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A descolonização do saber na formação continuada dos professores Yanomami em Geografia no Estado do Amazonas-Brasil
La descolonización del conocimiento en la formación continua de profesores yanomamis en Geografía en el Estado de Amazonas-Brasil
Revista Presença Geográfica, vol. 10, núm. 1, Esp., 2023
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 10, núm. 1, Esp., 2023

Recepção: 01 Abril 2023

Aprovação: 11 Abril 2023

Resumo: No Amazonas há poucos estudos sobre a formação continuada de professores Yanomami em Geografia, assim como sua contribuição para uma descolonização do saber geográfico, onde apenas os conhecimentos e estudos não indígenas são estudados nos cursos de formação continuada. A importância desse trabalho está na contribuição da Geografia em criar uma visão descolonial para servir na autonomia, fortalecimento e bem viver do povo Yanomami do rio Marauiá, médio rio Negro, município de Santa Isabel do Rio Negro–AM. Neste contexto, o objetivo geral é discutir a formação de professores indígenas Yanomami de Geografia do médio Rio Negro como prática didático-pedagógica descolonial, estado do Amazonas. Como objetivos específicos, buscou-se primeiro compreender o processo de descolonização dos povos indígenas como estratégia de luta contra hegemônica no território; por segundo conhecer o território e a territorialidade do povo Yanomami no contexto da educação escolar indígena no ensino de Geografia; e por terceiro entender a prática docente dos professores Yanomami na geografia escolar como uma prática de descolonização do saber, do poder e do território. Para a realização da pesquisa foram realizados revisão e pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e de campo. O fortalecimento dos conhecimentos indígenas e de sua autonomia são os princípios para as formações continuadas dos professores Yanomami em Geografia, na qual a partir da visão da Geografia que respeite seus costumes e cosmologias e a visão descolonial, o princípio do processo educativo para a construção e valorização do conhecimento fará da escola indígena Yanomami um lugar de conhecimento e resistência.

Palavras-chave: Formação continuada, Geografia, Yanomami, Pensamento Descolonial, Território.

Resumen: En Amazonas, existen pocos estudios sobre la formación continua de los profesores Yanomami en Geografía, así como su contribución a la descolonización del saber geográfico, donde en los cursos de formación continua sólo se estudian saberes y estudios no indígenas. La importancia de este trabajo radica en la contribución de la Geografía en la creación de una visión decolonial al servicio de la autonomía, el fortalecimiento y el bienestar del pueblo Yanomami del río Marauiá, medio río Negro, municipio de Santa Isabel do Rio Negro–AM. En este contexto, el objetivo general es discutir la formación de profesores de Geografía indígenas Yanomami del medio Río Negro como práctica didáctico-pedagógica decolonial, estado de Amazonas. Como objetivos específicos, primero buscamos comprender el proceso de descolonización de los pueblos indígenas como una estrategia de lucha contra el poder hegemónico en el territorio; segundo, conocer el territorio y la territorialidad del pueblo Yanomami en el contexto de la educación escolar indígena en la enseñanza de la Geografía; y en tercer lugar, comprender la práctica docente de los docentes yanomamis en geografía escolar como una práctica de descolonización del saber, del poder y del territorio. Para llevar a cabo la investigación se realizó una revisión e investigación bibliográfica, documental y de campo. El fortalecimiento de los saberes indígenas y su autonomía son los principios para la formación continua de los docentes yanomamis en Geografía, en la que, desde la visión de una Geografía respetuosa de sus costumbres y cosmologías y la visión decolonial, el principio del proceso educativo para la construcción y valorar el saber hará de la escuela indígena yanomami un lugar de saberes y resistencias.

Palabras clave: Educación continua, Geografía, Yanomami, pensamiento decolonial, Territorio.

INTRODUÇÃO

Ao participar de formações continuadas para professores indígenas no estado do Amazonas ao longo dos anos foi percebido que poucos professores formadores de fato trabalham uma formação na perspectiva política e no protagonismo de luta e resistência do Território da Educação Indígena e Educação Escolar Indígena, objetivando desenvolver uma reflexão e análise crítica sobre os direitos humanos e territoriais, autonomia e organização política e o trabalho e funcionamento das Escolas Indígenas da Amazônia.

Nessa concepção, uma problemática levantada ao longo do tempo foi como está sendo planejada e realizada a formação continuada dos professores Yanomami no médio Rio Negro, rio Marauiá, no estado do Amazonas em Geografia e se está sendo uma formação descolonial, pois se propicia a valorização dos conhecimentos e saberes geográficos, a pluralidade sociocultural, a espiritualidade e ancestralidade do povo Yanomami para com a terra e seu território. Sendo a ciência geográfica uma área do conhecimento que exige que os professores de geografia trabalhem em sala de aula os seus conteúdos geográficos associados à formação e organização política dos estudantes indígenas que lutam em defesa do seu território e da sua territorialidade, é que se pensou no desenvolvimento das estratégias didático-pedagógicas descoloniais do saber, do poder e do território.

O povo Yanomami está em um território de aproximadamente 9.260.000 ha, sendo que o mesmo está situado em ambos os lados da fronteira Brasil-Venezuela (interflúvio Amazonas-Orinoco), como pode ser visto na Figura 1. No Brasil, ocupam as áreas dos afluentes da margem direita do rio Branco e esquerda do rio Negro. A Terra Indígena Yanomami, no Brasil, está localizada nos estados do Amazonas e Roraima, região Norte do país, com um total populacional de 27.578 Yanomami divididos em 340 aldeias. No Amazonas, contamos com um total populacional de 8.839, contando, 3.164 em Barcelos, 2.338 em Santa Isabel do Rio Negro e 3.337 em São Gabriel da Cachoeira.


FIGURA 1
Terra Indígena Yanomami
Org.: Geoprocessamento - ISA, 2005

No Amazonas, poucos são estudos sobre o processo de formação continuada de professores Yanomami em Geografia, uma vez que investir na formação inicial dos professores indígenas em Geografia, principalmente do povo Yanomami, significa pensar em práticas didático-pedagógicas descoloniais que contribuam com o melhoramento do processo de ensino e aprendizagem dos estudantes das escolas indígenas. Para essa pesquisa, delimitou-se a área de estudo na Terra Indígena Yanomami no estado do Amazonas, no rio Marauiá, médio rio Negro, município de Santa Isabel do Rio Negro – AM, como observado na Figura 2.


