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Bará no mercado: encontros de uma espacialidade cultural religiosa rio-grandina
Bará in the market: meetings of a religious cultural spatiality rio-grandina
Revista Presença Geográfica, vol. 10, núm. 2, 2023
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 10, núm. 2, 2023

Recepção: 29 Abril 2023

Aprovação: 18 Maio 2023

Resumo: As manifestações culturais assentadas na cidade de Rio Grande/RS-Brasil elaboram uma riqueza patrimonial ímpar. E direcionar o olhar para esses elementos culturais é transitar, também, no mundo do sagrado, dos odores, sabores, da musicalidade e da memória e das suas linguagens espacializadas as quais compõe esse espaço urbano. E refletir sobre a divindade religiosa de Matriz Afro rememorada no dia 29 de julho, como o senhor dos caminhos, que carrega as chaves sagradas, o Bará. E a sua relação no Mercado Público Municipal Rio-grandino, leva à incidência de uma história existencialista, ou seja, de um encontro preso não só ao caráter institucional, mas o pertencer do indivíduo frequentador, comerciante e do religioso como seres capazes na sua forma de relacionar-se com o mundo. Portanto, o estudo de caso realizado na cidade do Rio Grande, entre os anos de 2019 e 2022, os quais compuseram parte do cabedal de investigação de campo sobre as espacialidades e territórios de sentidos rio-grandinos. Esta leitura sobre as espacialidades expõe a compreensão desse espaço e suas facetas.

Palavras-chave: Bará, Mercado Público Municipal, Espacialidade Religiosa.

Abstract: The cultural manifestations settled in the city of Rio Grande/RS-Brazil elaborate unique heritage richness. And directing the gaze to these cultural elements is also transiting in the world of the sacred, of odors, flavors, musicality and memory and their spatialized languages which make up this urban space. And reflect on the religious deity of Matriz Afro celebrated on July 29, as the lord of the paths, who carries the sacred keys, the Bará. And their relationship in the Rio-grandino Municipal Public Market leads to the incidence of an existentialist story, that is, of a meeting bound not only to the institutional character, but the belonging of the individual, merchant and religious as capable beings in their own way to relate to the world. Therefore, the case study carried out in the city of Rio Grande, between the years 2019 and 2022, which made up part of the field investigation on the spatialities and territories of Rio Grande’s senses. This reading about spatialities exposes the understanding of this space and its facets.

Keywords: Bará, Municipal Public Market, Religious Spatiality.

INTRODUÇÃO

O espaço como público desponta, em uma visada primária, como fonte do indivíduo, e mais palco da administração e da atuação comunitária, no qual os símbolos são contemplados dentro desta comunhão coletiva da subjetividade humana. A sua dinâmica fugaz transforma as relações espaciais em uma escala de tempo cada vez menos, demonstrando, assim, suas facetas culturais.

A análise a ser apresentada neste estudo exerce uma ponte entre o espaço público e suas espacialidades culturais, esta como “senhora”, portadora de uma linguagem que experiencia o mundo e sacraliza o espaço. E, diante disto, coloca-se em contato também com o plano natural do mundo das divindades. Está na configuração de uma linguagem que, em conjunto, a nomenclatura do mundo religioso exerce seu discurso e suas relações de identificação espacial, expressa, não só nos “ritos” diários considerados formais da sua função primária que, neste caso, é o comércio, mas, principalmente no seu modo de existência do indivíduo.

Com isso, na sua relação tempo/espaço se desenvolvem as afinidades sociais e humanas, ou seja, as transformações e caracterizações da produção da cultura e da história em seus locais. As interações dos indivíduos com o meio são provenientes de espaços socioculturais da existência humana, fruto, ainda, das transformações oriundas do espaço público. Assim, além do espaço ocorre uma disciplina do tempo que envolve os indivíduos nos seus vestígios de comunicação com esses espaços de comunhão coletiva.

Na cidade localizada no Estado do Rio Grande do Sul, conhecida como “Noiva do mar”, devido a sua proximidade com corpos hídricos como o Saco da Mangueira, praia do Cassino, o Canal Norte, que faz a sua ligação com as águas oriundas da Lagoa dos Patos, lâmina de água doce de mamãe Oxum (símbolo de doçura, beleza e riqueza) e o Oceano Atlântico, energia salgada que tudo purifica e limpa, de mamãe Iemanjá. Esta se configura na planície costeira no litoral sul brasileiro, cuja formação representa geologicamente uma “restinga costeira” (VIEIRA, 1983). E nesta localidade surge então uma manifestação cultural em forma de comércio organizado no sul do país, na cidade de veio arenoso denominado Rio Grande.

A sua dinâmica temporal é presente e estabelecida na linguagem citadina, nesse caso, é abordada a rio-grandina. O espaço torna-se articulado e também contemplado por uma fonte de inspiração, cujo valor é determinado, principalmente pelo o vivido. Este contemplado pela experiência do indivíduo e não apreendido como um fator técnico. Portanto, contempla um maior entendimento do mundo e o espaço habitado. Assim, o espaço apresenta como público rupturas e quebras que o indivíduo e a comunidade despontam na sua linguagem como qualitativamente diferente um dos outros.

Deste modo, o espaço público constitui o sentido, ou seja, a linguagem que se pode contemplar do mundo, nos espaços experienciados. Diante desse fator, o mundo natural cotidiano, que é experimentado no Mercado Público Municipal Rio-grandino (MPMRG), é atribuído a um cognoscível, do qual invoca gestos de afetividade e respeito, até de sagrado, pois nele é apresentado um universo que transcende os limites da percepção e compreensão humana.

A construção do MPMRG foi instaurada pelo presidente da província, Dr. Saturminio de Souza Oliveira, em 1841, para a venda dos produtos dos comerciantes e produtores da zona rural que eram comercializados na Praça Júlio de Castilho. No decorrer dos anos o MPMRG, passou por várias mudanças, sendo a mais significativa ocorrida em 1902, para a construção do barracão ao lado para os comerciantes de pescados, a qual foi concluída a edificação do que é denominado a Doca do Mercado no ano de 1940. E a reforma dos atuais chalés nos quadrantes internos em 1959, foi concluída, constituindo assim, na paisagem rio-grandina as edificações do MPMRG e da Doca do Mercado, conforme as Figuras 1 e 2(VIEIRA, 1983).


