional, mas deixou um legado que mexeu com o pensamento coletivo de sua geração, mesmo após o centenário de seu nascimento (1909-1978). O valor desta pesquisa se encontra justamente no resgate da história/memória do pesquisado; construída por meio das narrativas de classes sociais composta de pessoas invisibilizadas, pelas narrativas históricas oficiais,

que por ser uma pessoa humilde, não possui registros que pudessem facilitar os achados para subsídio deste trabalho. Contudo, a pesquisa seguiu percorrendo cominhos investigatórios exíguos e áridos, ao longo de dez anos, até que ganhasse corpo.

A motivação deste estudo, se encontra na vontade de materializar em registro literário a história da família Sussuarana que, diante de tantos processos migratórios desafiadores, acabaram por perder algumas pistas que pudessem desvendar a trajetória deste seringueiro.

Para isso, usamos a pesquisa bibliográfica para contextualização historiográfica e o método da história oral, no que tange a linha de abordagem de Meihy (2018) que prima pela abrangência de pesquisados que sejam depositárias das tradições. Ainda sob a luz da oralista Bosi (1994), que afirma que o passado conserva-se vivo e é expressado de forma automática na ação das pessoas; é o que ela chama de história hábito mas que também, por outro lado, podem ocorrer isoladamente, independente de ação ou hábito; são memórias singulares, autênticas, “verdadeira ressurreição do passado”, (BOSSI, 1994, p. 5).

Este artigo corrobora com a abordagem teórica de Meihy e Bosi que destacam a importância das pesquisas das histórias locais, em confronto das histórias “oficiais”; enfatizam o valor das micro-histórias em contraponto às histórias “verdades” de “heróis”.

Tínhamos tudo para sucumbir às explicações míticas, mas fomos desideratas, persistentes e resilientes; com apenas dois instrumentos à favor, a peculiaridade do sobrenome do pesquisado e o espírito investigativo, encampou-se uma década de estudos que suscitou resultados inéditos, reveladores e surpreendentes.

Palavras-chave: AMAZÔNIA, NORDESTINO, SERINGUEIRO.

Abstract: This work proposes to present the life story of an amazonian rubber tapper who, like so many, lived through the challenges and ailments imposed by the droughts in the northeast and the work’s difficulties in the forest, which began in the 18th century. It's about of Mr Chico, Francisco Alves Sussuarana, with a popular name and an exotic surname whose origin involves narratives that focus on synchronic and diachronic variations, feeding the imagination of his descendants. Francisco Alves Sussuarana wasn’t a national hero, much less an international one, but he left a legacy that stirred the collective thinking of his generation, even after the centenary of his birth (1909-1978). The value of this research is found precisely in the rescue of the researched's history/memory; constructed through the narratives of social classes composed of invisible people, by the official historical narratives, who, being a humble person, do not have records that could facilitate the findings to subsidize this work. However, the research continued along meagre and arid investigative paths, over ten years, until it gained substance. The motivation for this study is found in the desire to materialize in a literary record the history of the Sussuarana family that, in the face of so many challenging migratory processes, ended up losing some clues that could unveil the trajectory of this rubber tapper. For this, we use bibliographical research for historiographical contextualization and the method of “Oral History” Meihy (2018), which stands out for the breadth of researched who are depositaries of traditions. Still in the light of oralist Bosi (1994), who states that the past is kept alive and is expressed automatically in people's actions; it is what she calls the habit history but which also, on the other hand, can occur in isolation, independent of action or habit; they are unique, authentic memories, “a true resurrection of the past” (BOSSI, 1994). This article corroborates the theoretical approach of Meihy and Bosi who highlight the importance of research on local histories, in comparison with “official” histories; emphasize the value of micro-stories as opposed to the “true” stories of “heroes”. We had everything to succumb to mythical explanations, but we were desiderata, persistent and resilient; with only two instruments in its favor, the peculiarity of the researched's surname and the investigative spirit, a decade of studies was undertaken that raised unprecedented, revealing and surprising results.

Keywords: Amazon, Northeastern, Rubber tapper.

INTRODUÇÃO

O povoamento da Amazônia por não indígenas iniciou-se no século XVII com os bandeirantes europeus e grandes caravanas chanceladas pela Coroa Portuguesa. Contudo, foi no século XVIII que o processo de ocupação da Amazônia por não indígenas se intensificou, inicialmente com as missões de Portugal usando a catequese e depois, com os ciclos da borracha.

