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Amazônia, além do ocidente e oriente: constituições e permanências de um longo empobrecimento de um povo
Amazonia, más allá del oeste y el este: constituciones y permanencias de un largo empobrecimiento de un pueblo
Amazon, beyond west and east: constitutions and permanences of a long impoverishment of a people
Revista Presença Geográfica, vol. 08, núm. 03, 2021
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 08, núm. 03, 2021

Recepção: 11 Novembro 2021

Aprovação: 15 Junho 2022

Resumo: Objetiva-se, a partir desse artigo, destrinchar importantes características sobre a formação social da Amazônia, seu acúmulo espacial - utilizando métodos geohistóricos e críticos junto a dados geoeconômicos datados -, e como isso se correlaciona com outras regiões do próprio Brasil e do mundo, em específico com seus trabalhadores. Entendendo-os como um povo-território que, em particular, sofreu e sofre com sucções capitais (inter-) e (intra-) nacionais. Bastando, aos povos da floresta, apenas o empobrecimento, a escassez e a desterritorialização de seus produtos, processos e lucros. Entendendo que, para a verdadeira autonomia da sociedade e seu habitat, primeiro tem que se identificar o que as torna distópicas.

Palavras-chave: Formação espacial, Povos da Floresta, Capitalismo Tardio.

Resumen: El objetivo de este artículo es desentrañar características importantes sobre la formación social de la Amazonia, su acumulación espacial - utilizando métodos geohistóricos y críticos junto con datos geoeconómicos fechados - y cómo esto se correlaciona con otras regiones del propio Brasil y del mundo, específicamente con sus trabajadores. Entendiéndolos como un pueblo-territorio que, en particular, ha sufrido y sufre succiones de capital (inter) e (intra) nacional. Todo lo que se necesita para los pueblos de la selva es el empobrecimiento, la escasez y la desterritorialización de sus productos, procesos y ganancias. Entendiendo que, para la verdadera autonomía de la sociedad y su hábitat, primero hay que identificar qué los hace distópicos.

Palabras clave: Formación espacial, Pueblos de los Bosques, Capitalismo tardío.

Abstract: The objective of this article is to unravel important characteristics about the social formation of the Amazon, its spatial accumulation - using geohistorical and critical methods along with dated geoeconomic data - and how this correlates with other regions of Brazil itself and the world, specifically with its workers. Understanding them as a people-territory that, in particular, has suffered and suffers from (inter-) and (intra-) national capital suctions. All that is needed for the peoples of the forest is the impoverishment, scarcity and deterritorialization of their products, processes and profits. Understanding that, for the true autonomy of society and its habitat, one first has to identify what makes them dystopian.

Keywords: Spatial formation, Forest Peoples, Late Capitalism.

DA COLONIZAÇÃO A REPÚBLICA

Pode-se dizer, a partir de uma perspectiva fisicalista, que a matéria e os fenômenos a ela relacionados sempre terão, na soma de suas ações, a responsabilidade de constituir “o seguinte” o espaço logo depois do último em uma sucessão eterna que forma o tempo. Não se difere muito da realidade humana que, apesar do interacionismo psico-sócio-bio-cultural (as configurações formadoras do espaço e território), está presa nesta mesma gama de ação e reação. Ou, corsi e ricorsi[1], como diria Giambattista Vico.

É fundamental um retorno a conceitos básicos de Milton Santos para dizermos que a natureza é, como definição, qualquer objeto natural, seja ele tecnificado, terrestre, palpável ou não, logo é a íntegra, o físico e o material, e tudo que a constitui está exposto às mesmas leis - inclusive a sociedade. É importante, dentro deste entendimento, como isso influencia e como isso se denomina em relação a história e espaço da humanidade. Continuidades e descontinuidades são essas somas que sempre levam a construção do espaço-história humano, que são fundamentais para o êxito e fidedignidade das interpretações sociais. Nestes princípios, entende-se que a formulação da prática espacial (e insurgente) dos povos da floresta pode e deve ser destrinchada a partir da sua localização na natureza geral, do entendimento de seu espaço e como isso forma momentos que reverberam ao longo de seu acúmulo de espacialidades. Portanto, embrenham-se, nos próximos tópicos, características necessárias para a compreensão dessa formação.