FIGURA 1
Fechada do MPMRG e da Doca do Mercado
Fonte: Acervo do autor, 2022

De tal modo, o MPMRG também se faz presente diante dos signos e símbolos; pois eles estão inseridos em uma linguagem que os envolvem dentro do cotidiano citadino. Eles envolvem uma forma de eternizar essa linguagem, mas não como uma tradução da cultura como um texto vazio, mas sim de compor elementos que os despertem ao reviver os laços afetivos com a cidade.

Para isso, as ponderações do estudo foram realizadas por meio das atribuições teóricas de: Bourdieu (2008), no campo simbólico; Raffestin (2011), sobre o; Ricoeur (1976, 2006, 2009, 2014), na relação da linguagem espacializada através do discurso; Pereira (2015, 2015a, 2017), no entendimento das espacialidades culturais religiosas; Prandi (2001), Saraceni (2011) e Barbosa Júnior (2013) referente às religiões de Matriz Afro; e Vieira (1983) na compreensão do espaço rio-grandino .

Entretanto, os relatos captados, as opiniões em relação aos signos e símbolos no estudo foram apontadas sob o olhar geográfico para o viés cultural rio-grandino. Assim como “preposição” na forma de texto capitulado, com ação e vivacidade; associado ao campo formado dentro do MPMRG, onde suas espacialidades e símbolos contemplam para visão endógena do movimento de compreensão do espaço público, foi possível abordar.


FIGURA 2
Localização do MPMRG no Rio Grande do Sul e no Brasil
Fonte: Base Cartográfica IBGE, (2021) Google Earth (2021). Organizado pelo autor, 2022

A técnica de pesquisa no trabalho buscou o estudo em lócus com a pesquisa empírica ao referido objeto citado, anteriormente, no período que compreendeu o primeiro semestre de 2019 ao segundo semestre de 2022, na cidade de Rio Grande/ RS – Brasil, para viabilizar uma melhor visita ao postulado teórico ao tema de estudo, por meio de observações e entrevistas abertas realizadas com e visita a instituições de acervo relacionadas ao MPMRG, de ordem pública ou privada.

Este ponto de reflexão foi construído por meio de uma trajetória, cuja composição é fundamentada por meio de observações e de estudos como este, que será oferecido no decorrer dos próximos parágrafos.

PANORAMA SOBRE AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA COM A CIDADE DE RIO GRANDE-RS

A compreensão do espaço é entendida como o local das atividades integrais dos indivíduos, mas não como um receptáculo imóvel e, sim, como dinâmico que acompanha as manifestações promovidas pelos atores sociais, e este apresenta algo que perpassa as relações de mera produção, que nele se desenvolvem no tempo e no espaço, são denominadas de ações ativas, neste caso, que abarcam a religiosidade. Pois, “fala-se de pessoas ao se falar das entidades que compõem o mundo. Fala-se delas como “coisas” de um tipo particular” que os dados olham para o coletivo (RICOUER, 2014, p. 7).

No Brasil, a população, em 19 anos, cresceu 29,92%, segundo o último Censo, no período de 1991 até 2010 e as religiões de matriz afro-brasileira acompanharam este crescente número de pessoas declaradas residentes por religião. Assim, no recenseamento do ano de 1991 foi de um total de 146.815.818 pessoas. No país havia 0,44% de pessoas declaradas como pertencentes à religião da Umbanda e do Candomblé em um total (IBGE, 2013).

Dentro deste cenário, os números das religiões de matriz afro-brasileira aumentam. E, neste panorama, o Censo do ano 2000 apresentava uma população de 169.872. 856. Destes declarados para a Umbanda foram 0,23% e para o Candomblé 0,07% em um total de 525.013 pessoas declaradas pertencentes à religião de matriz afro-brasileira (IBGE, 2013).

Os dados do último Censo para o país apontam um quadro complexo, pois apresentam mais vertentes que compõem as religiões de matriz afro-brasileira. Com isto, a população declarada, no ano de 2010, era de 190.755.799. Destes, 0,30% se declararam como pertencentes à Umbanda e ao Candomblé, 0,21% para a Umbanda, 0,08% para o Candomblé e 0,007% para outras declarações de religiosidade afro-brasileira. Totalizando 117.759 pessoas assumidas pertencentes à religião de matriz afro-brasileira (IBGE, 2013).

E na esfera do Estado do Rio Grande do Sul, os dados dos últimos Censos apontam para números expressivos dentro do contexto nacional. No Recenseamento do ano de 1991, com uma população no Estado de 9.138.453 pessoas declaradas na pesquisa do IBGE[1], para a Umbanda junto ao Candomblé, 1,22% da população citada se assumiram nestas confissões religiosas (IBGE, 2013).

Porém, só no Censo do ano de 2000 foi possível compreender que o número maior de declarados entre as duas religiões estava com a Umbanda. A população do Estado cresceu 11,48% em relação ao recenseamento anterior, a Umbanda apresentava 1,10% e o Candomblé 0,08%. Neste cenário, as religiões de matriz afro-brasileira contabilizavam 121.180 adeptos (IBGE, 2013).

O Rio Grande do Sul é analisado pelo IBGE como Estado com fortes raízes religiosas afro-brasileiras, fator expressado também devido ao modo como as pessoas confessam sua devoção. Um ponto salientando em uma entrevista realizada com a médium de Umbanda. Ela descreveu a respeito de assumir a sua identidade religiosa do seguinte modo:

Olha! Sofrer preconceito nunca sofri pela religião que eu escolhi por pessoas de fora. Não notei, porque até mesmo. Eu não tenho vergonha de assumir que eu sou umbandista. Me perguntam a minha religião. E eu não vou dizer que sou católica, porque não frequento a Igreja católica, porque Deus está em todas as religiões, mas não frequento, então não posso dizer que sou católica, sou umbandista frequento a Umbanda e não tenho vergonha de dizer. Acho que ninguém deveria ter vergonha de falar. Pois tem pessoas que têm medo do que as pessoas vão falar, mas eu não tenho esse medo. Eu acho que eu fiz esta escolha para minha vida e é esta escolha que eu quero continuar não pretendo mudar, nem posso mudar “nesta altura do campeonato”[2]

Os sentidos existenciais dão a esta compreensão do tempo assentado pela religião de Matriz Africana, tais como as tensões dos grupos religiosos e seus praticantes, as angústias, entre outros elementos que compõem o fator da existência humana. Estes fatores coligados aos objetos, ou melhor, as coisas manejáveis que sobre a vertente de historicidade reunida compõem o cenário que alavanca as marcas do passado. Assim, através dessas marcas a feição, delineia-se o “da representação icônica do passado no ato da memória” (RICOUEUR, 2006, p.389).