Entre os finais dos séculos XIX e início do século XX, houve um grande movimento migratório de entrada de nordestinos na Amazônia, fugidos das secas que assolavam suas criações e plantações, deixando lastro de fome e miséria. Além disso a supervalorização da borracha era crescente no mercado europeu e abundante na Amazônia, sobretudo nos afluentes do rio Madeira.

“[...] o surgimento do ciclo da borracha transformou-se em grande polo de atração para as populações rurais do Nordeste.” (NASCIMENTO SILVA, 2000, p. 48).

traídos pelo valor expressivo da borracha e fugidos das secas, passaram a enxergar a floresta como alternativa de sobrevivência. Este processo deu início ao hibridismo da população brasileira na floresta, para a exploração da borrada, o nordestino teria que conhecer os modos de vida dos povos originários: caça, pesca, plantas medicinais; práticas agrícolas em cada estação do ano... Conhecimento que só os que já experienciavam a floresta há mais de 40 mil anos, saberiam ensinar; a começar com a técnica de retirada da seiva da seringueira.

O ápice da extração da borracha perdurou até que as sementes que haviam sido contrabandeadas por europeus e semeadas na Ásia, onde as técnicas agrícolas da cultura foram melhor aceita. Pois antes disso foram feitos experimentos em vários lugares, como em países africanos, na Índia e China, em meados de 1871, amadurecessem. Estas sementes, após mais ou menos, três décadas já estavam produzindo o tão cobiçado leite viscoso, resultando em uma espécie de seringueira tão leitosa quanto as nativas da Amazônia.

Daí os clientes mais fortes do látex brasileiro, passam a comprar a matéria-prima produzida na Ásia por preços mais vantajosos. Isto porque a plantação das árvores, foram enfileiradas a poucos metros umas das outras em campo do tipo monocultura, agilizando a coleta e garantindo maior produção em menor tempo. Além disto, a espécie se adaptou muito bem ao clima e terra onde foram cultivadas. Este sistema de cultivo deixou o Brasil em desvantagens, já que as seringueiras da região amazônica eram nativas, por isso sem alinhamento e distante umas das outras.

Assim, em meados do século XX, mais precisamente, em 1912, quando a produção da Malásia excedeu em mais de dez vezes a produção da Amazônia, ocorreu uma expressiva queda no mercado da borracha brasileira e consequentemente um processo em cadeia de declínio dos seringais amazônicos, até a dissolução definitiva. Isto fez com que os ex-seringueiros assumissem um novo modo de vida na região amazônica.

Enquanto o declínio se consumava na Amazônia, surge na Europa e nos Estados Unidos uma nova demanda de matéria-prima de látex, importante para a fabricação de vários produtos como, pneus de carro, solas de sapato, correias, entre outros. Esse insumo serviu de base para alimentar as indústrias que cresciam vertiginosamente, era o “segundo ciclo da borracha” (1942-1945), revigorando-se.

As indústrias/empresas estadunidenses sedentas pela borracha, a elite seringalista desejando a retomada do poder econômico e, em outro palco, o nordestino castigado, rumam aos seringais da Amazônia. Atraídos pelo apelo patriótico que os sagrariam como soldados da borracha. Assim, inicia-se o “Segundo Ciclo da Borracha”, embora a palavra “ciclo” não faça sentido visto que o evento histórico não se repetiu, pelo menos, da mesma forma nem pelos mesmos motivos.

O Sertão de dentro (floresta) era terra estranha aos olhos do sertanejo; misteriosa, assombrava os “brabos” (apelido dado aos novatos, que não dominavam o ofício de extração do látex). Ao ter contato com a floresta amazônica, densa, exuberante e lendária, o nordestino validava as histórias ouvidas pelos conterrâneos mais experientes na vida em seringais amazônicos.

O discurso da história oficial nos leva a pensar que existia um projeto sendo executado com a finalidade de ocupar a Amazônia, explorar suas riquezas (principalmente o látex) para a ajuda de uma causa benigna, que seria fornecer matéria-prima para os industriais americanos para que estes, abastecessem o comércio europeu com seus produtos bélicos. Nesse sentido, o cumprimento do Tratado de Whashington seria uma benesse de via dupla; bom para os brasileiros de modo geral – visto que ofereceria trabalho digno para os desempregados do nordeste (principalmente) – e bom para os empresários estadunidenses que necessitavam da borracha para subsidiar a produção industrial de armas (principalmente).