Ao longo da história, a Amazônia condicionou diversas utilidades para o homem. Começando como casa com os povos originários americanos, foi sendo transformada, após a colonização, em um expoente econômico trágico e muitas vezes autodestrutivo: quanto maior sua importância à economia, maior seu desmatamento. E, não por acaso, essas condições são ratificadas pelo capitalismo globalizado, sistema que infere a cada região um papel na divisão internacional do trabalho.

Inegavelmente, pode-se dizer que a Amazônia passou séculos sendo preterida pelo colonialismo português ou pela velha república nacional. No século XVIII, existiam fortes atividades comerciais ligadas à pecuária e ao extrativismo ambiental - principalmente das chamadas “Drogas dos Sertões"[2]. As políticas de fomento à comercialização foram em muito por responsabilidade do estadista Marquês de Pombal, que criou a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará (1750-1778). O capital gerado, desde então, não voltava diretamente para a região, denotando uma forma embrionária de submissão dos recursos da Amazônia à economia internacional. De qualquer forma, o projeto econômico para a região também não foi de todo rentável, e não perdurou para além de meados do mesmo século, no começo do século XIX, a economia extrativista estava em recuo. Ao mesmo tempo, comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas se distribuíam ao longo da bacia hidrográfica. De fato, a biodiversidade e a hidrografia confirmavam a força de uma Amazônia das águas e contribuíram para a resistência às relações de trabalho de natureza escravista.

A reinserção da Amazônia na economia global se deve muito à segunda revolução industrial e de sua intrínseca necessidade pela borracha, que por sua vez poderia provir da Seringueira (Hevea brasiliensis) e seu insumo: o látex - até então exclusivo da Amazônia. Tal processo se inicia a partir de 1840 e, no entanto, é interrompido antes mesmo da segunda década do século XX, quando a região representava 90% da produção mundial de borracha. Uma quantidade massiva de sementes de seringueira foi contrabandeada por britânicos para suas colônias em países afro-asiáticos, que se tornariam os novos principais exportadores internacionais (CALIXTO, 1985). Objeção que é revertida com a Segunda Guerra, quando em função do Acordo de Washington e do reforço de guerra diante da ocupação japonesa em áreas de monocultura de seringueira na Ásia, houve certa sobrevida da economia da borracha na Amazônia, até o final da guerra.

A nova economia da borracha assinala a instauração de um modo de capitalismo financeiro na Amazônia, o domínio da oligarquia seringalista e das Casas Aviadoras na dinâmica popular dendrítica[3]assentada no sistema de aviamento[4], invasão de terras indígenas, migrações precarizadas e invasão de terras bolivianas. A relação de trabalho dominante confirmava a expropriação do seringueiro no sistema de aviamento e sua exclusão da agricultura campesina, situação posteriormente alterada com a decadência da economia da borracha e abandono do seringal pelos seringalistas - mas não pelos seringueiros.

Durante a expansão do extrativismo do látex em terras bolivianas, a migração precarizada e autoritária decorreu dos fluxos de nordestinos em busca de melhores condições de vida, mas muito dos que lhe foi prometido nas propagandas não foi cumprido. As longas estiagens e a questão fundiária direcionaram uma parte dos sertanejos para o extrativismo do látex na Amazônia. A ideia de constituir família em uma nova terra com melhores condições de vida se assemelha com as propagandas pró-colonização, mas na Amazônia Ocidental isso ocorre mais de trezentos anos após a maioria do Brasil.

