“LA TIGRESA MOVIMA”: REPRESENTAÇÕES DA MEMÓRIA E DO   IMAGINÁRIO AMAZÔNICO NA LITERATURA BOLIVIANA DA/NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA

 

"LA TIGRESA MOVIMA": REPRESENTATIONS OF MEMORY AND AMAZONIAN IMAGINARY IN BOLIVIAN LITERATURE DA/NA FRONTEIRA BRASIL-BOLIVIA

 

 

Ester Chao Ojopi Simo[1].

Auxiliadora dos Santos Pinto[2]

 

RESUMO: Este artigo apresenta os resultados de uma análise sobre os elementos do imaginário amazônico presentes no conto, “La tigresa movima”, de autoria da escritora boliviana Gaby Cuéllar Camacho, uma vez que temos por hipótese a afirmativa de que há nestes relatos um intercurso entre o imaginário simbólico amazônico, através da relação do sujeito amazônico para com o espaço fronteiriço em que ele vive. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica do tipo qualitativa, realizada a partir do método descritivo-analítico. Para atingir o objetivo proposto, buscamos subsídios nos estudos dos autores: Loureiro (2015); Albuquerque et ali (2015); Agier (2015); Pesavento (2002); Halbwachs (2003); Bhabha (1998); e outros. Os resultados confirmam nossa hipótese de que na narrativa em tela subsistem elementos do imaginário e da cultura amazônica, da região da fronteira Brasil/Bolívia. Além disso, o estudo do tema é relevante porque contribuirá para a compreensão das narrativas tecidas em um contexto sociocultural rico em reverberações amazônicas ainda pouco desveladas.

 

Palavras-chave: Literatura boliviana. Gaby Cuéllar.  Fronteira. Imaginário.

 

 

ABSTRACT: This article presents the results of an analysis of the elements of the Amazonian imaginary present in the short story, "La tigresa movima", authored by the Bolivian writer Gaby Cuéllar Camacho, since we hypothesize the statement that there is in these reports an intercourse between the Amazonian symbolic imaginary, through the relationship of the Amazonian subject to the border space in which he lives. This is a bibliographic research of the qualitative type, carried out from the descriptive-analytical method. To achieve the proposed objective, we seek subsidies in the authors' studies: Loureiro (2015); Albuquerque et ali (2015); Agier (2015); Pesavento (2002); Halbwachs (2003); Bhabha (1998); and others. The results confirm our hypothesis that in the on-screen narrative there are elements of the amazonian imaginary and culture of the Brazil/Bolivia border region. Moreover, the study of the theme is relevant because it will contribute to the understanding of the narratives woven in a sociocultural context rich in Amazonian reverberations still little unveiled.

 

Keywords: Bolivian literature. Gaby Cuéllar.  Boundary. Imaginary.

 

1 INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta os resultados de uma análise da narrativa “La tigresa movima”, de autoria da escritora boliviana Gaby Cuellar Camacho. O objetivo geral da investigação foi analisar a narrativa, destacando-se elementos de representação do imaginário amazônico presentes na respectiva narrativa.

A pesquisa foi norteada pelos seguintes questionamentos: De que forma a o imaginário amazônico é representado na narrativa “La tigresa movima”? De que forma as representações expostas na narrativa dialogam com uma produção literária cujo contexto sociocultural é pautado por fronteiras geográficas e, portanto, culturais?

O estudo do tema justifica-se porque as manifestações literárias bolivianas produzidas no Norte beniano são permeadas por questões que envolvem o processo de ocupação da Pan-Amazônica, destacando-se relações de poder, migrações, fronteiras e misticismo, que constituem representações singulares vivenciadas pela população fronteiriça. Nesse sentido, o estudo do tema é relevante porque contribuirá para a compreensão das narrativas tecidas em um contexto sociocultural rico em reverberações amazônicas ainda pouco desveladas, além de apresentar as vozes literárias da região e seus conflitos identitários, posto viverem e produzirem na fronteira Brasil-Bolívia.