Quanto a isso, a manifestação cultural religiosa presente no ser religioso e no mundo, ou seja, mostra-se através do seu representar pelos meandros da religiosidade e da sua subjetividade que compõem uma interpretação dos fatos sagrados que configuram uma imagem da religião. Com isso, o entendimento religioso no espaço e no tempo configura-se em uma existência concreta de fatos pontuais da Umbanda.

Neste contexto, a espacialidade presente no discurso dos praticantes compõem uma Geografia e com isso uma ciência presente no vivente falante em curso de uma existencialidade e ainda de uma instituição. Esta última que desponta para que a vida se humanize. Com isso, a geografia se torna um elemento da feição, constitutiva da existencialidade contida nas espacialidades religiosas.

E o território, neste viés, é uma lente importante para ponderar a sacralização dos espaços limitados pelas manifestações da Umbanda. Porquanto, estes espaços são onde as relações do poder se constituem, demarcando territórios e conduzindo espacialidades religiosas que vão ao encontro do sagrado pelos grupos religiosos. E nestas relações, moldadas pelo território sacralizado, são desempenhados os poderes atribuídos, principalmente às Entidades religiosas.

O PODER NO TERRITÓRIO DE BARÁ

No universo das religiões de Matriz Africana, é possível a análise dos poderes territoriais. Estes são elementos de apreciação, os quais são emanados pelas Entidades religiosas e pelos contemplativos através do conhecimento religioso que abrangem. Com isto, o território nas citadas religiões contempla as ações do grupo religioso que demarcam espaços dentro do ambiente, relacionado também aos espaços públicos urbanos da cidade de Rio Grande, para a sua comunicação devocional (PEREIRA, 2017).

E neste universo, observado no modo de território e espacialidades sacralizadas, admite-se uma infinidade de símbolos e signos. E muitos deles, encontram-se relacionados à questão do poder atribuído ao discurso místico, por ser um elemento que apresenta espaços definidos e delimitados a partir da manifestação das autoridades religiosas, conforme apresenta a foto abaixo.

No entanto, é importante salientar que as autoridades religiosas não são analisadas sobre um todo, mas por traços de devoção constituídos de modo público, sem ferir o seu elemento de ocultismo que é um dos traços primordiais desta religião. Porém, com o refletir sobre uma “linguagem mítica que funciona como recurso [...] com o qual se compreende a incompreensibilidade como prova irrefutável do sagrado” nestes espaços (RAFFESTIN, 2011, p.88).

Os espaços sacralizados constituem-se em marcos referenciais para o indivíduo e o coletivo religioso neste sistema de crença, pois ele remete ao status de evocador das potencialidades e das forças das divindades. E estas potencialidades são exercidas em inúmeros momentos da vivência do religioso.

Quanto a isto, o senhor praticante religioso relata o seguinte:

Foi no momento que eu vim aqui e eu comecei a sentir as radiações do Congá, a sentir os fluidos que os meus Guias me passavam, foi quando eu tive a certeza que existia a espiritualidade. A partir do momento que eu senti, eu pude ter a certeza que existia. Foi aí que eu me liguei com a religião. São coisas que aparecem provas para ti, é uma coisa que tu não precisas pedir, simplesmente acontecem na tua vida, as coisas se encaminham. Tu começas a perceber as coisas como elas são. Tu vês a verdade, tu vês as pessoas agradecendo as vitórias que conseguiram, talvez seja tudo um pouco de fé que a pessoa precisa ter para alcançar isso. Em tudo na verdade a fé nos Orixás, a fé nas Entidades, na Umbanda em si. Eu acredito que é a fé que move a Umbanda, que move os umbandistas em si[3].

Pereira (2015) em uma relação de contraprestação, o ser religioso preocupa-se com o domínio divino pela importância que ele representa em sua vivência, em sua constituição enquanto conhecimento. E assim constata a fé e o poder religioso. Conforme o relato acima, se consegue estabelecer relações intrínsecas entre os grupos religiosos de Matriz Africana e o território estabelecido pela religião.

E o território, neste viés, é uma lente importante para ponderar a sacralização dos espaços limitados pelas manifestações da Umbanda[4] e do Batuque[5]. Porquanto, estes espaços são onde as relações do poder se constituem, demarcando territórios e conduzindo espacialidades devocionais que vão ao encontro do sagrado pelos grupos religiosos. E nestas relações, moldadas pelo território sacralizado, são desempenhados os poderes atribuídos, principalmente às Entidades religiosas, porque elas também conduzem a esses espaços de devoção com seu magnetismo.

Deste modo, o território é compreendido sob a visão existencialista da cultura que prioriza a dimensão simbólico-cultural, mais subjetiva. Nela o território é observado como uma apropriação e valorização simbólica da comunidade rio-grandina dos Terreiros sobre seus espaços (PEREIRA, 2015).

A dimensão simbólico-cultural do território é uma reordenação do espaço, ou seja, a ordem que se encontra associada ao sistema de informações que compõem a cultura do indivíduo religioso. Assim, o território ganha status de espaço formado pelos elementos simbólicos da religião de Matriz Africana.

Nesta perspectiva, a identificação dos símbolos, presentes no espaço delimitado pela comunidade rio-grandina, é fundamental para o processo de compreensão da linguagem religiosa da Entidade religiosa do Bará[6]. Porque, nas religiões de Matriz Afro as representações simbólicas de indivíduos e grupos sociais sobre o mundo religioso são imprescindíveis para a orientação destes nos ambientes delimitados pela dimensão simbólica das Entidades, conforme a Figura 3.

Para Ricoeur (1976), a linguagem confere uma forma de falar de mundos diversificados e que apresenta em seu cerne a cultura do homem. Com isto, os signos são mediadores desta forma de manifestar neste mundo, pois ele se engendra pelas temáticas da cultura e da religião principalmente pela ação humana.

Contudo, a linguagem intercedida por signos confirma a polissemia dos símbolos, que faz os sentidos se multiplicarem nas manifestações sociais. E esta manifestação da linguagem, que é exercida também pela mediação simbólica da ação, revela a reflexão sobre o ser (PEREIRA, 2015a).