Contudo, ao aprofundarmos leitura, descortinou-se um viés vultoso. Uma máquina de propaganda institucional onde desenhava a Amazônia como uma oportunidade imperdível. Lugar de natureza abundante. Discurso que superprojetou uma insignificante faceta do Tratado firmado com a elite governamental brasileira que pouco ou nada, sabiam da vida nas florestas do norte brasileiro. Além do mais, as vantagens, como foi endossado nos escritos, dos pesquisadores Jeferson Cidreira e Josué da Costa (2021), eram contabilizadas em forma de excessiva lucratividade, somente para os seringalistas.

Os pesquisadores apresentam uma realidade de exploração no trabalho bem como de esquema de recrutamento de trabalhadores, muito diferente do que as propagandas oficiais davam ciência em largo alcance. Cidreira e Josué da Costa, pontam a vinda de homens/mulheres para a Amazônia como forma de exílio forçado para pessoas com perfis indesejados para a política republicana de seus lugares de origem. A Amazônia seria o degredo, a pena e desterro. A Amazônia era um lugar temido e não um lugar escolhido.

O homem da Caatinga, ainda precisaria de forças para enfrentar desafios hercúleos. Milhares não resistiram à seca, à dura e longa viagem de navio do Ceará e de várias outros lugares de saída à Amazônia, muitas vezes sem se alimentar durante dias; porém, uma significativa porcentagem, sucumbira ao chegar no “paraíso”, vítimas das “águas” - afogamento, abatidos pelas doenças tropicais, como presas de emboscadas indígenas, como caça de animais selvagens, e ainda por cima, sacrificados em ciladas arquitetadas pelos patrões.

É nesse contexto sócio-histórico que Ezequiel Bravo Sussuarana, (1881-?) pisa em solo amazônico (1910). Órfão do pai, migrou com sua família acompanhado da mãe, cinco irmãos, dois cunhados e quatro sobrinhos. Vamos aqui nomeá-los: Ezequiel veio com a mãe Thereza Maria de Jesus (? – 1912), e seus irmãos: Joel, Izabel (filhos e marido), Samuel, Maria Bravo e marido, Ezequiel e Rachel.

Pois bem, Ezequiel Bravo Sussuarana é um nordestino dentre milhares que vieram para a Amazônia em busca de oportunidades. Para situar, Ezequiel Bravo Sussuarana era filho do cearense de Baturité, Antônio Ricardo Bravo Sussuarana Júnior (1829 – 1895), político influente, comerciante em Quixadá, que ao falecer, deixou Ezequiel menor de idade e seus cinco irmãos aos cuidados da viúva, Thereza Maria de Jesus.

A família Bravo Sussuarana aporta em Manaus aproximadamente em 1910. Tal fato constata-se nos anúncios de jornais. Há registros, neste ano, publicados nos “movimentos dos portos”, da presença de Thereza Maria de Jesus e seus dois filhos.

Seguindo as pistas de Ezequiel, constatamos que a família se instalou no estado do Acre pois foi anunciado uma nota de pesar, em jornal, na ocasião da morte de João Alves Feitosa, esposo de Maria Bravo Feitosa, irmã de Ezequiel.

No dia 6 do corrente às 20 ½ horas faleceu no Seringal Pirapora, Acre boliviano, victimado por impaludismo chronico, o Sr. João Alves Feitoza, com 34 annos de idade, natural do Crato, Ceará, casado com D. Maria Bravo Feitosa, não tendo deixado filhos. O seu cadáver foi enterrado no Cemitério de “Porto Bravo”, margem brasileira, em frente a “Santa Cruz.”

A sua inconsolável viúva, bem como aos dignos cunhados, nossos amigos srs. Joel, Samuel, Ezequiel e D. D. Izabel e Rachel Bravo Sussuarana enviamos nossas condolescencias. (Jornal Commercio do Acre, julho de 1916).

A família Bravo Sussuarana, como a maioria dos migrantes da Amazônia, teve que se dividir. Cada um agarrando o fio de oportunidade que surgia, afinal eram antes de tudo, sobreviventes. Uns foram para o Amazonas, outro para o Pará. Ezequiel e a irmã Izabel permaneceram no Acre.

Ezequiel, em sua estada nos seringais do Acre, juntamente com sua esposa, Ana Maria Alves, tiveram seis filhos: Mozart, Arthur, Maria Silveira, Raimundo, Raimunda e Francisco. A partir daqui faremos um recorte para nos debruçarmos nas memórias de apenas um dos filhos, Francisco Alves Sussuarana, pois este, é ascendente direto da família que se estabeleceu em Rondônia, nosso foco principal.