FIGURA 2
Imagem do mapa de Localização - Santa Isabel do Rio Negro/AM
Org.: Aquino, Wendell Andriano Farias; Fonte: Thaline Ferreira, 2017

Atualmente, a população Yanomami do rio Marauiá, é distribuída em 19 xapono[1], sendo eles (subindo o rio) Bicho Açu, Curuá, Apuí, Taracuá, Serrinha, Jutaí, Balaio, Komixiwë (Missão), Pohoroá, Ixima, Pukima Beira, Raita Baixo, Raita Centro, Tomoropiwei, Pukima Cachoeira, Manakapiwei, Kona Cachoeira, Kona Centro e Xamakorona. Os mesmos possuem vasto conhecimento da geografia do local, da biologia, botânica, saúde, identificando doenças através dos sintomas apresentados e processando a cura através do domínio de práticas espirituais, capazes de afastar os males que atingem o bem-estar individual e rompem o equilíbrio social do grupo. São detentores de uma riquíssima cosmovisão, saberes tradicionais e histórias do povo que explicam a origem do mundo e são passados de geração em geração. Possuem conhecimentos da agricultura e dos sistemas produtivos, sabendo as épocas de plantio e da colheita, o manejo das sementes, os cuidados que se deve ter com a terra e a importância do território material e imaterial. Tais conhecimentos milenares vêm sofrendo interferências e ressignificação sociocultural. Em alguns casos, tais manifestações e valores socioculturais e identitários são esquecidos e/ou substituídos, em virtude das alterações ocorridas com meio ambiente, por conta do contato com a sociedade envolvente, o ingresso de novas tecnologias, a incidência dos meios de comunicação de massa, bem como as pressões permanentes sobre seus territórios.

A valorização e o conhecimento geográfico que os povos indígenas da Amazônia possuem da terra/território são de extrema riqueza e detalhes, que fazem a ciência geográfica ainda mais fascinante e significativa, sobretudo, quando esta realidade é transplantada para o campo do Território da Educação Indígena e da Educação Escolar Indígena, na qual contribui para o alcance de um pensamento geográfico que estimule alcançar o processo de ensino e aprendizagem na geografia escolar.

A formação dos professores Yanomami tem sido construída e pensada a partir de um pensamento ocidental eurocêntrico, na qual tem sido desenvolvida práticas didático-pedagógicas hegemônicas e coloniais, que desconsidera os conhecimentos e os saberes ancestrais deste povo. Essas questões têm sido levantadas pelos professores e lideranças quando estão em grandes reuniões, destacando a importância da escola e da formação e atuação dos seus professores para o desenvolvimento de um trabalho que estimule o estudante a conhecer o mundo em que vive e compreenda a geografia os seus conhecimentos tradicionais e o conhecimento do napë[2] para a fortificação da sua luta, resistência, autonomia e do seu bem viver na terra/território.

O trabalho tem como objetivo geral analisar a formação de professores Yanomami de geografia do rio Negro e a prática didático-pedagógica descolonial, no estado do Amazonas. E como objetivos específicos: compreender o processo de descolonização dos povos indígenas como estratégia de luta contra hegemônica no território; conhecer o território e a territorialidade do povo Yanomami no contexto da Educação Escolar Indígena no ensino de Geografia; e entender a prática docente dos professores na Geografia escolar como uma prática de descolonização do saber, do poder e do território.

Nesse sentido, a importância desse trabalho está assentada na busca pelo fortalecimento dos conhecimentos/saberes indígenas, bem viver e a sua autonomia através da formação continuada de professores Yanomami em Geografia do estado do Amazonas sob a perspectiva do pensamento descolonial.

METODOLOGIA

A pesquisa possui uma abordagem qualitativa e para a realização do trabalho foi desenvolvida uma revisão bibliográfica, a partir de materiais consultados e revisados (artigos, livros, capítulos de livros, dissertações e teses) nos trabalhos de Porto-Gonçalves (2005), Faria (2003; 2022), Fontes (2016) Valter Cruz (2017), Haesbaert (2021) entre outros. O enfoque da pesquisa é geográfico, porém recorreu também, em função do objeto de estudo, as contribuições de outras ciências como a pedagogia e sociologia com aportes dos seguintes pesquisadores: Dewey (2019), Quijano (2005), Sousa Santos (2010), Freire (2015). Foi realizada a pesquisa documental, utilizando os documentos como leis – Constituição Federal de 1988, Leis de Diretrizes de Base, Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, planejamentos das Associações Kurikama e Hutukara, protocolo de consulta Yanomami e Ye’kwana, entre outros documentos disponibilizados e conseguidos junto às associações indígenas, instituições e/ou sites.

Para o desenvolvimento da pesquisa, foi realizado a pesquisa de campo por meio da observação participante em um curso de formação continuada dos professores Yanomami, na qual foi feito a realização de entrevistas semiestruturadas (abertas e fechadas) com os sujeitos (professores Yanomami e os professores formadores). Foi feito ainda registros fotográficos e conversas informais, buscando assim, responder as problemáticas e os objetivos levantados pela pesquisa.

A luta pela Educação Escolar para os Povos Indígenas no Brasil

A luta pelo território da Educação Indígena e Educação Escolar Indígena é uma luta histórica e uma estratégia territorial de reprodução social não somente na terra/território para manutenção dos valores socioculturais e identitários dos povos indígenas, na qual visa a valorização da pluralidade sociocultural, sobretudo, no campo da Educação, no que tange a formação e prática docente.

A reivindicação de direitos territoriais indígenas perpassa desde direitos humanos e territoriais, como também pelos direitos sociais, a exemplo do território da educação para os povos indígenas. Segundo Oliveira (2006) durante a existência do Serviço de Proteção ao Índio - SPI, a presença de índios nos centros urbanos e na capital federal envolvia quase sempre a reivindicação por melhores recursos assistenciais para as áreas indígenas. Com o encerramento do SPI e a criação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI, as reivindicações indígenas eram isoladas, tampouco adotando críticas gerais que envolvessem a situação de todos os povos indígenas no Brasil (Oliveira, 1985).