A pesquisa bibliográfica, com abordagem qualitativa foi desenvolvida a partir da utilização do método analítico. Na coleta, descrição e análise dos dados da pesquisa, utilizamos como aporte teórico-metodológico os estudos dos seguintes autores: Loureiro (2015), cuja obra discute sobre a constituição e as características das narrativas amazônicas, as quais são constituídas, segundo o autor, pela cultura e pelo imaginário; Albuquerque et ali (2015), que discutem sobre a literatura na Amazônia; Agier (2015), que propõe um estudo sobre a Antropologia das fronteiras; Pesavento (2002), que destaca o caráter simbólico da fronteira; Halbwachs (2003), cuja obra discute sobre a constituição da memória individual e da memória coletiva, e outros.

Sendo o imaginário e a cultura elementos presentes na literatura de expressão regional amazônica, é importante considerar que a presença desses elementos na narrativa produzida na fronteira Brasil-Bolívia.

 

2 FRONTEIRA, LITERATURA E MEMÓRIA

Ao discutir sobre a constituição da fronteira, Agier (2015, p. 42) afirma: “O que a fronteira promove, ao mesmo tempo, é um compartilhamento e uma relação. Sua ação é dupla, externa e interna; ela é um limiar e um ato de uma instituição [...]”.   O autor também destaca três dimensões da fronteira: a temporal, a social e a espacial:

Ela é temporal no sentido em que o lugar e a comunidade nem sempre existiram [...]. A fronteira é igualmente social no sentido em que [...] é necessária para o duplo reconhecimento, de si e do outro. [...] Enfim a fronteira é espacial, o limite tem uma forma que recorta o espaço e materializa um dentro e um fora [...] (AGIER, 2015, p.43).

 

Por sua vez, no artigo “Além das fronteiras” (2002), Sandra Pesavento (2002) destaca o caráter simbólico da fronteira, afirmando que ela é delimitada não apenas pelo aspecto geográfico, mas, também, pelos aspectos sociais e culturais. Segundo a autora, a fronteira é constituída em uma dualidade, demarcando as diferenças: 

[...] as fronteiras, antes de serem marcos físicos ou naturais, são sobretudo simbólicas. São marcos, sim, mas sobretudo de referência mental que guiam a percepção da realidade. Neste sentido, são produtos dessa capacidade mágica de representar o mundo por um mundo paralelo de sinais por meio do qual os homens percebem e qualificam a si próprios, ao corpo social, ao espaço e ao próprio tempo. Referimo-nos ao imaginário, este sistema de representações coletivas que atribui significado ao real e que pauta os valores e a conduta. Dessa forma, as fronteiras são, sobretudo, culturais, ou seja, são construções de sentido, fazendo parte do jogo social das representações que estabelece classificações, hierarquias, limites, guiando o olhar e a apreciação sobre o mundo (PESAVENTO, 2002, p. 35-36).

 

No contexto deste estudo, destacamos a fronteira Brasil-Bolívia, onde temos o lado brasileiro e o lado boliviano, com suas singularidades e pluralidades. Entre os dois lados, o caudaloso rio Mamoré, que une as cidades gêmeas: Guajará-Mirim e Guayaramérin. Nesse sentido, seguindo Bhabha (1998), as diferenças culturais existentes na fronteira, podem gerar conflitos:

Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso (BHABHA, 1998, p. 21).

 

Assim, a fronteira é um espaço de contato e interação, onde os discursos literários representam os valores das sociedades nas quais estes se instauram e se caracterizam pelo aspecto ficcional e estético. Dessa forma, a partir da concepção de Loureiro (2000), podemos afirmar que a Literatura Amazônica produzida na fronteira Brasil-Bolívia se diferencia das demais Literaturas produzidas no Brasil. Segundo autor, o imaginário amazônico é marcado por simbologias e cosmogonias:

 Rica de plasticidade e inocente magia, a natureza amazônica se revela como pertencente a uma idade mítica, plena de liberdade e energia telúrica. Situa-se em tempo cósmico no qual tudo brota como nas fontes primevas da criação: a mata, os rios, as aves, os peixes, os animais, o homem, o mito, os deuses (LOUREIRO, 2000, p. 8).