Os sertanejos nordestinos e nativos que trabalhavam na extração do latex se encontravam em estado análogo a escravidão durante todo processo ocupatório pela extração de seringa, entre 1890 e 1940. Era feito um esquema de endividamento que consistia, basicamente, no processo de trazer o imigrante nordestino, pagar sua passagem, seu equipamento e sua comida, dizendo a ele que receberia pelo trabalho e, após pagar essas dívidas, embolsar o dinheiro produzido. O barracão era o símbolo geográfico do endividamento do seringueiro. Chegando lá, as dívidas eram exorbitantes e superfaturadas. Caso não fosse imigrante, o processo seria de retirá-lo da sua terra e impor o trabalho ou a morte por fome. O trabalho mesmo que árduo, profícuo e duradouro, no máximo, pagaria a alimentação. Toda dinâmica econômica regional girava em torno desse sistema, conhecido como “aviamento”, o que levou a um empobrecimento socioespacial contínuo do local.

A forte economia regional, que chegou a representar cerca de ⅓ (um terço) do PIB nacional, entrava em ostracismo após a retomada afro-asiática no comércio de látex, como dito anteriormente. Neste período, dada a grande evasão dos mercados importadores de borracha, a região deixava de ter sua economia dinamizada preponderantemente pela exportação do látex e se voltava para um poliextrativismo [castanha do pará, por exemplo] e diversos elementos da agricultura, por exemplo arroz, feijão e morangos - mas não embrenhados na floresta amazônica -, como também somaria elementos da pecuária na criação de pequenos animais para subsistência dos antigos seringais mantidos, em grande parcela, pelos próprios seringueiros (SILVA, 2020).


Figura 1
Pintura representativa demonstrando, a partir dos galhos das árvores, as rotas do látex, conhecida entre os seringueiros como “estradas da seringa”. Nome da pintura abaixo:
Fonte: Hélio Holanda Melo, Estrada da floresta. 1983. Imagem da Coleção Mansour, mostra uma representação de um seringueiro e de seus caminhos na busca do látex.

A ausência de políticas se perpetua junto com essa vida particular em meio a um “Brasil anônimo”, nação que só viria a ser lembrada pelo poder central décadas depois, com novo interesse econômico.

A LEI MÃE, VARGAS E AS DIRETRIZES DA ATUAL AMAZÔNIA

Durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, a Amazônia assume importância geopolítica no sentido de soberania territorial em áreas de fronteira. Assim, foram criados territórios federais e abriram-se linhas de telegráfico. A colonização japonesa se fazia revelar em áreas do Pará com as lavouras de pimenta, juta, morango etc. A partir de 1950, Vargas iniciou uma etapa de planejamento territorial para a Amazônia para fins de integração produtiva e política na acumulação capitalista nacional. Para tanto, surgia a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia - SPVEA (1953). O Plano inseria a Amazônia como fronteira de recursos naturais, vazio demográfico e região-problema diante das desigualdades socioprodutivas inter-regionais do país e da soberania nacional em áreas de frágil controle das fronteiras do Estado brasileiro.

No âmbito da narrativa de fronteira de recursos, o planejamento resulta na criação do INPA - Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, que teria como fim a captação de recursos e estudos específicos para as qualidades biodiversas do local. Estudos geológicos da mesma época comprovaram que 40% da região amazônica era de solo provindo do pré-cambriano, riquíssimo em minerais. Após a criação da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), os interesses na exploração mineral na Amazônia já se anunciavam por meio das experiências do manganês na Serra do Navio, cassiterita em Rondônia, óleo-gás no Amazonas e ouro no Médio Tapajós-Gurupi.

A atuação da SPVEA promoveu a delimitação da região-programa Amazônia Legal, a criação do Banco de Crédito da Amazônia, abertura da rodovia Belém-Brasília e projetos de colonização. Apesar de não estarem mais em vigor, é notável que suas políticas deram base para toda a instrumentalização da atual economia nacional. Em específico, é fomentado no norte brasileiro a exploração mineral e a agropecuária, que representa a maior parte do PIB e o negócio mais rentável provindo da região até os dias de hoje (SILVA, 2020).