FRANCISCO ALVES SUSSUARANA (1909 - 1978)

Em 1943 a 1945, uma segunda leva de nordestinos chega à Amazônia. No ensejo, veio a necessidade de matéria-prima para alimentar a indústria bélica dos Estados Unidos que estavam apoiando os aliados na II Guerra, desta vez, incentivada pelo Governo Federal em ocasião do Acordo de Washington.

A Amazônia era muito rica neste insumo pois a seringueira, de onde se extrai o látex, é parte da flora nativa Amazônica. Os seringais ficavam às margens do rios Madeira, Jaci-Paraná, Abunã, Juruá, Purus, Tapajós, Guaporé, Jamari e etc, o que imprimia valor a estas colocações, pela facilidade de escoar a produção, já que a mata densa inviabilizava o transporte das pelas de borracha.

Francisco, desde pequeno acompanhava o pai Ezequiel na extração da borracha, assim, absorveu todo aprendizado de técnicas de exploração do ouro branco (látex).

Francisco, no labor diário, tinha como consolo e passatempo, as histórias que o pai contava, era saudosista do sertão nordestino. Chico (Francisco), aprendeu tudo o que precisava para viver na selva com o pai. Ali não havia escola formal, suas aulas eram, entre uma seringueira e outra, nas madrugadas ao golpear o caule das hevea brasiliensis, até sangrar o leite do látex que os norte-americanos pagaram tão caro ao Governo Brasileiro.

O resultado de horas de trabalho e histórias, lhe rendeu muita sapiência; Chico tinha conhecimento de nome e cultura de lugares cearenses que nunca houvera pisado, saberes que interiorizou em cada detalhe pelas narrativas de seu pai, e da mesma forma, repassou para os filhos pela tradição oral.

Francisco casou, aproximadamente, em 1938 com a jovem acreana Guiomar Lopes Maciel. Foram morar na colocação chamada Quixadá. Abaixo, abriremos um parêntese para falar da vida da esposa do nosso protagonista.

GUIOMAR LOPES SUSSUARANA (1917 - 2014)

Guiomar passou a se chamar Guiomar Lopes Sussuarana após o casamento, tiveram quatorze filhos: Francisco de Assis, Antônio, Maria, Antônia, Ezequiel, Pedro, Guimar, Gilberto, Marilza, Mirian, Antônia Isabel, José Arlindo e Antônio Lázaro.

Agora pai de uma numerosa família, Chico embrenhou-se de vez no trabalho de extração do leite da seringueira. Segundo explica, Pedro Lopes Sussuarana, o sexto dos quatorze filhos: o trabalho na colocação de nome Açaizal, para onde haviam mudado, funcionava tecnicamente assim:

“O trabalho era feito em dois turnos, o primeiro grupo era composto pelos filhos: Antônio, Francisco de Assis e o Francisco (pai). Saiam de madrugada para riscar o caule das seringueiras e engatar as tigelas. Depois do almoço o segundo grupo: Pedro e Ezequiel (filho), voltavam para buscar as tigelas com o leite.”

O trabalho era pesado e lento, pois nessa técnica de extração artesanal, as seringueiras liberam o leite lentamente pelas veias abertas em seu caule, e se chovesse, o dia estaria perdido, como se dizia, nos seringais do Acre “a chuva beberia o leite”. (COSTA, 2014, p. 8).

Mesmo submetido ao regime de dependência financeira do dono do seringal, Chico, como a maioria dos nordestinos, tinha a habilidade de sorrir das mazelas que sufocavam a vida sofrida dos arigós (migrantes sertanejos). Além disso, era um exímio humorista, repentista e adorava prosear. Suas histórias preferidas ainda emergem na memória familiar: “cobra grande” “mãe d’água”, “boto”, “curupira” e sobre às assombrações da “pai da mata”.

Chico, apesar da rigidez do ofício, era leve. Nada era capaz de destruir seu jeito manso de ser. Tranquilo e sereno, ensinou aos filhos a rotina dura do seringueiro de forma “lúdica”. As crianças amavam acompanhar o pai nas picadas e ouvir suas narrativas míticas, históricas de encantamentos, que ele dava um tom mágico, aguçando ainda mais a imaginação dos pequenos seringueiros. À noite, apesar de cansado, reunia os filhos numa grande sala, sentados em bancos, para ouvir suas histórias. Até hoje suas narrativas são recontadas em reuniões familiares, por filhos e netos, que um dia foram fascinados pelo “encanto do Chico”.