      

Ao discutirem sobre a relação do sujeito amazônico com o seu espaço, Albuquerque et alli (2015, p. 209-210) afirmam que: “[...] a Amazônia, a brasileira em particular, e decantada como expressão dessas idiossincrasias humanas e naturais que tem em grande medida relação intrínseca com os rios, os igarapés, os furos e as águas das chuvas”. Os autores também destacam a influência do regime das águas na normatização da vida do homem amazônico:

  Águas em abundância [...] que invadem seringais, vilas e cidades. [...] atravessadas por múltiplos saberes e experiências que foram se estabelecendo nessa região. Essa relação do homem com as águas Amazônicas é duradoura e carregada de múltiplos sentidos: líricos, místicos, temeridade, esperança, inconstância e tantos outros [...]. Os rios são elos de comunicação, facilitadores de contato [...] os “caminhos que andam” [...] a vida cotidiana tem uma intensa relação material e simbólica com essas ramagens hidrográficas [...] (ALBUQUERQUE ET ALL, 2015, p. 209-210).

 

Quando nos referimos à fronteira Brasil-Bolívia, estamos falando de uma fronteira híbrida, marcada pela presença de inúmeros povos, linguagens e saberes, que se inter-relacionam, se imbricam e se confrontam. A fronteira também é marcada pela presença de rios e florestas, comunidades indígenas e comunidades rurais-ribeirinhas, geralmente, também formadas às margens do rio, sendo, em sua maioria, regidas pelo misticismo e pelo regime das águas, conforme propõe Loureiro (2015).

De acordo com Halbwachs (2003, p. 25), “Nós podemos criar representações do passado baseadas na percepção de outras pessoas, naquilo que imaginamos que aconteceu ou internalizando representações de uma memória histórica.” Contudo, é necessário compreender que as representações construídas sobre a Amazônia devem levar em consideração a heterogeneidade cultural e espacial existente, pois não existe uma única Amazônia, mas várias amazônias.

 

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

A pesquisa, bibliográfica, com abordagem qualitativa, foi desenvolvida a partir do método analítico. Os dados da pesquisa foram coletados e analisados a partir dos pressupostos teóricos e metodológicos da Teoria Literária e dos Estudos Culturais, tendo destaque o estudo de elementos de representação da memória e do imaginário amazônico presentes no conto, “La tigresa movima”, de autoria da escritora boliviana Gaby Cuellar Camacho.

A coleta de dados foi realizada em duas etapas. A primeira etapa da pesquisa foi realizada na biblioteca da Casa de Cultura de Guayaramérin/Beni/Bolívia, a qual resultou na leitura e escolha da obra e das narrativas. A segunda etapa consistiu na leitura e análise das narrativas, priorizando-se os seguintes aspectos: “[...] elementos de linguagem [...] personagens, incidentes, enredo e tema, procedimento realizado não pelo elemento em si, mas pela sua funcionalidade estética, psicológica e cultural. ”

Na segunda etapa será observado [...] o campo de valores socioculturais que a obra selecionou, refletiu, transformou ou rejeitou. [...]. (FERREIRA, 2018, p. 187). Nesta etapa da pesquisa também foram considerados os aspectos de amazonicidade presentes nas narrativas, pois, conforme afirma Conceição (2018, p. 167), “[...] antes das teorias literárias convencionais é preciso buscar o conhecimento complexo e residual de uma Amazônia que vai se formando de forma fragmentada, em que cada parte é composta de um mundo complexo próprio”. A análise dos dados da pesquisa foi fundamentada nos estudos de Loureiro (2015), o qual afirma que a literatura amazônica é constituída a partir de elementos da cultura e do imaginário.