Portanto, compreender a espacialidade da divindade religiosa Bará é entender as suas afinidades com as mediações dos signos religiosos e o mundo. Pois é dentro deste território que também é exercida a função do pensamento e da transformação dos espectros de mundo, colocando em exercício a consciência de forma reflexiva, pois, “ao se falar da Entidade que compõe o mundo fala-se dela como “coisa” de um tipo particular” (RICOEUR, 2014, p.7).


FIGURA 3
Assentamento do Bará no MPMRG no dia 29 de Junho: Manifestação religiosa frente sul do MPMRG (A); A representação em destaque do símbolo religioso a chave (B); A imagem do Bará ao lado do assentamento permanente no MPMRG(C)
Fonte: Acervo do autor, 2022

E a interpretação do signo religioso torna-se o procedimento de entender os símbolos religiosos pela articulação do explicar e do abranger do território. Porquanto, estes símbolos religiosos também mudam, “mas, o seu princípio subjacente, a atividade simbólica como tal, permanece a mesma” (RICOEUR, 2014, p.123). Assim, a interpretação deste espaço laboral como um documento na assimilação do contexto devocional.

Com isto, a espacialidade da Entidade religiosa é promulgada pelo indivíduo devoto como um eu definido como empírico, por isso transcendental. Pois ela é reportada a uma intersubjetividade presente na comunidade religiosa que vem ao encontro da filosofia do cogito, de um cogito instantâneo, porque só é tratada a identidade do religioso de um modo; “essa identidade é a identidade de um mesmo que escapa a alternativa entre permanência e modificação no tempo” (RICOEUR, 2014, p.19).

Contudo, o simbólico contempla também comunitário que se torna socializado na construção hermenêutica fenomenológica particular da religião e seus lugares sagrados. Por outro lado, num eu que não é sozinho, ou seja, é um produto de um discurso que é social. Porque a religião é um discurso coletivo, segundo a Figura 4.

Neste sentido, a explicação para o cogito instantâneo assenta-se em aspectos da Entidade religiosa como constituinte das qualidades humanas na organização do espaço e da cultura e como uma elucidação da linguagem religiosa. E esta elucidação vem do reconhecimento das forças da Entidade religiosa como uma confissão, ou seja, uma fé e uma crença. Portanto, é através da personalização desta admissão que a comunidade religiosa reconhece os espaços como territórios do Bará.

Este território simbólico também é parte integrante da estrutura do pensamento do religioso. E nasce de imagens emanadas da experiência diária, pois esse é o espaço onde se pode obtê-lo. Pois este realiza e auxilia o pensar, ou seja, no modo como o contemplativo imagina o mundo e determina o que acha importante em selecionar para sua atenção. Em meio aos fatos que constantemente o inundam diariamente (PEREIRA, 2015 a).


FIGURA 4
A representação simbólica da chave dos caminhos do Bará no MPMRG
Fonte: Acervo do autor, 2022

Neste caso, o território do Bará no MPMRG contrai um valor particular, porque ele expõe a dimensão do vivido religioso pelas comunidades religiosas da Matriz Africana. Com isso, ele ainda apresenta as funcionalidades ligadas à identidade e ao conhecimento da oralidade da religião. Assim, o território assentado, através do simbólico do Bará, apresenta-se também como espaço de inversão dos papéis dos atores sociais. Pois, o poder e o prestígio religioso desconhecem o sistema ordinário de classes sociais mundanas, uma vez que ele suspende a realidade social do indivíduo, mas dialoga com ela, levando em consideração somente a valoração religiosa.

Então, o mundo religioso vivido da religião de Matriz Africana pela comunidade dos Terreiros produz a transitoriedade de espaços delimitados, o que auxilia na viabilidade do processo de enraizamento religioso. Com isso, os espaços simbolizados se alternam, e são fortes elementos da religiosidade (PEREIRA, 2017).

Com isto, as manifestações religiosas expressam no território o contato do religioso com o espaço que representa o universo da entidade religiosa. E estes espaços representam o poder e a morada da divindade. Assim, na sacralização do espaço que se configura como um território, o religioso atribui a significação plena dele como sagrado. E isso está presente também na relação com os elementos da natureza, e são visualizados e entendidos hierarquicamente com a representação da Entidade religiosa.

A hierarquia é a força, o elemento da religiosidade, da comunicação do médium com as forças da natureza representadas pelo Orixá. A hierarquia espiritual constitui um dos pilares da Umbanda, pois ela “tem seus fundamentos tanto nas hierarquias divinas quanto nas naturais“ (SARACENI, 2011, p. 45). Assim, nas hierarquias naturais encontram-se os alicerces da magia do Bará.

As Entidades religiosas regem a natureza através dos Orixás naturais por meio da magia natural; o seu magnetismo incide em comunicar-se no seu território de força. Esta comunicação por meio de oferenda em seu território, “ativa seus mecanismos protetores da vida e, após ter feito isso, recebe o auxílio dos seres da natureza” (SARACENI, 2011, p. 57).

Deste modo, o vínculo entre a comunidade religiosa da Umbanda e de Batuque e as Entidades religiosas configura um universo sagrado, no qual a vida encontra-se em toda parte como a sacralidade que institui o território estabelecido pela relação do indivíduo com a divindade. E nele “o simbólico só vêm à linguagem na medida em que os próprios elementos do mundo se tornam transparentes” (RICOEUR, 1976, p.73).

Para Pereira (2015), no que tange à religiosidade como atividade prática no espaço sacralizado, ela coloca em potência o culto aos Orixás e às Entidades espirituais, como energia em forma de autoridade que também torna o espaço um território. Assim, as manifestações dos Orixás e das Entidades espirituais, como forças administradoras desses espaços, são permeadas pela energia da natureza e da ancestralidade. E estes fatores estreitam a relação entre o poder e a linguagem religiosa como conhecimento hierárquico para o indivíduo, pois é delimitada uma espacialidade de comunicação com as divindades religiosas.

Enfim, interpreta-se este simbolismo como revelador do novo nascimento do indivíduo. Assim, a chegada das Entidades no médium configura-se no ordenamento do território do corpo, através dos ritos realizados pelos religiosos no espaço sacralizado que ele reconhece como realidade sagrada.