Voltando a traçar o perfil da esposa de Chico, D. Guiomar. A verdade é que, a personalidade forte, as várias atividades e a vida difícil nos seringais, não lhes apagou o sonho de ver os filhos com estudo. Por isso, relutante com as limitações impostas pela vida nas colocações e, inconformada com a violência aplicada aos seringueiros, pelos patrões, persuadiu Seu Chico a abandonar os seringais, em busca de oferecer melhor qualidade de vida aos seus filhos. Pedro que testemunhou a recorrente fala da mãe, quando criança, dizendo à Chico,

“Chico, eu vou levar meus filhos pra estudar porque não vou criar meus filhos aqui no seringal.”

Neste excerto, percebe-se que o misto de insatisfação com a vida de seringueiro e a vontade de oferecer escola aos filhos, rondam a órbita existencial de Guiomar; motivos que a fez enfrentar os riscos de fuga dos limites das colocações, com os filhos menores, em busca de uma vida melhor na cidade.

Guiomar seguia o perfil das nortistas do seringal, tinha traços de personalidade firme, espírito de líder e alma inquieta; o que a fez fugir da vida difícil e injusta que o trabalho no seringal impunha. Mulher de fibra, ativa em trabalhos importantes junto ao esposo e filhos. Contudo, sua atuação não se limitava ao ambiente doméstico; ela era coletora, quituteira e disciplinadora. Quem foi criado por ela, incluindo os netos, testemunham seu pulso firme na educação.

Estes seringueiros viviam num regime de trabalho exaustivo, sem garantias de direitos trabalhistas e num ciclo de dependência dos patrões, visto que o seu trabalho, segundo as regras circundante nos seringais, eram pagos, muitas das vezes, com mercadorias que poderiam ser compradas de modo “fiado” nos barracões. Assim o seringueiro virou um cliente cativo do patrão (seringalista), pois ao final de tanto trabalho, raramente, lhe restava crédito. O estabelecimento deste sistema de troca, resultava sempre em dívida para uma parte (seringueiro) e lucro para outra (seringalista), culminando numa relação de sujeição, do trabalhador ao seu patrão.

O modo de relação econômica imposto por este sistema, era composto por dois autores: o seringalista, que era dono do seringal e da produção nos domínios de sua colocação. Este também era dono do barracão, espécie de venda que oferecia os artigos para a subsistência das famílias que compunha a pequena comunidade no seringal. Já o seringueiro, geralmente nordestino, era o trabalhador empobrecido e atraído aos seringais via marketing poderoso aplicado pelo governo brasileiro com promessas fabulosas que se distanciava, e muito, da realidade.

O seringalista além de consolidar as regras neste modelo de capitalismo amazônico, também difundia como uma das formas de controle, a ideologia condenatória. No caso de fuga ou desvio de produção, tinha a garantia da presença do Estado, assim confirma a tese de doutorado, de (COSTA, 2014, p. 163) que mostra um inquérito policial investido contra Seu Francisco Sussuarana e os dois cunhados (Valdemar Lopes e Raimundo Lopes) aberto na Comarca de Xapuri em 1944. O inquérito inicia com acusação, por parte dos seringalistas, de que a produção das pélas haviam sido misturadas à gravetos e terra para burlar a pesagem, conforme a citação, que mostra a parte em que Francisco se defende das acusações, no seringal Primavera.

[...] não foi o autôr de botar barro na borracha e tão pouco aconcelhado por algum a tal; que este ano fabricou seis peles de borracha na sua colocação e delas nenhuma reclamação recebeu dos patrões; que efetivamente a sua borracha fabricada não tem marca, mais a culpa é dos patrões que as nunca lhe deram, talves por conveniência, pois compram borracha do lado de Bolivia e passam para o Brasil, sendo essa borracha botada com a do fabrico da margem brasileira em um só depósito; que nunca vendeu borracha a José Marques Peixada, tendo porem uma vês tentado a isso fazer, porem José Marques não quiz comprar por ter José Antonio de Almeida o aconselhado a não fazer tal; que é devedor dos senhores Alves e Companhia e que na conta corrente por eles fornecida, demonstra um debito de dois contos tresentos e vinte e dois cruzeiros e cincoenta centavos, faltando o credito de cento e onze quilos de borracha, quatrocentos cruzeiros de abatimento da conta do ano passado, cincoenta mil reis de um tabaco que não comprou e lhe esta debitado e outras mais reclamações que tem a fazer [...]. (apud COSTA, Francisco Pereira, p 167)

Se as políticas públicas aplicadas nas circunscrições dos seringais não assistiam os extratores, sabemos que oferecia sua estrutura de gestão em favor dos interesses dos patrões para que fosse garantida as regras econômicas existentes. Para se ter ideia, neste inquérito, as testemunhas de acusação de Chico e seus cunhados, arroladas no processo, eram os próprios funcionários subordinados diretamente aos seringalistas acusadores.