Neste sentido, podemos inferir que os valores sociais e culturais dos sujeitos que habitaram/habitam os diversos espaços denominados amazônicos são diversos e semelhantes, diversos em suas formas de narrar, mas semelhantes por se tratar de processos engendrados nos fazeres diários dos sujeitos, nos seus processos laborais e sociais.

 

3.1 A autora: breve biografia

Gaby Cuéllar Camacho, nasceu na localidade de Porto Suárez, em Santa Cruz, no dia 21 de outubro de 1944. Ela é filha de Julio Cuéllar Montero e Gertrudis Camacho e, ainda em tenra idade, migrou com a família para o Departamento do Beni, onde fixou residência. É casada com o Senhor Susano Mendoza, de cuja união nasceram: Gary Julio, Marco Antonio e Myrian Patricia.

É professora normalista do ciclo intermediário na especialidade de Linguagens Sociais. Graduada em Pedagogia, pela Universidade do Pando, com Pós-graduação em Administração. Também realizou diversos cursos de capacitação em Cooperativismo - Nível Médio e Superior: Voluntariado em CONFIF “Nível Técnico”, Bibliotecologia, Sindicalismo, Psicologia, Relações Humanas, Reforma da Educação e outros.

Obras publicadas: Historia del Beni para estudiantes (2010); Hilvanando Recuerdos (2013); Semblanza de Roger Becerra Cassanovas (Ensayos Paitití 2013); La Diosa Amazónica y el Tlismán (Cuentos Paitití 2014); Pascana del Aguaí y otros poemas (Poemas Paitití 2014); La música Misional Barroca (Ensayos Paitití 2014) e Fantasías y Realidades (2015).

Atualmente é vice-presidente da Sociedade Literária Cultural de Guayaramerín Beni/Bolívia e também secretária Geral do Clube Social de Guayaramerín.

 

3 IMAGINÁRIO E CULTURA NA NARRATIVA “LA TIGRESA MOVIMA”

Neste tópico, apresentamos a análise da narrativa, detendo-nos sobre os elementos ficcionais que desvelam o imaginário amazônico. Também analisamos como é representado o espaço onde o enredo se desenvolve. Estes elementos de análise são imprescindíveis para a validação ou não de nossa hipótese inicial. Além dos elementos acima elencados, o próprio ato de narrar será investigado, uma vez que as narrativas amazônicas são carregas de oralidade, se aproximando do gênero causo, típico nas literaturas de coloração local.

Este aspecto singular da cultura amazônica é destacado por Loureiro (2015, p. 78), que afirma: “A cultura está mergulhada num ambiente onde predomina a transmissão oralizada”. O sujeito amazônico narra por ser condição inata de seu ser, ao contrário do que se possa pensar sobre essa produção.

UNA TIGRESA MOVIMA

UMA TIGRESA MOVIMA

En Sta. Ana del Yacuma, vivía una bruja choquiwa, que hacía toda clase de “trabajos de hechicerías” y macumbas. Era muy aficionada a la bebida y aprovechando esta debilidad, la choca Juana, que era su fiel clienta y seguidora comprándole sortilégios, pócimas de amor y otras brujerías, logro convencerla con regalos de bebidas y dinero en efectivo para que le enseñe a convertirse en jaguar. Quebrantando las leyes chamánicas, la choquiwa, le enseño y le dio su cuero de tigre. Pero sucedió que la mujer “carayana” al convertirse en jaguar era poseída por el maléfico dios Calibaba Kilure, que la impulsaba a buscar niños para devorarlos.

Una tarde, dos Hermanos se bañaban en el río cuando la tigresa atacó y arrastro al más pequeno, hacia la maleza. Desesperado, el Hermano mayor, buscó un arma de defensa hasta que halló um grueso palo con el que los seguió, pero llegó demasiado tarde y aterrorizado, pudo ver que la tigresa ya había devorado a su pequeño hermano y convertida en una mujer, completamente desnuda se dirigía al rio a lavarse la cara ensangrentada.