E a informação encontra-se atrelada aos elementos que compõem a força das divindades no território, agora estabelecido no corpo do religioso. Assim, as informações também ponderam os fatores que integram este espaço em variáveis que estabelecem a afinidade dele com o mundo religioso por meio de suas inter-relações. E por intermédio da dinâmica dos elementos simbólicos, a realidade sagrada configura-se em apropriações territoriais pelas Entidades também diante do corpo do indivíduo capaz e existencial.

Com isto, a eficácia simbólica da linguagem religiosa se expande, na medida em que o religioso reconhece quem realiza, e como pode ser realizada, ou quando toma parte de seu consciente. Deste modo, ele se sujeita a esta energia, como uma contribuição para o assentamento da(s) Entidade(s) em uma conexão ser/divindade. Assim, ele fundamenta externamente também esta potência através da autoridade que lhe é concedida dentro do mundo religioso (PEREIRA, 2015a).

E os sistemas simbólicos da Umbanda e do Batuque revelam um universo não dualista, alicerçado por um ciclo de classes distintas. Este é o fator de uma dinâmica de autoridade, ponto principal para a expressão religiosa, uma vez que essas religiões vinculam o seu sistema simbólico em comunhão aos Seres de Luz, e o que estão à sua procura. E vinculados a este universo simbólico estão os espíritos de seres que estiveram no mundo, os quais são distribuídos em categorias superiores na personificação dos Orixás e das Entidades Espirituais.

Umbanda que no trecho abaixo do poema sobre o território de Exu elucida parte do símbolo religioso:

Um dia Oxalá disse a Exu para ir postar-se na encruzilhada por onde passavam os que vinham à sua casa. Para ficar ali e não deixar passar quem não trouxesse uma oferenda a Oxalá. Cada vez mais havia mais humanos para Oxalá fazer. Oxalá não queria perder tempo recolhendo os presentes que todos lhe ofereciam. Oxalá nem tinha tempo para as visitas. Exu tinha aprendido tudo e agora podia ajudar Oxalá. Exu coletava os ebós para Oxalá. Exu recebia as oferendas e as entregava a Oxalá. Exu fazia bem o seu trabalho e Oxalá decidiu recompensá-lo. Assim, quem viesse à casa de Oxalá teria que pagar também alguma coisa a Exu. Exu mantinha-se sempre a postos Guardando a casa de Oxalá. Armado de um ogó, poderoso porrete, afastava os indesejáveis e punia quem tentasse burlar sua vigilância. Exu trabalhava demais e fez ali a sua casa, ali na encruzilhada. Ganhou uma rendosa profissão, ganhou seu lugar, sua casa. Exu ficou rico e poderoso. Ninguém pode mais passar pela encruzilhada sem pagar alguma coisa a Exu (PRANDI, 2001. p.40-41).

E neste cenário mitológico, sobre o território adquirido de Exu, como Orixá dos caminhos, salienta aspectos simbólicos da devoção rememorados pelos praticantes. E esta rememoração individual ou coletiva do grupo religioso nos Terreiros e também no cotidiano é estabelecida de forma hierárquica sobre o seu plano de irradiação.

Barbosa Júnior (2013, p.45) destaque que:

Seu arquétipo é o daquele Orixá que questiona as regras, para quem nem sempre o certo é o certo, ou o errado é o errado. Assemelha-se bastante ao Trickster dos indígenas norte-americanos. Seus altares e símbolos são fálicos, pois representa a energia criadora e a vigor da sexualidade. Responsável pela vigia e guarda das passagens, é aquele que abre e fecha os caminhos; ajudando a encontrar meios para o progresso além da segurança do lar e protegendo contra os mais diversos perigos e inimigos.

No contexto da hierarquia sobre as Entidades denominadas pelos médiuns como de esquerda, sobre o Orixá Exu irobariano na Umbanda, é discutível e de difícil concepção. É uma divindade que tem seu culto diferenciado, pois são mensageiros entre os Orixás, é o intermediário, senhor dos caminhos. Como reza antigo provérbio, “sem Exu não se faz nada” (BARBOSA JÚNIOR, 2013, p.44). Este Orixá possui uma hierarquia de vibração, na qual os “espíritos manifestados dos seus mistérios manifestam-se em seus médiuns e consultam auxiliando as pessoas” (SARACENI, 2011, p.121).

Portanto, apresenta em seus nomes simbólicos também a indicação de “seus campos de ações e onde devem ser realizadas as oferendas” para estas Entidades religiosas (SARACENI, 2011, p.121). Assim, o Exu estabelece na Umbanda duas funções primordiais que estão ligados ao Orixá do médium que recebe o nome de Exu Guardião. E a outra, está ligada ao guia chefe dos trabalhos do médium que é denominado de Exu de trabalhos espirituais. Estes fatores divinizados estabelecem a hierarquia e o campo de atuação entre as Entidades sacralizadas sobre as linhas hierárquicas de Exu.

Para Ricoeur (2009) a relação simbólica se realiza também no plano da intuição do eidos[7]. Ela não se contém no vivido individual incomunicável, porém aborda a sua articulação interna compreensível, ou seja, sua estrutura universal. Está em um termo, uma significação que vai “ser preenchida mais ou menos quer pela percepção imanente, quer pela própria imaginação dessa percepção quer, por suas variações vai precipitar o sentido” (RICOEUR, 2009, p.10).

O território regido pela força da Entidade religiosa torna-se uma manifestação sentida da relação do religioso com o mundo, mais densa que o aspecto que estabelece a polaridade do sujeito e do objeto. Essa afinidade com o mundo passa por todos os elementos religiosos, alongando-se entre os praticantes e os seres que são denominados de tendências. Pois, uma tendência “é ao mesmo tempo a direção objetiva de um comportamento e a visada de um sentimento, igualmente de um sentimento que direciona o comportamento enquanto sentido religioso” (RICOEUR, 2009, p.294).

Neste viés, os símbolos religiosos determinam-se nos aspectos sensíveis para a investigação do território religioso como um espaço que aponta conceder e reconstruir a diligência interna da religiosidade, porém, dentro da capacidade de projetar-se para o exterior diante da representação do mundo concreto.

E este território, enquanto totalidade singular, é possível compreendê-lo a partir de vários ângulos, porém não de todos os lados ao mesmo tempo. Pois a reconstrução do todo religioso que se faz presente nesta hierarquia religiosa, não se deixa compreender, pois é coberta por um manto; e somente aqueles que adquiriram a conquista da chave da porta de entrada para este mundo, os iniciados, é que são capazes de compreender.