[...] requeiro o arquivamento do processo. Xapuri, 25 de janeiro de 1945 [...] (apud CARLOS, 2014, p. 170).

Chico, de manso, revelou-se em ousadia, além de se defender, denunciou seus acusadores. Pontuando cargas sem selos, cobranças debitadas indevidamente nas cadernetas dos barracões, de compras que ele disse, nunca ter feito. Diante das intimidações e coações Chico consegue argumentar sua defesa e o processo é arquivado.

Como o seringueiro chegou empobrecido, foi alocado em um trabalho miserável. Nunca conseguiu reservas orçamentárias para as de mantimentos de sua família. Então, comprava fiado no barracão que oferecia as mercadorias a preços exorbitantes, assim, o trabalhador sempre ficava endividado já que era proibido sair do seringal em busca de melhores preços. Também eram proibidos de adquirir produtos do comércio praticado por meio dos batelões, embarcações de venda ambulante desvinculadas dos seringalistas.

Ainda, de acordo com Pedro, esses seringalistas possuíam jagunços que vigiavam o largo do seringal; caso alguém fosse flagrado em fuga, eram expulsos das colocações e confiscados seus bens. Poderiam ainda, ser assassinados ou surrados, na melhor das hipóteses. Inclusive, Chico, já havia sofrido uma destas punições, foram expulsos do Seringal, a beira do rio Toamano, e perderam todos os seus bens, porque foram flagrados comprando produtos de um batelão.

Quando expulsos, na saída da colônia, passaram pela floresta, seguindo varadouros e abrindo picadas, passando por rios, enfrentando fome e mosquitos. Amarraram os poucos pertences em trouxas de roupas e seguiram, o pai e o irmão mais velho, iam pelas margens do rio, numa espécie de balsa de toras de madeiras, levando as trouxas de panelas e roupas. Guiomar seguia com os dez filhos pelos varadouros, acompanhada pelo olhar do marido. Caminharam uns dois dias pela mata, pousaram na casa de um desconhecido que encontraram pelo caminho.

Contudo Chico não ficou por muito tempo desocupado, logo se instalou em outra colocação pois a mão-de-obra do extrator de látex era muito importante no período para os seringalistas, e se estabeleceram, desta vez, no seringal Açaizal.

Guiomar tinha uma visão dimensional do perigo que corria, mas nem isso lhe paralisou. Tinha certeza que a cidade ofereceria a seus filhos melhores oportunidades que, ela e Francisco tiveram. Sempre que podia voltava a convencer seu marido.

Chico, cansado de ouvir as queixas da mulher, cede às suas investidas. Então, a família segue de mudança para a cidade de Brasiléia-AC. Ao, finalmente, chegarem em Brasileia, Pedro relata:

Aí chegamos em Brasileia, mamãe botou a “cabroeira” (crianças) para tirar cana da beira do rio e fizemos uma cerca de 20 por 50 mts e ela fez uma horta. Dessa horta nós vendíamos todo dia para tirar o pão de cada dia.

Guiomar, sabia que o sacrifício seria grande, mas nada era páreo para impedir a força de uma mãe determinada em vislumbrar uma qualidade de vida melhor para seus filhos. As crianças agora se dividiam entre atividades escolares e vendas, pelas ruas de Brasileia, com bacia de hortaliças na cabeça, para garantir o pão de cada dia, como diz Pedro. O pai, Chico, e os dois filhos mais velhos permaneceram trabalhando no seringal.

Moraram por dois anos em Brasileia. Guiomar ouviu falar em uma cidade que se mostrava promissora economicamente, Guajará Mirim. O tempo passou, mas a motivação de Guiomar, para uma mudança de vida, só aumentava. Aproximadamente em 1957, a mesma habilidade empírica de retórica vinda do âmago de sua alma, que convenceu Chico a deixar a vida “garantida” do seringal, a levou à nova investida.