La desmayó de un garrotazo y la arrastró de los cabelos a la aldea gritando a voz en cuello:

- Aquí está la mujer que se convierte en tigre y há devorado a cuatro niños. Acaba de comerse a mi Hermano!-

Todos salieron a constatar el hecho y luego la ahorcaram y quemaron con su cuero de tigre, que según dicen rugía como una fiera viva.

Desde entonces, ningún choquiwa o chamán traicionó su secreto, de hecho, ni siquiera hablan de él.

Em Sta. Ana del Yacuma, viveu uma bruxa choquiwa, que fazia todo tipo de "trabalho de feitiçaria" e macumbas. Ela gostava muito de beber. Tirava vantagem dessa fraqueza, juana, que era sua cliente leal e seguidora, sempre comprando seus feitiços, porções de amor e outras bruxarias, conseguiu convencê-la com presentes de bebidas e dinheiro para ensiná-la a se tornar uma onça. Quebrando leis xamânicas, o choquiwa, ensinou-lhe e deu-lhe seu couro de tigre. Mas aconteceu que a mulher "carayana" quando ela se tornou uma onça-pintada estava possuída pelo deus maligno Calibaba Kilure, que a instigou a procurar crianças para devorá-las.

Uma tarde, dois irmãos estavam tomando banho no rio quando a onça atacou e arrastou a pequena para a vegetação rasteira. Desesperado, o Irmão Mais Velho procurou uma arma de defesa até encontrar uma vara grossa com a qual os seguiu, mas chegou tarde demais e apavorado, ele podia ver que a tigresa já havia devorado seu irmão mais novo e se transformado em uma mulher, completamente nua ela estava indo para o rio para lavar seu rosto ensanguentado.

Ele a desmaiou de um golpe e arrastou-a pelos cabelos para a aldeia, gritando alto:

- Aqui está a mulher que se transforma em tigre e devorou quatro filhos. Ela acabou de comer meu irmão!

Todos saíram para verificar o fato e depois a enforcaram e a queimaram com seu couro de tigre, que dizem ter rugido como uma besta viva.

Desde então, nenhum choquiwa ou xamã traiu seu segredo, na verdade, eles nem sequer falam sobre isso.

 

Nesta narrativa, o narrador introduz a figura da mulher que lida com forças não humanas, no entanto, essa é caracterizada como bruxa, como mulher que faz feitiçarias e macumbas. Além desta personagem, a figuração do felino também aparece. A bruxa, cuja fraqueza é a bebida, é ludibriada por sua cliente, através de muitos presentes, a ensinar-lhe o modo de transformar-se em uma onça. Sobre a cultura amazônica, Loureiro (2015, p. 78) destaca: “Ela reflete de forma predominante a relação do homem com a natureza e se apresenta imersa numa atmosfera em que o imaginário privilegia o sentido estético dessa realidade cultural”.

A figura do rio apresentada na cena em que os dois irmãos se banham no rio é típica das paragens amazônicas. Nesse sentido, segundo Loureiro (2015, p. 117), “[...] na Amazônia, rio e floresta constituem traços individualizadores [...] vinculados às atividades provenientes das relações com a floresta e o rio: o trabalho nas águas e o trabalho na terra. Atividades motivadoras do devaneio”. O autor também enfatiza que, na Amazônia, a cultura rural-ribeirinha é a mais representativa sendo: “[...] aquela em que podem ser percebidas, mais fortemente, as raízes indígenas e caboclas tipificadoras de sua originalidade, florescentes ainda em nossos dias” (LOUREIRO, 2015, p. 78-79).