Percebendo a necessidade de serem ouvidos e ter a necessidade de direitos voltados para seus povos, novos nomes indígenas passam a fazer parte de uma luta nacional e se aproximar de movimentos políticos e ganhar força e união entre os povos indígenas no país, fortalecendo e iniciando o movimento indígena no país, com nomes que até hoje fazem parte da história, força e luta para a conquista dos direitos em lei.

A proposta governamental de “emancipação” dos índios, que envolvia a perda dos seus territórios, estimulou o surgimento de novas lideranças indígenas, aproximando-as dos movimentos políticos da sociedade civil. A vitória contra esse projeto do regime militar impulsionou a organização indígena. Em 1980, ano de criação da primeira organização nacional dos índios, a UNIND – União das Nações Indígenas, vários líderes tinham projeção nacional: Daniel Matenho, Álvaro Tukano, Mário Juruna, Ângelo Kretan, Marçal de Souza. Outros surgiam: Domingos Veríssimo Terena, primeiro presidente da UNIND; Marcos Terena, Ailton Krenak (OLIVEIRA, 2006, p.193).

Após muitas lutas e o desenvolvimento do movimento indígena no Brasil, associações, federações e coordenações passaram a ser criadas pelo país para representar os povos indígenas e fortificar a luta política por território, saúde e educação, sendo de extrema importância para a conquista da mobilização própria e para conquistar os direitos na Constituição de 1988.

Em 1988 foi promulgada a atual Constituição da República Federativa do Brasil, no que se refere aos direitos indígenas, assegurou a eles o direito de ser e permanecer indígena, com direito a uma educação específica e diferenciada, que no artigo 231, garante à estes povos o reconhecimento de sua identidade diferenciada e sua manutenção, sendo confirmado no art. 232, e no texto da Lei de Diretrizes de Bases - LDB de 1996, no seu art. 78 atribui ao Sistema de Ensino da União a tarefa de desenvolver programas de pesquisa e ensino.

Pensar uma educação diferenciada para os povos originários passou a ser um trabalho em conjunto com as coordenações e associações indígenas, a partir de Constituição de 1988 e a LDB de 1996, outros documentos foram pensados para manutenção e direcionamento para essas escolas que iriam iniciar nas comunidades.

Importante frisar que a discussão sobre as escolas diferenciadas foi e ainda é um processo de luta muito importante para o movimento, pois durante muitos anos crianças foram retiradas de suas comunidades para irem estudar em escolas internatos dos padres, que fez que não pudessem conviver tanto tempo em suas comunidades e forçadas a não falar suas línguas maternas, além de serem educadas em escolas que impuseram um conhecimento colonizador e que invisibilizavam os conhecimentos indígenas.

Freire (2004) afirma que quando a escola foi implantada em área indígena, as línguas, a tradição oral, o saber e a arte destes povos foram discriminados e excluídos da sala de aula. A função da escola era fazer com que estudantes indígenas desaprendessem suas culturas e deixassem de ser indivíduos indígenas. Historicamente, a escola pode ter sido o instrumento de execução de uma política que contribuiu para a extinção de mais de mil línguas. Ao longo dos anos o caráter escolar foi mudando dentro das comunidades indígenas e ganhando um novo significado, como processo de fortalecimento político e social.

A escola ajuda na compreensão do pensar e do fazer, e uma educação escolar em meio aos povos indígenas “principalmente, quando os próprios indígenas assumem a construção de diferentes processos educativos escolares para suas comunidades” (REZENDE, 2010, p.46). As tradições e culturas são mantidas a todo tempo, quando pequeno a partir da educação indígena, o conviver com a comunidade e o aprendizado vindo de seus pais e parentes, como o ato de ir pescar, aprender um artesanato ou até mesmo a roça é educação, o modo de vida da comunidade (FONTES, 2016, p.28).

Não é próprio das sociedades indígenas o discurso pedagógico como o conhecemos: “Preste atenção: é assim que faz. Primeiro, é preciso... Não”. O modelo de aprendizagem indígena passa pela demonstração, pela observação, pela imitação, pela tentativa e pelo erro (MAHER, 2006, p. 36). Quando jovem a partir da educação escolar indígena, trabalha-se a interculturalidade com a participação de alunos, pais e os anciões, todos aprendem e todos ensinam, trabalhasse a partir da vivência na comunidade e o de fora da mesma, conhecimento tradicional e técnico, todos são professores e alunos na comunidade.

Com a implantação das escolas indígenas diferenciadas nas comunidades, a modalidade de ensino predominante é o fundamental nas escolas municipais e o ensino médio nas escolas estaduais, porém muitas não são reconhecidas pelas secretarias municipais ou estaduais. Após a implantação e firmação das escolas nas comunidades surgiu uma nova demanda, a de ensino superior indígena, para aprimoramento e formação de professores indígenas.

A formação dos professores indígenas tem como base legal, a Constituição Federal do Brasil de 1988, a Portaria Interministerial 559/91; o Decreto 1.904/96 que institui o Programa Nacional de Direitos Humanos; a Lei 9.394/96 Diretrizes e Bases da Educação Nacional; o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (1998); o Parecer nº 14/09/99 Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena normatizadas na Resolução N. 03/1999 do Conselho Nacional de Educação e da Câmara de Educação Básica; a Lei nº 10.172/01 do Plano Nacional de Educação; Diretrizes para organização da educação escolar indígena Resolução nº 05/2012(CEB/CNE); Referenciais para Formação de Professores Indígenas Parecer, Resolução Nº. 02/2015 (CEB/CNE) de Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores Indígenas a Nível Médio e Licenciatura Intercultural, entre outros documentos. Na esfera da Educação Escolar Indígena, a Constituição Federal assegura aos povos indígenas o uso de sua língua materna e dos processos próprios de aprendizagem. “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”, (2º parágrafo do Artigo 210, seção I – Da Educação).