Deste modo, relaciona-se o discurso adjudicado às Entidades religiosas. Isso com suas Linhas de Vibração, através do panteão de Guias alicerçados pelos Orixás que são intermediados pelos Guias dos médiuns os quais constroem, mais que uma narrativa religiosa. Porque eles são uma ponte de ligação no fluir de um território impregnado em diferentes níveis de uma carga simbólica, que alguns espaços parecem assumir, principalmente, um destes conteúdos, o religioso.

E neste universo da espacialidade devocional há uma linguagem não só entre os religiosos iniciados, mas também perante aqueles indivíduos que são seduzidos por esta forma de ver e pertencer ao mundo das religiões de Matriz Afro. E, de certo modo, é acordado o sentimento primário, o sentido do gosto, o anseio e, principalmente, a necessidade de coligar-se a este mundo, ou seja, a forma de compreensão da essência do mundo, o conectar-se ao próprio ser enquanto existência que transcende o material.

No entanto, as duas formas hierárquicas apresentadas nos quadros compõem o mundo devocional do Orixá Bará. E o emprego efetivo da linguagem simbólica, em ambos os casos, tanto o da direita como o da esquerda umbandista, a referência vincula a expressão dos guias espirituais. Estes não são determinados sem um conhecimento de seu contexto de atuação, ou seja, essencialmente sob a situação da interlocução com o espaço e o território divino dentro de um contexto de espacialidade religiosa atribuída ao discurso e à expressão simbólica.

A mediação por meio dos símbolos estabelece a comunicação religiosa e a compreensão das expressões simbólicas no sentido da cultura de Matriz Afro. E estes sentidos são incorporados também os espaços sacralizados que encontram no religioso a influência do poder da Entidade.

Neste panorama, destaca-se a questão de o objeto religioso também representar o simbólico. E de apresentar dois complementares nítidos e fixos que envolvem o objeto sacralizado que são: o natural (devoção) e o religioso-cultural (os símbolos que representam o vivenciar do tempo das Entidades religiosas).

Tal energia simbólica assenta-se por completo por intermédio da crença, pois, é ela que organiza o fundamento do mistério, mas que não é abarcado em um hiato social, porque as crenças e os mistérios professados são parte e interpelam os grupos sociais. E o poder simbólico, apresenta-se como um poder invisível, mas atuante, é exercido pela cumplicidade dos religiosos que lhe permanecem tributários, ou ainda que o exerçam.

Como se pode constatar no relato da senhora Ana Lúcia, religiosa, com 40 anos de vida religiosa, como ela declara: “Pra mim a minha religião é tudo. É assim, a minha base que eu acredito. Eu acredito nos Orixás. Eu acredito nos Caboclos. Acredito naquilo que eu faço muito, tenho muita fé[8]”.

Mas, os símbolos religiosos compõem as percepções humanas, pois esses adquirem o lugar dos episódios tidos verdadeiros conforme apresenta a Figura 4. Eles apresentam-se como a devoção e, mais, a existência de um lugar para completar no inconsciente do praticante, o qual admite a interpretação dos processos que produzem a necessidade da sublimação religiosa. Embora assim, este processo subsiste com o religioso não podendo preencher esse lugar com suas próprias produções, mas somente empregando significantes dos quais não dispõe livremente.

Neste viés, as espacialidades que surgem encontram-se associadas às especificidades religiosas que formam as características necessárias à materialização desse território sacralizado. E estas especificidades são primordiais para a apropriação dos espaços e na consolidação do poder sobre eles e os indivíduos religiosos.

Em Bourdieu (2008), a linguagem é interpretada como uma autoridade que é conduzida sobre as condições de contar com o auxílio daqueles a quem dirige. E por meio da assistência de mecanismos sociais é capaz de realizar a cumplicidade constituída no desconhecimento que constitui toda e qualquer autoridade. A autoridade legítima “reside nas condições sociais de produção da distribuição entre as classes do conhecimento e do reconhecimento próprio do discurso” (BOURDIEU, 2008, p.91-92).

E o território associado à devoção ultrapassa a abrangência projetada por uma autoridade estabelecida no Terreiro, ou seja, a um espaço sacralizado, configurado, assentado no Terreiro, em virtude de princípios que vão ao encontro da história mítica da divindade. Em outros casos, os territórios na Umbanda e no Batuque exprimem a proximidade com a linguagem religiosa, o encontro do religioso nestes espaços e estabelece a existência de um conjunto de bens simbólicos partilhados pela comunidade religiosa regida também pela autoridade mítica.

Em outras palavras, o território no qual a autoridade religiosa se desenvolve é, assim, afeiçoado também pela percepção do grupo religioso. Com isto, o espaço encontra-se presente no espírito daqueles que o aceitam como soberano. Deste modo, ele se demonstra como uma imagem que é comumente territorial, mas não fundamentalmente, porque é existente conforme a Figura 5.

E a autoridade para esta situação, exprime uma uniformização de crenças. Ela é assumida pela Entidade religiosa, “é geralmente resultado de um exercício em profundidade do poder”, pois manifesta a influência religiosa no território (BOURDIEU, 2008, p.92).

Nestes espaços sacralizados, o poder assinala uma virtualidade que estabelece no indivíduo religioso a sua capacidade de exercer a manifestação da sua devoção. Pois, a força que delimita o poder é a fé que desponta como a canalização da potência, na determinação religiosa.


FIGURA 5
Manifestações contra a Intolerância religiosa no MPMRG: Saudação na entrada do território de Bará (A); Caminhada no interior do MPMRG (B)
Fonte: Acervo do autor, 2019

Este fator está unido à especificidade do conhecimento assimétrico produzido pela religião. Esta conduz o indivíduo ou grupo social, a uma compreensão baseada na crença nas Entidades religiosas. E, as verdades apresentadas são indiscutíveis, devido à fé de seus religiosos.

O domínio da linguagem religiosa afere a alguns indivíduos e grupos religiosos um controle deste território religioso. Este conhecimento é transmitido, de geração para geração,sobre a linguagem religiosa; e mais, é também adquirida através de doutrinas sagradas.

Deste modo, as relações de poder, estabelecidas nestes lugares de devoção, constituem-se de forma consolidada dentro dos grupos religiosos que são nos Terreiros, pois uma parte do grupo que constitui a comunidade religiosa traz a iniciação como uma linguagem que afere poder; e da outra parte, o grupo de pessoas que não a possui. Portanto, nos rituais e cerimoniais não têm acesso permanente ao espaço principal destas manifestações, o salão. E mais, não participa da comunicação direta com as Entidades religiosas (as incorporações).