Na narrativa, também há marcas identitárias que indicam o espaço cultura de onde se originou a narrativa. Essas marcas são encontradas nas palavras e expressões: choquiwa, Calibaba Kilure, carayana e Sta. Ana del Yacuma. Ambas denotam a origem indígena e boliviana da narrativa. Além destes termos, a palavra aldeia também é utilizada para representar o espaço em que a história transcorre.

Vale ressaltar que embora a prática da “bruxaria” fosse vista de forma pejorativa, havia um consenso quanto ao caráter restritivo dessa prática, a qual deveria ser resguardada por seus iniciados, ou seja, as práticas de “magia” eram respeitadas em seus princípios, denotando que havia, sim, um respeito e um temor por esses saberes ancestrais e sobrenaturais: “Quebrando leis xamânicas, o choquiwa, ensinou-lhe..., Desde então, nenhum choquiwa ou xamã traiu seu segredo, na verdade, eles nem sequer falam sobre isso”.

Conforme Loureiro (2015, p. 80-82): “O que se percebe é que as circunstâncias da vida amazônica vêm regulando peculiares relações entre os homens e o meio [...]. Sob o olhar do natural, a região se torna um espaço conceptual único, mítico, vago, irrepetível [...]”.

A narrativa apresenta uma vertente de fábula muito forte, uma vez que traz uma moral da história. A informação de que a mulher, logo após se transforma em onça, é possuída por um deus e impelida a devorar crianças, para logo depois ser capturada, morta e queimada, parece oferecer aos ouvintes um conselho: não brinquem com as coisas do além, são perigosas e restritas aos iniciados. Na Amazônia:

As características e os elementos locais são universalizados – o local assume a categoria de universal. [...] Há, no mundo amazônico, a produção de uma verdadeira teogonia cotidiana. Revelando uma a atividade cósmica, o homem promove a conversão estetizante da realidade em signos, por meio de labores do dia a dia [...]. Um mundo único real-imaginário (LOUREIRO, 2015, p. 85).

 

É claro que este é mais um elemento presente na cultura amazônica: esta região repleta de florestas e rios apresenta muitos perigos às crianças. Daí o fato de certas narrativas carregarem esse apelo “pedagógico”. Embora, deixemos claro, as narrativas não são construídas com esta finalidade: elas apenas são utilizadas como meio para essa transmissão de ensinamentos.

Ainda assim, o fato de esses saberes e dessas “lições” serem perpetuadas nas narrativas apenas demonstram, mais uma vez, como o saber, o fazer, ou seja, a cultura da região é (re)apresentada e (re)transmitida através de um processo de poetização dos elementos sociais e naturais da região amazônica.

O poético e o mítico sempre apresentam constantes afinidades. Algumas vezes parecem imagens de espelhos paralelos. O mito, muitas vezes, expressa a poética das coletividades humanas, ao relatar sua história idealizada. O poético, por seu lado, mitifica as palavras e os sentimentos, no ato de torna-los poetizados. Mítico e poético são produtos de um imaginário estetizante [...]. O poético e o mítico estabelecem uma das bases em que se edifica a cultura (LOUREIRO, 2015, p. 88-89). 

 

No contexto da fronteira Brasil/Bolívia, é possível notar uma intrínseca relação entre o homem e o meio em que ele vive. Cercado pela natureza, o universo de representação histórica adquire um valor subjetivo e simbólico. Sobre este aspecto, Loureiro afirma que: “Sob a liberdade que o devaneio permite, o espaço é quase como absorvido pelo tempo, assumindo uma leveza que compensa as duras fainas e jornadas na floresta ou nos rios” (LOUREIRO, 2015, p. 80).

Assim, a fronteira geográfica se consubstancia com a fronteira ontológica, ou seja, os mundos natural e sobrenatural se interpenetram de forma constante, inundando o cotidiano de magia e poetizando e (re)significando a magia com os aspectos sociais de determinada coletividade. Dessa forma, Segundo Loureiro (2015):

A cultura amazônica é, portanto, uma produção humana que vem incorporando na sua subjetividade, no inconsciente coletivo e dentro das peculiaridades próprias da região, motivações simbólicas que resultam em criações que estreitam, humanizam ou dilaceram as relações dos homens entre si e com a natureza (LOUREIRO, 2015, p. 92).