Antes disso, conseguiu planejar e economizar dinheiro das vendas de hortaliças para chegar ao destino. Procurou o consulado boliviano para prestar ajuda ao seu plano. Ela e os filhos vão de avião da força aérea boliviana até a cidade de Riberalta, onde seguem de pau-de-arara até a fronteira Bolívia/Brasil. Depois, cruzam o rio Mamoré de catraia até o município brasileiro de Guajará-Mirim.

Em Guajará-Mirim, mais uma triste surpresa. Não conseguiram os empregos anunciados à Guiomar. Foram morar em uma casa com 2m de altura, chão batido e coberto de palha. A família de sobreviventes encontra mais um obstáculo. Mas nada abala Chico, que junta forças para o recomeço em Guajará-Mirim. Chefe de uma família unida de crianças que, desde cedo aprenderam o valor do trabalho, unem forças e recomeçam com muito entusiasmo.

Guiomar fazia mingau para que as crianças vendessem pelas ruas. No contraturno, frequentavam a escola. Chico não era mais seringueiro, contudo, continuou com o duro trabalho no “mato”; agora, retirava lenhas na floresta para atender as necessidades da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.

SUSSUARANA EM PORTO VELHO

As antenas de D. Guiomar continuavam atentas às notícias, como um imã, era sempre a ela que chegavam as informações sem detalhamento. Esses mal traçados anúncios, por fontes, aleatórias atingiam e mexiam com o que ela acreditava ser “mudança de vida”, “oportunidade”. Foi assim que em 1958, a família segue para Porto Velho, movidos por uma promessa de emprego oferecida à D. Guiomar. Ao chegarem em Porto Velho, e antes que pudessem se instalar, passaram necessidades.

Quando ainda estavam em Guajará-Mirim, conseguiram contato com uma figura social muito conhecida, Alzira, amiga de Marise Castiel, que sensibilizada com a situação da família, ofereceu um emprego para D. Guiomar em Porto Velho.

Chegando a Porto Velho, Guiomar iniciou trabalhando na escola Getúlio Vargas como auxiliar de Portaria. Sr Francisco retornou aos trabalhos nos seringais do Senhor João Leal e Samuel Castiel, depois foi trabalhar na fazenda do Cláudio Maia como encarregado do trabalho de tirar lenha.

Os filhos mais velhos constituíram numerosa família em Porto Velho; os mais novos acompanharam Guiomar em mais uma viagem em busca do sonho, agora para Campo Grande e depois para Goiânia.

Chico acompanhou a esposa até Goiânia, de lá, não deu mais. Sua identidade arraigada na cultura amazônica foi afrontada, subjulgada. Viu seus filhos sofrerem preconceitos, passou frio. Além do mais, perdeu sua existência social, naquele lugar os “bons dias” eram secos (conta Marilza, a oitava filha do casal). “Ele reclamava da frieza com que as pessoas respondiam aos seus calorosos cumprimentos.” Suas prosas não provocaram os mesmos efeitos de sentidos nas pessoas de lá, como acontecia com sua audiência cabocla na amazônica. Como colocar em atividade suas habilidades de parteiro, rezador, violeiro numa comunidade que tinha suas próprias formas de lazer, tinha maternidades e não sofriam com “quebranto”, “mau olhado” e “espinhela caída”? É com a incursão na Geografia Humana que podemos refletir melhor sobre Chico.

Por mais originais que sejam os desenvolvimentos contemporâneos, não poderiam ser compreendidos sem uma reflexão geral sobre a transmissão de geração a geração das aquisições técnicas e das concepções do mundo. As singularidades de nossa época não são absolutas: inscrevem-se na história complexa das relações entre espaço e sistemas estruturados de informações (CLAVAL, 1999, p. 421).

O filho de Arigó, ex-seringueiro, sentiu falta do leite de castanha, açaí, araçá. Chico, não arriscaria suas composições de repentista àquelas pessoas, muito menos, contar seus “causos” de caçadas e embates com as divindades das matas. A cada metro de distância, Chico se aproximava mais de suas lembranças na região amazônica. Ele saiu da mata, mas floresta continuava nele. Atitudes que justamente a nova geografia se ocupa, estudar o homem como ser global, considerando seus saberes e valores.

Sua ambição é compreender o mundo tal qual os homens o vivem: ela fala da sensibilidade de uns e de outros, das paisagens que eles modelaram, dos patrimônios aos quais estão vinculados, dos enraizamentos ressentidos; ela descreve ao mesmo tempo a mobilidade crescente dos indivíduos, a confrontação das culturas, as reações de retorno que ela provoca, regionalismos, nacionalismos ou fundamentalismos, mas ela destaca também a exploração dos multiculturalismos e a fecundidade dos contatos renovados (CLAVAL, 2010, p. 379).