Ao longo de sua história, as sociedades indígenas vêm elaborando complexos sistemas de pensamento e modos próprios de produzir, armazenar, expressar, transmitir, avaliar e reelaborar seus conhecimentos e suas concepções sobre o mundo, o homem e o sobrenatural. O resultado são valores, concepções, práticas e conhecimentos científicos e filosóficos próprios, elaborados em condições únicas e transmitidos e enriquecidos a cada geração. Observar, experimentar, estabelecer relações de causalidade, formular princípios, definir métodos adequados, são alguns dos mecanismos que possibilitaram a esses povos a produção de ricos acervos de informações e reflexões sobre a natureza, sobre a vida social e sobre os mistérios da existência humana (Diário Oficial da União, 1999).

No Amazonas, a formação de professores indígenas foi realizada através do Projeto Pirayawara da Secretaria de Estado de Educação e Desporto do Amazonas – Seduc/AM pela Gerência de Educação Escolar Indígena – GEEI, que vem sendo revisado para atender as especificidades atuais para a Educação Escolar Indígena. Contudo, ainda precisa ser melhorada a Matriz Curricular para as escolas indígenas do Estado visando a especificidades dos povos, assim como, concretizar a política indigenista estadual para que sejam atendidas as demandas dos povos indígenas do estado, e desenvolver uma política pública com o reconhecimento do professor indígena no Amazonas, principalmente após o concurso de 2018 realizado pela Seduc para contratação efetiva dos professores indígenas, demonstrando a falta de estrutura do estado frente à realidade indígena.

As formações a nível de Magistério também são realizadas pelas associações indígenas e instituições parceiras no estado para uma formação mais específica aos povos em questão e pelo fato da Seduc não conseguir atender a toda a demanda do estado para formação dos professores indígenas. Contudo, todas as formações são reconhecidas pela secretaria de educação.

Segundo Silva (2001), o desejável do ponto de vista da educação bilíngue e intercultural, é gerar a troca recíproco de saberes, conhecimentos, técnicas, artes, línguas, etc., sem discriminação, traduzido na igualdade de oportunidades. Propõe-se superar a tradição histórica das relações de exclusão, desigualdade, opressão e assimetria cultural e linguística que se acentuou desde a colônia e consolidou na República e ainda é vigente em nível social, cultural, linguístico, político e, sobretudo, econômico, até os dias de hoje.

Esse processo de constituição da colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza tem na conquista ibérica do continente americano seu momento inaugural. A partir do domínio ibérico, dois processos articuladamente conformam a nossa história posterior: a modernidade e a organização colonial do mundo (CRUZ, 2017, p. 15).

Os povos indígenas, ao longo do processo de invasão e colonização, estabeleceram diversas formas de resistência e reexistência. “A diversidade de formas tanto do processo colonial como das culturas e agências dos povos indígenas frente à violência dos não indígenas resultou em múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização” (HAESBAERT, 2021; FARIA, 2022).

A escola ajuda no processo de conhecimento e reconhecimento dos seus territórios e as transformações realizadas ao longo do tempo com os constantes ataques e invasões, o pensar e ser de seu povo está intrínseco em sua cultura e vida. Nessa construção, a Geografia passa a ter um papel importante na luta dos povos e do movimento indígena no Brasil, uma vez que as contribuições para a decolonialidade para a Geografia além de propor ações para o seu ensino realiza novas leituras da realidade a partir dos conceitos geográficos e do pensamento decolonial (SUESS E SILVA, 2019).

A Geografia e pensamento descolonial possui papel importante, pois por meio do debate territorial ajuda a compreender o movimento da territorialização da luta e da resistência dos povos indígenas, sobretudo, no campo da educação, devendo as abordagens dos conteúdos escolares está acoplado à territorialidade indígena. Conforme aponta Sack (2011) a territorialidade constitui uma grande estratégia de resistência, entendida a partir da afirmação identitária e territorial. A terra como território é a vida de um povo e sem território não há vida, esta categoria geográfica, enquanto conhecimento, ajuda na luta e na autonomia dos povos originários, traçando estratégias e conhecimentos para gestão e planejamento dos territórios já demarcados, como também, conhecimento e gestão para os territórios em fase de demarcação.

Território, Educação e a Descolonialidade

A Colonialidade do Saber nos revela, para além do legado de desigualdade e injustiças sociais profundas do colonialismo e do imperialismo, assinalados pela teoria da dependência e outras, há um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias (PORTO-GONÇALVES, 2005).

Os dispositivos da colonialidade fundamentado no pensamento ocidental se configuram como formas de dominação e apropriação de corpos e de territórios, principalmente dos povos originários, cuja sua luta histórica é marcada por ocultamento, invisibilidades e negação. Assim, “esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos” (KRENAK, 2020, p.44).

Assim, diante dessa colonialidade profundamente impregnada tanto histórica quanto geograficamente, descolonizar está longe de ser apenas uma luta contra o que se explicita de colonialidade no presente. Trata-se de lutar contra o processo permanente com que se refazem –e muitas vezes se revigoram– esses princípios cuja origem remonta a séculos superpostos de domínio e expropriação, exacerbados nos últimos tempos por um padrão tecnológico capitalista nunca tão potente em sua capacidade de “colonizar”, ocupar, habitar e apossar-se da natureza e das mais diferentes formas de saber e de ser (HAESBAERT, 2021, p. 11).

O sistema moderno-colonial ao se apropriar de territórios, acaba promovendo a negação do outro (colonialidade do ser), cuja concretização do poder hegemônico é marcado pela invasão e exploração generalizada, que se reproduz espacialmente, temporalmente e territorialmente, pois a modernidade revela o lado perverso e negacionista da colonialidade. Portanto, “essa maneira de pensar o tempo-espaço tem como referências um imaginário e uma ideologia do progresso que se expressa pelas ideias de desenvolvimento, crescimento, modernização e globalização, entre outras, e que compõe a cosmovisão da modernidade ocidental” (CRUZ, 2017, p. 20).

É impossível pensar a modernidade sem a colonialidade; não dá para pensar nos esplendores e nos triunfos da modernidade ocidental sem pensar na colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza. Essa ideia implica ver a modernidade de forma indissociável da colonialidade. A colonialidade é parte constitutiva da modernidade e não derivativa desta; a colonialidade é seu lado sombrio, oculto e silenciado (CRUZ, 2017, p. 15).