A relação dessa leitura envolve elementos da mitologia da Umbanda. A filosofia de Ricoeur (2006, p.247) apresenta para a leitura da história do mito o seguinte pensamento:

À primeira vista, o mito e a história parecem ser perfeitos contrários. Sem dúvidas são ambos narrativas, e arranjos de acontecimentos reunidos em histórias unificadas que podem, em seguida, ser contadas de novo. Mas o mito é uma narrativa das origens, situado em um tempo primordial, um tempo diferente da realidade cotidiana; enquanto a história é uma narrativa de acontecimentos recentes, estendendo-se progressivamente para incluir os acontecimentos que estão mais longe no passado, porém que se situam no tempo humano.

Ricoeur (2006) acrescenta que as narrativas se desenvolvem em um tempo situado entre o tempo das origens e o dos acontecimentos recentes. E a religiosidade se sobrepõe a este tempo estendendo “seu domínio até incluir um passado mais distante” (RICOEUR, 2006, p.47). Com isso, o mito é uma narrativa da linguagem religiosa a respeito de tudo que cerca o religioso e está associada também à existência humana.

Isso fica evidente, quando aparece mais forte a tendência do religioso em crer em uma autoridade invisível e inteligente presente na natureza. Com isso, ele apresenta uma tendência igualmente forte de dar atenção aos objetos sensíveis e visíveis. A fim de compor essas inclinações, é levada a unir o poder invisível a algum objeto concreto como velas pelo grupo religioso para simbolizar a comunicação com o Orixá.

Diante do contexto, o poder no mundo das Entidades religiosas é como um livro, no qual as falas contidas são símbolos. Os médiuns (iniciados) constituídos de uma capacidade aprendem a ler o mundo. Esses leem com toda a sua corporeidade, através de movimentos que realizam no espaço sacralizado.

O território apresenta uma existência religiosa atribuída à capacidade dos praticantes das religiões de Matriz Africana de destinar também uma funcionalidade sociorreligiosa ao espaço demarcado no Terreiro no contexto da Entidade que nele se relaciona. E por meio desta funcionalidade, as características ao simbolismo religioso são alcançadas e acentuadas.

Mas o poder dessa linguagem também separa esses grupos em categorias hierárquicas, porém os mesmos são unidos através da crença, dos costumes, na forma de tradição e nas leis estabelecidas pela comunidade religiosa de cada Terreiro. Esses fatores também contribuem de forma significativa para o assentamento do poder nestes lugares. O seu limite está atrelado ao dispositivo para comunicar o domínio espacial.

As ligações do ser por representações o atrelam ao mundo religioso, ou seja, a uma dinâmica voltada à linguagem espraiada e lida dentro de um espaço com uma dinâmica espacial dominada nos territórios. Assim, as relações simbólicas, expressas nestes territórios, apresentam-se também como resposta de comunicação devocional. E o indivíduo que não lê o espaço como tal, através desta linguagem, não consegue compreendê-lo. E só abrangem, em muitos casos, visões dualistas, que não lhe permitem enxergar o leque devocional e de poder territorial permeado pela Umbanda entre os Orixás e as Entidades Espirituais.

E nestes territórios, são cultuadas as divindades naturais que transcorrem no espaço simbólico. Pois, os diversos campos atrelados às hierarquias das Entidades religiosas imbricam-se e constituem formas e simbolismos que estabelecem como ponto de constituição religiosa a relação do religioso com os locais de comunicação.

Com isso, o ser humano, através da sua espacialização cultural, constitui formas para a sua comunicação religiosa, em um entrelace cujo objetivo em vigor colocado é o da religiosidade, a qual, através da devoção às suas entidades, está exercida por meio de um plano de sacralização dos territórios.

E os territórios religiosos sustentam-se no espaço, porém constituem espacialidades gerando representações de uma produção espacial, “por causa de todas as relações que envolvem, se inscreve num campo de poder” (RAFFETIN, 2011, p.129). A linguagem pode ser concebida no território como uma ferramenta cujas colocações são intrincadas. É um instrumento de comunicação do sagrado que “pode ser definido como uma propriedade estável ou efêmera que pertence a certas coisas, certos seres, a certos espaços, há certos tempos” (RAFFETIN, 2011, p.108).

Neste sentido, o território religioso é primordial, uma vez que ele expressa “a cena do poder e o lugar de todas as relações” devocionais (RAFFETIN, 2011, p.52). Porém, sem a comunidade religiosa, ele torna-se apenas uma potencialidade configurada em um elemento estático a organizar e a integrar os símbolos religiosos.

Ou ainda, como indica o mesmo autor, “é uma estratégia para estabelecer diferentes níveis de acesso a pessoas, coisas e relações. Sua alternativa é sempre a ação não territorial, e a ação não territorial é requerida em qualquer caso, para dar apoio moral” (RAFFETIN, 2011, p.52).

Desta forma, a proximidade com o território de devoção, está atrelada ao mundo natural, cujo pensamento religioso redimensiona essa natureza às Entidades. Assim, na comunicação, presenciam-se outras desenvolve o pensar no espaço acatado pelo sobre o natural e sagrado pelo religioso. Pois, nestes planos de religiosidade, o território devocional pode ser refletido sobre o domínio da natureza e do mundo civilizado. Assim, são colocadas as manifestações do sagrado como uma forma diferente das realidades alicerçadas fora do mundo religioso.

E estas manifestações religiosas são atos mais que coletivos e sim sociais, ritualizados pela comunidade religiosa, os quais realizam a quebra, ou pelo menos a suspensão temporária das atividades e relações que cercam a vida cotidiana. Pois, elas também interferem em hierarquias, e principalmente em papéis sociais. Assim é possível notar um jogo de forças que se constitui no território da Umbanda de uma resistência tanto pelo poder como pela autoridade. A simbologia alicerçada pela religião faz desaparecer de uma vez por todas a reflexão de que a Entidade religiosa no território assentado pela linguagem realiza um movimento de uma só mão nas comunicações com o ser religioso. Nele são realizadas as trocas simbólicas e as intervenções do religioso que constituem um território em que o nó desta rede é a veneração à divindade que conduz simbolicamente o lugar que é destituído como sua morada, conforme apresenta a Figura 6.