Inconformado, Chico volta para Porto Velho junto dos filhos mais velhos. Guiomar seguiu em Goiás onde se estabeleceu na década de 1970. A sonhadora e fausta matriarca, faleceu em Goiânia aos 97 anos de idade em 2014.

Seu Chico continuou em Porto Velho, montou uma banca para venda de produtos alimentícios da região, trabalho que se ocupou até o final da vida, falecido aos 69 anos em 1978.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo é o embrião do que se propõe sobre as pesquisas da família Sussuarana. Ela não é o resultado e sim a consagração do início de uma busca científica, portanto, com este trabalho, inauguramos as formalidades da pesquisa que pretende alcançar uma produção literária.

Conforme investigação, ao longo de dez anos, as pesquisadoras seguiram obstinadamente pistas remotas que a levaram ao epicentro de eventos históricos ligados como um amálgama à história dos Sussuarana, isso foi fagulha que clareou nossa busca pelas pegadas dos ancestrais investigados, movida pela vontade do resgate das suas memórias.

A pesquisa foi resultado de longas horas, varando madrugadas, se debruçando em buscas, rodas de conversas, diálogos, chegando finalmente a contextualizar um estudo que partiu da história geral para a história regional e depois história particular, para desvendar as memórias de Chico, o soldado da borracha.

É fato que junto com o nosso objeto de investigação, suscitou-se a necessidade de hiperlinks das histórias do Brasil e da história regional da Amazônia. As histórias que a história “oficial” não relata e essas narrativas se entrecruzam e até mesmo redefinem, as narrativas dominantes. E como consequência, desvendou-se outras linhas de pesquisa de grande importância para as ciências sociais, como o aparente protagonismo de Guiomar, que nos provocou a navegar sobre a história dos “invisíveis”, o estudo de gênero.

As narrativas desvendam a seringueira Guiomar como sujeito ativo na relação familiar, de papel fundamental nas mudanças ocorridas dentre os Sussuaranas. Uma verdadeira mentora, combativa, que criou engenhosidades e estratégias não só para livrá-los do sofrimento mas para libertá-los da ignorância. Ela ansiava escola para os filhos, coisa que ela mesmo não teve.

Ela perseguia a liberdade no sentido mais profundo da palavra, liberdade das injustiças e da mente. Guiomar não queria distância do “mato”, queria proximidade com o “conhecimento”. Para isso, pagou o preço, que os proativos e corajosos pagam, sentiu e viu a fome (nos filhos), a saudade da família, as incertezas de futuro, as ansiedades sobre o encontro com respostas que a angustiaram no seringal. Por fim, a distância do seu marido, Chico, que até a sua morte, dizia que era único amor.

Esta pesquisa não foi dissecada, muitas perguntas ainda a movem, porém, com este texto embrionário do que imaginamos do conteúdo final, já podemos ter a grata satisfação de lhes apresentar as andanças dos ascendentes Sussuarana do núcleo amazônico, do Sertão ao Seringal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembrança de Velhos. 2. ed., São Paulo: T.A. Queiroz, 1994.

COSTA, Francisco Pereira. Para a chuva não beber o leite. Soldados da borracha: imigração, trabalho e justiças na Amazônia, 1940-1945/Francisco Pereira COSTA ; orientador Shozo MOTOYAMA. - São Paulo, 2014.

CLAVAL, Paul. A geografia cultural (Trad. Luiz Fugazzola Pimenta e Margareth de Castro Afeche Pimenta). Florianópolis: UFSC, 1999.

ESPADA LIMA, Henrique. A Micro-história Italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

MEIHY. José Carlos Sebe. Manual de História Oral – São Paulo: Editora Loyola, 5º edição, 2018.

NASCIMENTO SILVA. Maria das Graças Silva. O Espaço Ribeirinho. São Paulo Terceira Margem. 2000.

PALITOT, Aleksander Allen Nina. Rondônia uma história/Aleksander Allen Nina Palitot. – Porto Velho: Editora Imediata, 2016.

CIDREIRA, Jeferson e Josué da Costa. “Geografias imaginárias”: as estradas aquáticas na (des) construção das representações estereotipadas do espaço da Pan-Amazônia – Porto Velho: Universidade Federal de Rondônia, 2021.



Buscar:
Ir a la Página
IR
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
Visor de artigos científicos gerado a partir de XML JATS4R