A lógica da modernização e da colonialidade caminham em sincronia, pois ambas revelam violências que estão enraizadas desde a origem da história e da formação de Brasil que foi invadido, explorado e subordinado pelo sistema de dominação capitalista. Segundo Cruz (2017, p.21) “o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves (2005) chama a atenção para a obsessão do imaginário da modernidade pelo novo, pela velocidade, pela mudança, pelo progresso, criando uma justificativa ideológica para todas as formas de violência cometidas em nome do “desenvolvimento” e da “modernização”.

O termo território não existe no vocábulo de nenhuma língua indígena do Alto Rio Negro e do Brasil. Por isso, quando o indígena fala “território”, a pronúncia é em português. Para o Yanomami o seu território é a Floresta a Urihi Të Pë. Assim, este termo só entrou no vocabulário indígena após o contato com a sociedade envolvente, antes não se pensava e não precisava pensar nisto. O território é aqui compreendido sob uma leitura descolonial, a partir de uma concepção da território-corpo (onde têm papel importante pensamentos indígenas), relação entre território e terra (ou Terra), e território como espaço de vida ou de r-existência, denominada de uma ontologização do território, notável entre os povos indígenas (HAESBAERT, 2021).

O território para os povos indígenas é território de vida e de r-existência, que difundida pela leitura territorial do pensamento descolonial, afirma que “como há “zonas” ou “territórios de não-ser”, existem também zonas ou territórios de “não-saber”, aqueles que estão excluídos da difusão e da legitimidade dos saberes ali constituídos” (HAESBAERT, 2021, p. 212). No contexto do território da colonialidade do saber e do ser, que causa invisibilidades e subjugação de povos e grupos étnicos, mostra que a:

dessa distinção entre ser e não-ser, com diversos níveis construídos dentro da hierarquização hegemônica, alguns saberes/territórios são seletivamente –espacial e temporalmente– alçados à condição de (in)visibilidade, em um jogo interseccional que envolve classe, etnia, gênero e geração de quem os expressa. Através dos múltiplos movimentos de resistência moldam-se territórios de r-existência que aqui significam também esses distintos níveis de trânsito entre zonas de não-ser a zonas de ser, zonas tidas como de não-saber a zonas que afirmam seu próprio saber (HAESBAERT, 2021, p. 212-213).

A construção do imaginário colonial reflete as contradições e as desigualdades socioespaciais e territoriais, exigindo dos grupos étnicos a formulação de estratégias de r-existências territoriais. Segundo Massey (2005, p.23), “essa cosmovisão tem algumas consequências na forma como pensamos o espaço, o tempo e a política, pois se trata de uma imaginação (uma conceituação implícita), a qual esconde a possibilidade de analisarmos a produção da desigualdade do mundo que se realiza na atualidade”.

As relações da Geografia com o ensino são íntimas e inextricáveis, embora pouco perscrutada tanto pelos geógrafos como pelos estudiosos da questão escolar (VESENTINI, 1989). Nesse momento a relação da Geografia com as formações de professores indígenas se tornam uma fonte de poder. Segundo Vesentini (1989), no ensino ela preocupa-se com o senso crítico do educando e não em “arrolar fatos” para que ele memorize. {...} inspira-se, sobretudo, na compreensão transformadora do real, na percepção da política do espaço. Em outros termos, o conhecimento a ser alcançado no ensino, na perspectiva de uma geografia crítica, não se localiza no professor ou na ciência a ser “ensinada” ou vulgarizada, e sim no real, no meio onde aluno e professor estão situados e é fruto da práxis coletiva dos grupos sociais (VESENTINI, 1989).

A Geografia está ligada diretamente a relação da educação indígena, no momento que ela se torna libertadora e autônoma, podendo tornar o sujeito dono de sua própria história e compreensão do ser e querer ser indígena. E, por meio do conhecimento do território é imprescindível para a sobrevivência física (material) e imaterial (simbólica-identitária), na qual é entendida a partir da dimensão cultural. Assim, cultura e território são indissociáveis porque representam materialmente e imaterialmente para os povos indígenas como territórios culturais e reprodução da vida, contrariando a lógica da colonialidade.

Descolonizar, entretanto, pode ser ainda mais do que “descapitalizar”, no sentido de lutar contra a des-ordem do capital, a exploração econômica e o aniquilamento de subjetividades, inerentes à “colonização” de todas as esferas da vida promovidas por este sistema. Assim como podemos nos inspirar nas experiências ancestrais dos povos originários para organizar nosso combate e a construção de territórios alternativos, também não podemos esquecer que muitos desses povos, presentes antes da colonização, carregavam (e muitos ainda carregam) marcas profundas do patriarcalismo da violência e da opressão, da própria comunidade ou dela sobre outros povos.2 Muitos desses traços, é claro, foram exacerbados pela sociedade capitalista moderna, em cujo seio, contraditoriamente, também foram gestados inúmeros espaços de resistência e conquista de autonomia.

Descolonizar pode ser vista, assim, como uma dinâmica ainda mais ampla, na medida em que envolve a r-existência (no sentido de resistir para defender a própria existência)3 a todo tipo de dominação, expropriação e/ou opressão, como demonstrado pelas diferentes formas de exploração do trabalho, pelo domínio patriarcal, pelo racismo e pela aculturação compulsória, presentes em diferentes modelos civilizatórios. É apenas por força de sua magnitude, e também por um maior rigor analítico, nos parece, que autores já clássicos neste debate, como Aníbal Quijano, propõem restringir a “colonialidade do poder” ao chamado sistema mundo moderno colonial capitalista (HAESBAERT, 2021, 10-11).

A categoria território na perspectiva descolonial se sobressai na leitura geográfica, sendo indispensável para a compreensão das múltiplas territorialidades (social, cultural, econômica, política e ambiental) dos povos indígenas, pois depende não apenas da sobrevivência, bem como é o princípio para autonomia e o bem viver. Segundo Faria (2003, p.41), a leitura indígena do conceito de território é uma evolução do conceito de terra que adquiriu um cunho político conjuntamente com a ideia de limite.