Durante a ditadura militar, tais projetos varguistas de integração física e política da Amazônia à acumulação capitalista do sudeste e internacional, como a exploração mineral e a Transamazônica são colocados em prática, porém com altas defasagens, corrupções e com planejamento diferente do original. Tanto que as diretrizes do desenvolvimento na região são alteradas e até mesmo os fundamentos do SPVEA são modificados junto a seu nome, agora chamando-se Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). É importante ressaltar as mazelas sociais trazidas por esses novos rumos. Os fomentos ao avanço agropecuário na amazônia ocidental foram o estopim de diversos conflitos dos seringueiros que subsistiam de uma extração que preservava e necessitava da floresta, enquanto para os novos senhores de terra [os pecuaristas, em especial], interessados nos créditos, o único interesse seria o desmatamento direto e o uso da terra como ativo financeiro.

É devido a esta situação que muitos trabalhadores rurais - “autônomos” ou não - criaram e se organizaram em sindicatos locais para melhores condições de emprego do não superado sistema de aviamento e também debatiam pela reforma agrária, garantindo, assim, o direito à terra e a preservação ambiental. Entre os militantes do campo e da floresta mais conhecidos, destacam-se Chico Mendes[5]e Wilson Pinheiro, acreanos filhos de seringueiros imigrantes que lutaram pelas demandas dos povos da floresta. Ambos tiveram papéis fundamentais nas lutas regionais, principalmente a partir da década de 1970. Os conflitos da Amazônia Ocidental, que antes se pautavam em uma contradição entre as forças coloniais a partir de incursões aos territórios dos nativos, os retirando de seu assentamento e de sua subsistência - o território de disputa -, agora, com a soma do avanço pecuário, coloca uma união entre os povos originários e os extrativistas do látex - seringueiros- contra o desmatamento florestal provindo da burguesia agrária apoiada pelo Estado.

Na Amazônia Oriental e em Manaus, como acontecia a concentração de capital e industrialização, os maiores imbróglios se pautavam pelas transgressões das obras gigantescas, defrontando os povos originários que ainda estavam preservados. Como o acontecido no município de Altamira, que foi atravessado pela Transamazônica e era altamente povoado por nativos sumariamente executados para construção da rodovia. Outra obra faraônica do período ditatorial foi o Polo Grande Carajás, área uma das jazidas mais ricas do mundo e que é homônima a um povo tradicional que habitava o mesmo território, os karajás. Esse embate, em um primeiro momento, foi responsável pelo genocídio destes nativos e que, posteriormente, também foi cenário de um dos maiores episódios de exploração humana, onde cerca de oitenta mil pessoas em condições precárias estiveram na garimpagem das jazidas da Serra Pelada[6].

Em suma, a abertura de rodovias, hidrelétricas, exploração de minérios, grilagem de terras, exploração ilegal de madeira, avanço da pecuária, expansão urbana e a constituição da Zona Franca de Manaus são registros dos governos militares e são marcas que denunciam o futuro trágico que logo estava por vir. Os imensos embates de racionalidades e temporalidades tradicionais, nativas, diante e contrárias às projeções de uma temporalidade racialista urbano-industrial de natureza colonial-civilizatória marcam a segunda metade do século XX e apenas se intensifica com o tempo - tempo, este, colonial e ratificador de desigualdades em um território já capitalizado. Nesse sentido, a sociobiodiversidade sujeitada pelo bioma da Amazônia anuncia estratégias de r-existência à modernidade distópica em curso.

Devido à corrupção entre Estado e corporações, as crises internacionais do capitalismo e ao mal planejamento territorial, a maioria das obras da ditadura são concluídas apenas após seu fim, em 1985, como a Estrada de Ferro Carajás - que ligaria a jazida paraense até os portos maranhenses - e a Transamazônica que não foi concluída até os dias atuais. Se, até então, muitos dos embates no norte nacional ainda apresentavam muitos aspectos coloniais, a partir do encerramento da ditadura há alterações na organização popular amazônica. Durante o governo Sarney (1985-1990), ocorre a solidificação dos movimentos sociais organizados já existentes na abertura da ditadura, mais especificamente da Central dos Trabalhadores da Amazônia (CTA) - braço da Central Única dos Trabalhadores que ligaria Lula a Chico Mendes, auxiliando na fundação do Partido dos Trabalhadores -, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e das formações eclesiais de base, que levariam a origem da CPT – Comissão Pastoral da Terra.