                                  

No espaço amazônico, constituído por florestas e rios, as histórias surgem a partir de um vasto sistema de relações sociais, conduzindo a um conjunto de significados simbólicos, conforme afirma Loureiro (2015). Sobre esse aspecto, destacamos que a narrativa acima apresentada possibilita esse intercâmbio entre as relações sociais e o imaginário, uma vez que percebemos que as questões sociais não estão desconexas do simbolismo presente na forma como os narradores apresentam seus espaços e culturas.

  

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa objetivou a realização de uma análise da narrativa “La tigresa movima”, de autoria da escritora boliviana Gaby Cuéllar Camacho, visando a identificação de elementos de representação do imaginário amazônico presentes na respectiva narrativa.

Constatamos que o imaginário amazônico representado na narrativa é constituído e marcado pela presença de elementos que representam relações do humano e não humano, do natural e do sobrenatural, de onde emanam simbologias e cosmogonias próprias da cultura amazônica.

Os resultados da pesquisa também evidenciaram que a região fronteiriça Brasil/Bolívia é atravessada pela fronteira entre o imaginário simbólico que permeia a cultura amazônica e os saberes e fazeres dos sujeitos amazônicos, que instituem valores e convenções sociais através de uma amalgama entre o imaginário e o sociopolítico.

 

REFERÊNCIAS

AGIER, Michel. Migrações, descentramento e cosmopolismo: uma antropologia das fronteiras. São Paulo: Unesp, 2015.

 

ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de; NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia Maria Gomes. Literaturas e Amazônias: colonização e descolonização. Rio Branco: Nepan Editora, 2015.

 

BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

 

CONCEIÇÃO, Márcio Fernandes. Expressão e cultura amazônica na literatura. In: Metodologia da pesquisa em estudos literários [recurso eletrônico] / Organizado por Cássia Maria Bezerra do Nascimento et al. - Manaus: FUA, 2018. Formato PDF. Acesso em: 20 nov. 2022.

 

FRAXE, Therezinha de Jesus Pinto. Cultura cabocla-ribeirinha: mitos, lendas e transcultural idade. São Paulo: Amablume, 2004.

 

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

 

HALL, STUART. Cultura e representação. Trad. Daniel Miranda e Willian Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio: Apicuri, 2016.

 

LOUREIRO, João Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Obras reunidas. Poesia I. São Paulo: Escrituras Editora, 2015.

 

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Além das fronteiras. In MARTINS, Maria Helena (Org.). Fronteiras culturais – Brasil, Uruguai, Argentina. Cotia, SP: Ateliê editorial, 2002.

 

 

 


[1] Aluna do Curso de Mestrado em Estudos Literários, do PPGMEL. Graduada em Letras – Língua Portuguesa e suas respectivas literaturas, pela Fundação Universidade Federal de Rondônia, Câmpus Jorge Vassilakis de Guajará-Mirim. Membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares das Fronteiras Amazônicas-GEIFA.

 

[2] Doutora em Letras- Literaturas de Língua Portuguesa, pelo IBILCE/UNESP/SJRP. Mestre em Linguística, pela UNIR/Câmpus de Guajará-Mirim. Professora Adjunta do Departamento Acadêmico de Ciências da Linguagem do Câmpus de Guajará-Mirim, da Universidade Federal de Rondônia/UNIR. Vice-Coordenadora do Grupo de Estudos interdisciplinares das fronteiras amazônicas-GEIFA.

 

Revista Culturas & Fronteiras - Volume 7. Nº 1 - Janeiro/2023

Grupo de Estudos Interdisciplinares das Fronteiras Amazônicas - GEIFA /UNIR

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