(...) na concepção tradicional, original não existia o termo território. Não teria sentido discutir isso. O sentido de território só existe após o contato. Antes do contato, o índio podia ir e vir, ele definia sua própria vida, seu destino sem tutela, sem nada e sem pré-condições. Depois do contato, há pré-condições. Estas são impostas pela dominação, pela exploração, pela violência. E você precisa afirmar-se. Antes não, a natureza te garante isto. A terra te garante isto. Por isto a terra é tudo. Depois a terra já não é tudo. Você precisa de elementos políticos. Aí você tem um conceito de território (grifo nosso), que tem sentido de poder, sentido de domínio e de limite. Território é limite. É você limitar o espaço. A terra é uma coisa ilimitada, ilimitável. Ela é tudo. Como você vai considerar limite numa concepção ilimitada de terra que seria o território! Não tem como fazer a relação. Só é possível pensar o território depois do contato porque você limita as coisas. Na visão tradicional posso estar em qualquer ponto do universo, eu estou no mesmo espaço, no mesmo momento, na mesma situação, com os mesmos direitos, com os mesmos deveres, o que não acontece hoje (SANTOS, apudFARIA, 2003).

O fortalecimento dos conhecimentos indígenas e de sua autonomia são os princípios para a construção das formações continuadas dos professores Yanomami em Geografia, na qual a partir da visão de uma Geografia que respeite seus costumes e cosmologias e o seu conhecimento da Geografia Yanomami e a visão descolonial, o princípio do processo educativo para a construção e valorização do conhecimento bilíngue, intercultural e autônomo fará da educação escolar indígena um lugar de conhecimento e resistência.

Como vêm demonstrando vários autores (Haesbaert, Sack, Raffestin, Lopes de Souza, Lefebvre, Coronil, Soja, Porto-Gonçalves, 2001, entre outros), o território não é algo anterior ou exterior à sociedade. Território é espaço apropriado, espaço feito coisa própria, enfim, o território é instituído por sujeitos e grupos sociais que se afirmam por meio dele. Assim, há, sempre, território e territorialidade por meio de processos sociais de territorialização. Num mesmo território há, sempre, múltiplas territorialidades. Todavia, o território tende a naturalizar as relações sociais e de poder, pois se torna abrigo, lugar onde cada qual se sente em casa, mesmo que numa sociedade dividida (PORTO-GONÇALVES, 2017, p. 43).

Na gênese do projeto civilizatório da modernidade está presente uma violência matricial do colonialismo e da colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza (QUIJANO, 2005; CRUZ 2017) que, segundo Quijano (2005), é uma forma de dominação fundada na crença de que existe uma “natural” superioridade étnico-racial e epistêmica do europeu sobre outros povos. “Os povos originários, os afro-americanos e mestiços continuaram submetidos à servidão e à escravização mesmo após a independência. Assim, a colonialidade do saber e do poder não sobreviveu ao fim do colonialismo” (QUIJANO, 2005, p. 15).

A escola indígena não está dissociada da vida da comunidade/aldeia. É um projeto político pedagógico que advém do povo, onde a escola está intrinsecamente relacionada aos aspectos políticos, sociais, culturais, territoriais e econômicos visando o fortalecimento enquanto povo e sustentabilidade territorial e cultural. “Posto que os negros e os índios us-americanos sabem o lugar que ocupam na geografa do poder” (PORTO-GONÇALVES, 2017, p. 42). De forma geral, pode-se dizer que os professores indígenas são os mediadores, por excelência, das relações sociais que se estabelecem dentro e fora da aldeia, por meio também da escola (FONTES, 2016).

Para construirmos uma narrativa descolonial, é preciso pensar o território como esfera da possibilidade da existência da multiplicidade; isso implica, segundo Massey (2005), colocar a questão da diferença no centro do debate político, permitindo pensarmos na existência de múltiplas vozes, múltiplas temporalidades, múltiplas histórias na contemporaneidade, descentrando uma perspectiva etnocêntrica que afirmam histórias locais como universais, mas que são particulares; entretanto, pelo exercício do poder e do saber, subalternizam outras histórias, temporalidades, sujeitos e saberes (CRUZ, 2017).

O território Yanomami é vida, é onde tudo se concretiza e materializa no espiritual e no real, é onde as escolas se tornam parte de uma luta política, ressignificando a escola de conhecimento colonizador para um território anticolonial, de aprendizagem e autonomia. “A expressão “giro descolonial” é uma forma sintética de nomear uma inflexão epistêmica, ética e política nas ciências sociais latino-americanas que coloca o nosso passado colonial como ponto de partida para pensarmos as especificidades de nossas sociedades” (CRUZ, 2017, p. 23).

A importância da formação continuada para os professores em geografia fortalece o conhecimento e reconhece que o mundo não pode ser visto por uma única lógica (universal), mas como uma multiplicidade de culturas, valores, métodos e ciências sem divisões e classificações. Uma única e verdadeira geografia, onde a natureza e a sociedade são integradas sem hierarquia.

Povo Yanomami e a formação continuada para os professores

A escola Yanomami diferenciada busca desenvolver o senso crítico do estudante quanto aos direitos indígenas no Brasil, demonstrando a importância de se identificar como indígena e valorizar a sua cultura, além de ampliar a visão necessária da interculturalidade e a interdisciplinaridade nas suas escolas, buscando sempre alçar novos conhecimentos.

O fortalecimento dos conhecimentos indígenas e de sua autonomia representam os princípios básicos estabelecidos para a construção do curso de Formação Continuada dos professores Yanomami. A formação para os professores está ligada a um processo de autonomia e conhecimento para os professores que há alguns anos vêm reivindicando o retorno do Magistério Indígena para a formação de novos professores e a continuação de sua formação para melhor desenvolvimento dos seus trabalhos em sala de aula, principalmente com o reconhecimento das suas salas anexas perante o estado do Amazonas e a necessidade de mais professores diplomados para assumirem as escolas. Contudo, a reivindicação do povo é por uma educação a partir da sua cultura, costumes e especificidades e como Escola Indígena Yanomami.