Com o crescimento do movimento proletário organizado, logo se tem um aumento da visibilidade das truculências até então apagadas ou silenciadas na Amazônia. O assassinato de Chico Mendes pela mão do agronegócio reverbera em todo mundo e propaga as lutas sindicais e populares da floresta, aumentando o atrito entre forças dominantes e ensejos populares. Mudança que agora trará pautas dos direitos trabalhistas e da reforma agrária em um viés mais social à região.

O Brasil, mesmo que durante a ditadura militar-burguesa se aproximasse do ideário neoliberal, ainda não assumia e executava plenamente a dita “cartilha neoliberal”. Já no governo Collor (1990-1992), o país se abriu a privatização de diversas estatais, como a VASP - Viação Aérea São Paulo -, e ao encerramento de diversos órgãos públicos com o pretexto de encurtar as pendências do Estado, plano cunhado como PND - Programa Nacional de Desestatização. Todavia, seu governo acaba precocemente devido à alta instabilidade econômica, medidas antipopulares e aos escândalos de corrupção associados a seu nome. Apenas o seu interino, Itamar Franco (1992-1995), fará maior desenvolvimento das ideias de seu antecessor, privatizou a CSN, principal siderúrgica nacional, e a vende para Benjamin Steinbruch, que depois adquirirá a Vale do Rio Doce no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003). Collor, antes de seu processo de impeachment, também tinha projetado a ideia de polos de preservação florestais na Amazônia e de desenvolvimento técnico para o zelo ambiental, sempre pautando pelas parcerias público-privadas que marcam o pós-democratização.

ATUALIDADES, O RECORSI DA CRISE

Fernando Henrique Cardoso, mesmo seguindo critérios liberais, alojou elementos sociais democráticos em seus projetos, algo totalmente conivente com o fato de ser o presidente que maior tocou a reforma (ou reformismo [7]) agrária, conforme dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Esse projeto dividiu muitas opiniões, pois tomou 5,55 milhões de hectares de reservas ambientais da Amazônia Legal para o programa alimentar e rural de distribuição de terras. Tais novos assentamentos agrários provindos deste programa viriam a ser chamados como “medifundios”, uma terra que produz além do alimento familiar, tem uma alta produtividade e baixo acúmulo de riqueza, o que o diferenciaria de um latifúndio. Essas novas organizações, os médios produtores, em específico teriam uma economia mais voltada para o mercado interno, enquanto os latifundiários lucrariam ainda mais nas exportações. FHC também foi responsável por diversos créditos especiais para a reforma agrária e o avanço na redivisão de terras que antes eram de domínio estatal. No entanto, esses diagnósticos não representavam com fidedignidade a situação real daquelas terras.

O Movimento Sem Terra reivindicou na época que a maioria das terras e dos créditos não foram cedidos e que os poucos que foram não cumpriam exatamente com o discurso colocado. Foi durante esse período, no final dos anos 90, que de fato a militância organizada do MST começou a adentrar a região norte e, mais especificamente, a Amazônia (inclusive sofrendo cisões internas surgidas de dissensos táticos, estratégicos e ideológicos que levariam à constituição de novos movimentos populares no campo, como a Liga dos Camponeses Pobres).

Ao adentrar do governo Lula (2003-2011) com alta presença de partidos de esquerda dentro da Câmara dos Deputados e nos altos cargos do executivo, cria-se forte expectativa popular em cima das pautas socialistas, como a reforma agrária popular, socialização da economia e estatização das empresas recém privatizadas pelo governo anterior. Porém, não são tais políticas que ocorrem, mas, sim, um misto das políticas neoliberais com seu lucro sendo em parte distribuídos entre os mais pobres. O que, em um primeiro momento, cumpre com diversos parâmetros considerados ideais na economia, mas que levam ao rompimento do MST com o governo Lula. A CUT, pelo contrário, desestimularia as greves e manifestações para não abalar os planos do governo, afastando as pautas dos povos da floresta das centrais sindicais. No campo legislativo, Lula garantiria as áreas de preservação e o plano de reflorestamento de uma parte da Amazônia, reivindicando como em partes um território “indigena”. O que foi suficiente para garantir sua fácil reeleição em 2006, mas que levou, posteriormente, a saída de lideranças do partido atrelado a luta na Amazônia, como Babá, o João Batista Oliveira de Araújo, paraense, um dos fundadores do Partido Socialismo e Liberdade.