FIGURA 6
Comunicação da comunidade religiosa com a divindade para entrar no território simbólico religioso
Fonte: Acervo do auto, 2022

No entanto, as manifestações religiosas contidas neste território conduzem ao processo também da difusão do aparecimento social, ao qual são adjudicados elementos de traços simbólicos entre os indivíduos que as compõem e a Entidade. Assim, as trocas ainda conferem a junção simbólica em que o símbolo rejunta os elementos de devoção espacializados no território sacralizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os sentidos existenciais dão a esta compreensão do tempo assentado pelo Bará, tais como as tensões dos grupos religiosos e seus praticantes, as angústias, entre outros elementos que compõem o fator da existência humana. Estes fatores coligados aos objetos, ou melhor, as coisas manejáveis que sobre a vertente de historicidade reunida com a espacialidade religiosa compõem o cenário que alavanca as marcas do passado. Assim, através dessas marcas a feição, delineia-se o da representação icônica do passado no ato da devoção.

Quanto a isso, a manifestação cultural religiosa presente no ser e no mundo, ou seja, mostra-se através do seu representar pelos meandros da religiosidade e da sua subjetividade que compõem uma interpretação dos fatos sagrados que configuram uma imagem da religião. Com isso, o entendimento religioso no espaço e no tempo configura-se em uma existência concreta de fatos pontuais também do MPMRG.

Neste contexto, a espacialidade presente no discurso dos praticantes compõem uma Geografia e com isso uma ciência presente também na espacialidade do vivente falante em curso de uma existencialidade e ainda de um território. Com isso, a geografia se torna um elemento da feição constitutiva da existencialidade contida nas espacialidades religiosas rio-grandina.

O vir ao mundo religioso, neste sentido, é o destacar o espaço do MPMRG, porém sem romper jamais, inteiramente, com o cordão umbilical pelo qual ele nutre o homem. E esta relação de existência conduz o homem aos ritos de atitude mental sobre o espaço que torna o sagrado presente. E como tal, o MPRG se apresenta ao homem como fluido, difuso e aberto, mas que sobre a ação da religiosidade se alarga e se alterna, através da interpretação dos seus mitos fundadores, e de seus arquétipos representados nos elementos espaciais, originando os Templos naturais da religião. Aonde a saga do Bará religiosa é rememorada e o espaço torna-se o seu poder de atuação espacial, em um mundo em que o visível é apenas o dom irrevogável de um poder invisível. E a atuação do homem são modos de existência reelaborada em conjunto de fatos religiosos que demonstram o espaço como cenário(s) de uma interpretação mítica do qual o as espacialidades constituídas são elementos de um espaço, agora, mítico, é seu próprio ser, sua alma, que o homem encontra-se frente a si mesmo no mundo através das Religiões de Matriz Africana e a sua ligação ao MPMRG.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA JÚNIOR, Ademir. Para conhecer a Umbanda. São Paulo: Universo dos Livros, 2013.

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas: O que Falar quer Dizer. 2. ed. Tradução de Sérgio Miceli, et. al. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

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PEREIRA, Rogério Amaral. O espaço urbano e os templos afro-brasileiros em Rio Grande-RS-Brasil. Revista Okara: Geografia em debate, Recife, n.3, v. 9, jan. 2015a. p. 482-494. Disponível em:< https://periodicos.ufpb.br/index.php/okara/article/download/24223/14685/58598 > Acesso em: 17 fev. 2016.

PEREIRA, Rogério Amaral.Memórias: encontros de uma espacialidade religiosa. Revista Okara: Geografia em debate, Recife, n.1, v. 11, jun. 2017. p. .3-19. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/okara/article/download/32750/18008/ Acesso em 19 ago. 2017.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Tradução de Cecília França. São Paulo: Atica, 2011.

RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação. Tradução de Artur Morão. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1976.

RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. Tradução de Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 2006.

RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

RICOEUR, Paul. O si mesmo como outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.

SARACENI, Rubens. Os arquétipos da Umbanda: as hierarquias espirituais dos Orixás. São Paulo: Madras, 2011.

VIEIRA, Eurípedes Falcão. Rio Grande geografia física, humana e econômica. Porto Alegre: Sagra, 1983.

Notas

[1] A sigla refere-se ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
[2] Conforme trecho transcrito da entrevista com VARELLA. P. V. A espacialidade religiosa. Rio Grande, 9 abr. 2021. Entrevista concedida ao autor
[3] Conforme trecho transcrito da entrevista com SABBETA, I. C. A espacialidade religiosa. Rio Grande, 09 jul. 2021. Entrevista concedida ao autor
[4] Referente à religião que cultua os espíritos humanos encarnados, na Terra, por intermédio dos Orixás. E nesse culto tem a participação dos espíritos elementares e os espíritos humanos. Assim a definição do nome Umbanda refere-se ao termo em linguagem oriental antiga, e a palavra UM, que significa Deus, e BANDA, também de mesma origem, quer dizer agrupamento, entendido como legião de entidades
[5] É a denominação dada, no Estado do Rio Grande do Sul, à religião afro-brasileira que cultua somente os Orixás, essa oriunda de povos, por exemplo, da Nigéria, Nova Guiné, Angola, entre outros. Tem como nações fundadoras de rituais Jêje, Ijexá, Oyó, Cabinda e Nagô
[6] Em Yorubá significa força, ou seja, se for bem ofertado reage em prol de quem oferece. O seu dia da semana é consagrado na segunda-feira, sua cor principal é o vermelho. As divindades religiosas Barás cultuados nos Batuques no Rio Grande do Sul são: Bará Lodê, o Orixá que mantém a estrutura do templo a sustentação dos terreiros; Bará Adague recebe suas oferendas nas encruzilhadas, seu assentamento é feito dentro do templo; Bará Lanã trabalha nas encruzilhadas, responde também nos cruzeiros de mato; Bará Agelú é o Exú que faz frente dos Orixás de água (Oxum, Iemanjá e Oxalá)
[7] Compreende-se o termo como o reconhecimento dos elementos religiosos da Umbanda e que esse conhecimento é realizado por meio de um acompanhamento dos seus limites, ou seja, como um território. Que coloca o indivíduo como no limite e não no limite do Ser conforme a filosofia platônica
[8] Conforme trecho transcrito da entrevista com ALVES, A. L. do S. O. A espacialidade religiosa. Rio Grande, 17 jul. 2021. Entrevista concedida ao autor


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