No rio Marauiá existe a Escola Indígena Sagrada Família, que é reconhecida pela Seduc/AM e tem como gestão os Salesianos, essa escola está atuante em 07 xapono, sendo a sede no xapono Komixiwë e as salas anexas[3] nos xapono Curuá, Taracuá, Serrinha, Jutaí, Pohoroá e Balaio. E possui 06 salas anexas da Escola Estadual Pe. José Schneider, sendo elas nos xapono Bicho Açu, Ixima, Pukima Beira, Pukima Cachoeira, Raita Centro e Kona Cachoeira. A secretaria de educação do estado não tem reconhecido muitas escolas indígenas pelo Amazonas, a maioria são reconhecidas como salas anexas as quais são vinculadas a escolas não indígenas, que tem como Projeto Político Pedagógico – PPP uma educação formal e sem reconhecimento das línguas indígenas e suas especificidades.

Em 2016 quando as salas anexas foram inseridas na escola Pe. José Schneider, foi firmado um acordo para que as formações continuadas e fossem realizadas pela equipe de uma organização não governamental chamada Associação Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami – Secoya que há muitos anos vem acompanhando esses xapono com o programa de Educação Diferenciada e tem uma equipe que está em campo para acompanhamento das atividades, tendo um maior entrosamento e conhecimento com os professores Yanomami, como também, foi firmado a continuidade das turmas estabelecidas pelo povo Yanomami desses xapono.

A educação intercultural parte de um cuidado nos saberes, pois nenhum povo é igual ao outro ou está em um mesmo lugar e ali sempre permanecerá, a cultura é dinâmica e com as novas tecnologias e a migração constante de indígenas de suas comunidades para as cidades o cuidado para a realização de cursos que fortaleçam a identidade e o reconhecimento indígena requerem uma atenção e principalmente uma metodologia que venha a construir esse processo, chamando atenção para os estudantes e movimento indígena (FONTES, 2016).

Com o reconhecimento das salas anexas pela Seduc no ano de 2016, que são ligadas a Escola Estadual Pe. José Schneider, do município de Santa Isabel do Rio Negro, foi necessário a contratação via Processo Seletivo Simplificado Indígena - PSSI dos professores Yanomami, processo esse organizado pela Seduc/AM. O processo de formação visa trazer uma discussão ampliada sobre o papel do professor como agente político do seu xapono e na Associação Kurikama[4], assim como, o grande processo de diálogos com o movimento indígena e outros sujeitos na luta e construção da educação escolar indígena no Amazonas e no Brasil.

A formação dos professores é a construção do processo escolar Yanomami endógeno, o entendimento e a importância da educação escolar indígena diferenciada, o compromisso do professor Yanomami (como eles se autodenominam) e do xapono com a escola, assim como, assumir seu papel como professor e agente político. Isso é parte de um importante processo de valorização identitária e de crescimento das histórias e do conhecimento deste povo.

Uma das frentes de trabalho é o desenvolvimento de atividades educacionais em uma perspectiva bilíngue, diferenciada, específica e intercultural. A formação de professores Yanomami e o acompanhamento das escolas diferenciadas são partes integrantes dessa dinâmica educacional e pedagógica. Esse trabalho desenvolvido em parceria com os Yanomami tem como base a interculturalidade, reconhecendo-se que o contato com o napë trouxe muitos elementos oriundos da sociedade brasileira e interferências ao mundo Yanomami.

Quando iniciou o primeiro Magistério Yanomami em 2001, o pensamento das lideranças e comunidade era para o aprimoramento do conhecimento das língua portuguesa e da matemática pelos Yanomami para se comunicarem melhor com os napë e para não serem “roubados” pelos comerciantes quando fossem para as sedes dos municípios realizar compras, com o passar dos anos e com o entendimento do que era a escola e seu papel na sociedade, o pensamento das lideranças e da comunidade foi mudando quanto a importância da escola para o povo, foram percebendo que ela poderia ser uma grande aliada no entendimento sobre as leis, gestão do território (principalmente com a demarcação de suas terras), e o entendimento das sociedades indígenas e não indígenas.

Nesse processo, foram entendendo sobre as escolas indígenas diferenciadas e a importância do papel do professor como agente político dentro e fora dos xapono, foi quando os professores e lideranças passaram a falar que o “xapono era a escola e a escola era o xapono”, pois um era a base do outro para a vida Yanomami. Portanto, na perspectiva descolonial, deve-se compreender a relação estabelecida entre grupos étnicos com a terra/território, pois “o modo de vida dos povos originários e/ou tradicionais, os que melhor incorporaram e sempre reconheceram a relevância desse elo” (HAESBAERT, 2021, p. 72).

Para este povo tudo está interligado, nada está dissociado da vida deles, assim como a escola não pode ser pensada fora da vida Yanomami, pois as aprendizagens realizadas dentro da escola fazem parte do processo social, cultural e de vida. O pensar a escola hoje não é apenas para aprender o português e matemática, mas é a construção política e crítica sobre o mundo Yanomami e napë em todas as ciências e seus conhecimentos tradicionais. Ao trabalharem ambos os conhecimentos dentro da escola se fortificam os processos de aprendizagem, o olhar crítico sobre a realidade vivida dentro e fora do xapono e as experiências de se ter em sala não somente o professor contratado, mas também o pajé, a lideranças e as mulheres com seus conhecimentos. É a partir dessa ideia de todos os conhecedores estarem na escola que ela também faz parte do xapono e seu conhecimento e crescimento como Yanomami.

Ao pensarem suas escolas foram estabelecidas regras, como: idade mínima para entrar na escola que é a partir dos 07 anos de idade, pois primeiro as crianças deveriam aprender a educação Yanomami no xapono com seus pais e demais parentes e somente depois de aprendido iriam para a aprendizagem escolar, a escola não seria seriada e sim por turmas por eles estabelecidas, turma Horearewë (aquele que engatinha), turma Upraarewë (aquele que levanta) e turma Rërëarewë (aquele que corre), turmas essas que quando houve a conversa com a Gerência de Educação Escolar Indígena – GEEI da Seduc/Am foram “transformadas” em séries dentro do sistema da secretaria.

A partir desse momento de reconhecimento das salas anexas em 2016, foi necessário cada vez mais pensar a formação continuada dos professores formados no Magistério Yanomami em 2014. Com os planejamentos sendo construídos por formadores napë dentro da Secoya muito se era discutido a importância do fortalecimento identitário e cultural Yanomami nas formações, ao planejar a Geografia não era diferente, pensar a Terra Indígena Yanomami – TIY, sua luta e a construção do Planejamento de Gestão Territorial e Ambiental Yanomami – PGTA era necessário para o desenvolvimento das atividades. Todo esse planejamento fazia parte do processo de não invisibilizar o conhecimento Yanomami e trabalhar a ciência Geográfica.