Em sua reeleição, Lula consegue emplacar o Plano Amazônia Sustentável, que apesar de apresentar grandes avanços nos direitos ambientais também dá margem para políticas privadas para o “desenvolvimento” da Amazônia. No ano de 2009, há outro asseguramento do distanciamento do governo frente às pautas populares. A Lei Nº 11.952, de 25 de junho de 2009 dá margem para a grilagem de terras e a interpretações privatistas as concepções de propriedade rural. O governo Dilma (2011-2016) dá sequência a estas políticas e se instaura no ápice econômico do país, em 2011, mas sofre com uma forte recessão subsequente. Devido a continuidade de políticas neoliberais em consonância com os problemas causados pelas alianças partidárias necessárias à eleição de Dilma, em 2010, fez com que fosse consumado o distanciamento do partido e das organizações sindicais aos movimentos populares - incluso os da floresta. Ação que, ao acumular do tempo, acarreta nas Jornadas de junho de 2013 que levantam tanto a ala esquerdista não-alinhada, quanto os grupos de direita reacionária que estavam em oposição ao governo desde 1994.

Calcando-se na efervescência dos crescentes grupos reacionários, a burguesia nacional se articula com o legislativo - que antes havia se aliado ao PT nas eleições - para uma derrubada do governo Dilma. Seu sucessor, Michel Temer (2016-2019), foi exímio na aprovação de medidas de austeridade que atravancam os investimentos públicos e levaram o Brasil a um estado de anomia social, onde o povo não só não se identificava com os poderes legislativos, executivos e judiciários, mas também questionavam sua integridade. Levando a existência do povo-sem-pátria e, consequentemente, da pátria-sem-território (simulacro), para todos os lados, existiam negativas populares no que tange às questões infraconstitucionais e eleitorais do país.

O crescimento das forças da direita, concentradas no reacionarismo, no cenário sócio-político levaram, em 2018, à eleição de Jair Bolsonaro (2019-atual), cuja campanha é alicerçada pelo então dominante antipetismo, pelo discurso moralista cristão e pelo ódio a qualquer pauta popular. Seu mandato e suas pautas reivindicam a ditadura militar, trazendo forças militares para a construção da Transamazônica e com projetos de desmantelamento das áreas de preservação para extração de Nióbio - mineral fundamental para a construção de aeronaves, o qual Brasil detém 98% de todo contingente descoberto e que se concentra nas reservas ambientais. Bolsonaro deslegitima as lideranças de nativos e quilombolas para alcançar seus ideais econômicos, seja pelo desmatamento ou apropriação de terras.

As políticas de indiferença e repúdio aos povos da floresta trazem reflexos humanos e estatísticos nas escalas de perigo popular. O número de conflitos por terra, conforme a Comissão Pastoral da Terra (2019), foi o maior registrado em sua história, batendo mais de 3 ocorrências por dia, um aumento de 34,2% em comparação ao final do governo Temer. Em número de assassinatos, o norte representou, até 2019, mais de 60% dos casos envolvidos em disputa de terra - os líderes são Pará e Amazonas com, respectivamente, 12 e 6 mortes cada. Ainda em 2019, 1 a cada 3 famílias afetadas pelas disputas de terra são de povos originários. Dados que não são de exclusiva culpa nacional, na verdade, vêm de uma grande influência externa, como é explicitado de onde provém os fundos da bancada ruralista, financiada por diversas multinacionais.

O enorme crescimento das taxas de incêndio, conflito entre latifundiários e posseiros e o gritante desmatamento na Amazônia expõe uma constante insegurança na região norte do país que, além de tudo, ainda sofre com as negligências governamentais durante a pandemia da covid-19. Um cenário estarrecedor que mostra a situação paupérrima nacional em meio de uma crise sem precedentes.

PARA NÃO CONCLUIR: PENSAR O FUTURO, PENSAR A AMAZÔNIA

Percebe-se que dentro da política dos presidentes e seus “Estados brasileiros”, existe grande antitese e sintese das medidas ao longo da história, mas nada se compara as contradições entre o povo, nunca homogeneamente, e o Estado. O crescimento das medidas de corte de gastos, congelamento ou privatizações apresentam duas faces: não é só uma crise situacional, é geral e agressiva. Terá continuidade, mesmo que o povo - principalmente da floresta - se identifique, e migrará, a passos largos, ao liberalismo mais agressivo que seu antecessor. Assim por diante, até não haver mais recursos, a não ser que antes tenha uma tomada popular que finalmente ligue políticas ao consenso popular. Ou isso, ou começarmos a nos questionar “por que chamamos de crise se nunca vivemos o contrário?”. Para grande parte do povo, sempre foi assim.

Enquanto isso, há um íngreme crescimento popular nos retornos da população à esquerda ou a figuras esquerdistas - aos movimentos populares como o MST, o Movimento Pequenos Agricultores (MPA), a LCP - que muito lembra os primórdios dos anos 80. Isso, claro, reivindicando e concedendo a memória dos povos da floresta inseridos na luta sindical. É de exímia importância comentar que dentro dessas lutas os trabalhadores não são homogêneos, são negros, nativos, descedentes de imigrantes brancos e muitas outras identidades. Nessa concepção, frisa-se também que muitas reivindicações da Amazônia do mesmo teor não são necessariamente vinculadas a esses movimentos, como a luta dos povos originários autônoma.

Agora, o que nos resta é atentarmos e planejarmos retomadas populares e, principalmente, rupturas. Quebrar a continuidade espacial que vem trazendo um empobrecimento que se torna cíclico justamente por confiarmos aos mesmos meios uma alteração da situação. Planejamento que pode se inspirar em vizinhos, na nova Bolívia que resiste ao imperialismo a partir do momento que tornou sua pátria territorial, ligada a região e ao povo em um Estado Plurinacional - um remolde reterritorializado, popular e latino do Estado Burguês - e criar, assim, uma governança da Amazônia. Ou mesmo, se inspirar em outros moldes horizontais que ligam povo-território a um exercício da vida política a partir de suas próprias práticas espaciais, como Chiapas, Rojava e outros, sempre diferindo e respeitando as diferentes necessidades do proletário da floresta e do nativo dos demais povos representados nesse país. O que não falta são opções para o desenrolar da situação, tendo sempre que confiar nas lutas populares pelas resoluções que podem quebrar esse ciclo exploratório vampiresco do neoliberalismo que explora há mais de 150 anos a região amazônica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

[1] Tradução literal: curso e recurso
[2] As especiarias eram assim chamadas pelos europeus desde que provissem de uma floresta do oeste brasileiro. Logo, era uma categoria que abarcava tanto do Guaraná, quanto de Castanha-da-Amazônia.
[3] Por definição: área de terra com grande volume hídrico. Cerceada por água. Politicamente e economicamente propício para instauração de comércios, exportadoras e habitações - dos mais variados tipos.
[4] Sistema explicado posteriormente e com maiores esclarecimentos.
[5] CHICO Mendes: O homem da floresta. São Paulo: Agência Ambiental Pick-Upau, 2003. Disponível em: http://www.pick-upau.org.br/mundo/chico_mendes/chico_mendes.htm#01. Acesso em: 24 fev. 2022.
[6] WANDERLEY, Luiz Jardim. CORRIDA DO OURO, GARIMPO E FRONTEIRA MINERAL NA AMAZÔNIA. Revista Sapiência, Goiania, v. 8, n. 2, p. 113-137, 17 dez. 2019.
[7] BOTELHO, Maria Auxiliadora. O REFORMISMO AGRÁRIO DO GOVERNO FHC. In: JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, IV., 2009, São Luis. Anais [...] . São Luis.


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