Como desenvolvimento das formações com os professores Yanomami eram construídas problemáticas junto a eles sobre as aulas e a partir da problemática definida iniciava-se a discussão e a pesquisa junto ao xapono, os pata pata[5], pajés, suwë[6] e também na internet (dependendo do xapono trabalhado poderia ter sinal de internet) e livros, como podemos observar na Figura 3 abaixo em um momento de formação junto aos professores. As discussões traziam pontos evidentes da luta cotidiana deste povo por seu território e pela vida. A invasão garimpeira era um dos principais pontos de discussão e o impacto que trazia para suas vidas, no ambiente – como a contaminação do solo e da água e na saúde – com os aumentos dos casos de malária e a subnutrição, as discussões e a pesquisa ajudavam no entendimento para amenizar os impactos gerados em seu território.


FIGURA 3
Formação dos professores Yanomami no xapono Bicho Açu
Fonte: FONTES, 2018

Algumas problemáticas levantadas durantes as formações dos professores eram sobre a formação do território brasileiro, demografia, educação ambiental, entre outros. Após muitas discussões também eram realizadas atividades com os professores Yanomami para melhor entendimento e todo trabalho realizado com eles também era pensado para serem realizados nas salas em seus xapono, como podemos observar na Figura 4 abaixo com os professores desenvolvendo atividades para conhecimento e saberem como trabalhar em suas aulas.

Em 2019 com a finalização da construção do PGTA Yanomami este documento também passou a ser utilizado nas formações continuadas para o melhor entendimento dos professores e para a discussão sobre as problemáticas levantadas durante os cursos. O Plano de Gestão Territorial e Ambiental também contava com o protocolo de consulta, todo documento foi construído pelos Yanomami, o qual contou com representantes das lideranças dos xapono Yanomami por calha de rio, pajés, mulheres, estudantes, professores, agentes indígenas de saúde – AIS, agentes indígenas sanitários – AISAN, jovens e crianças estudantes, instituições parceiras e agentes do governo.

O PGTA é utilizado nas formações como instrumento pedagógico de conhecimento das necessidades e reivindicações do povo Yanomami sobre seu território e como discussão sobre sua TI, podendo ser discutido em todas as áreas de conhecimento.


FIGURA 4
Professores Yanomami em atividade
Fonte: FONTES, 2019

Ao desenvolver o trabalho com os professores era pensado sempre em perguntar como eles percebem a Geografia e seus conhecimentos sobre a mesma. E a partir dessa discussão que trazíamos o conhecimento napë para a discussão, sempre deixando claro que nenhum conhecimento é maior ou melhor que o outro, mas que ambos são de extrema importância e que unidos podem fortalecer e agregar muito mais no conhecimento e luta do povo.

A Geografia quando trabalhada nas formações visava desenvolver o olhar crítico sobre o território, o conhecimento ambiental e como poderia ser usada na luta do movimento Yanomami e do movimento indígena como construção da autonomia. A metodologia participante utilizada nas formações trazia os professores Yanomami como sujeitos das formações e não somente como receptores de informações, podendo assim, eles fazerem os mesmo em suas escolas com os estudantes, onde esse se torna o sujeito da construção da aprendizagem e o professor orientador neste processo.

Por muito tempo as formações foram processos coloniais nas formações dos professores, onde apenas era repassado o que esses deveriam trabalhar em cada disciplina, não se fazia a interdisciplinaridade e a interculturalidade. Nos últimos anos, a educação escolar indígena diferenciada cada vez mais precisa pensar uma outra formação, seja ela inicial ou continuada, onde o professor seja um orientador para seus estudantes e que possam construir uma aprendizagem sólida e voltada a sua realidade ajudando em suas lutas e autonomia. Nesse contexto, a Geografia proporciona um grande leque de conhecimento e estratégias que influenciam e ajudam os professores em suas lutas como agentes políticos de seus xapono e como referências para seus estudantes a partir de um pensamento descolonial a como fortalecimento identitário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A formação continuada fortalece o professor Yanomami e faz o mesmo perceber a importância do seu papel no xapono como agente político, assim, sendo necessário reforçar cada vez mais as formações (iniciais e continuadas) para então os professores se sentirem como parte fundamental da escola e torná-la e vê-la para si, como sua escola. Com a visão de uma escola Yanomami endógena e descolonial.

O pensar descolonial nas escolas tem ganhado muita força nos últimos anos e fazer parte de uma educação escolar indígena diferenciada é um processo de autonomia não somente para o professor e para o estudante, mas sim para todo o xapono. Ainda não está em um processo totalmente descolonial nas formações e nas escolas, mas pensar e iniciar já está sendo um momento significativo para eles, que muito vem sofrendo com a invasão de seus territórios e o massacre de seu povo, a escola como xapono também faz parte da existência e resistência Yanomami. Hoje, mais importante do que nunca o pensar descolonial, é necessário para a manutenção deste povo como para os napë pë, onde a floresta viva vale muito mais que morta.

Portanto, ao desenvolver a formação continuada em Geografia se trabalha a Urihï të pë como vida, se pensa um território vivo onde o físico e o humano não se dissociam, podendo o Yanomami continuar segurando o céu para que todos vivam em harmonia. Pensar a escola como um agente para o desenvolvimento da autonomia do povo Yanomami.

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Notas

[1] Xapono: Aldeia circular
[2] Napë: Não Yanomami, branco, estrangeiro.
[3] Salas Anexas: salas que estão ligadas a uma escola sede. No caso das salas anexas Yanomami que estão dentro dos xapono, toda sua parte pedagógica ela responde para a escola responsável, Escola Pe. José Schneider, que é escolhida pela Seduc/AM localizada na sede do município de Santa Isabel do Rio Negro.
[4] Associação Kurikama: representante dos Yanomami do rio Marauiá.
[5] Pata pata: velhos, anciões.
[6] Suwë: mulheres.


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