Revista Culturas & Fronteiras - Volume 5. Nº 9 - Dezembro/2023
Grupo de Estudos Interdisciplinares das Fronteiras Amazônicas - GEIFA /UNIR
Disponível em: https://periodicos.unir.br/index.php/culturaefronteiras/index
TERRITORIALIDADES KAXARARI E SUAS CONSTRUÇÕES
IDENTITÁRIAS
TERRITORIALIDADES KAXARARI Y SUS CONSTRUCCIONES DE IDENTIDAD
Geane Ferreira Leite
1
Maiza Soares da Silva
2
RESUMO:
A pesquisa realizada dentro do projeto "Viver Kaxarari", busca compreender a identidade e a
constituição socioespacial da população na Terra Indígena Kaxarari, destacando o papel das
mulheres, jovens e anciãos. O método utilizado é a fenomenologia, de Gaston Bachelard, e
metodologias como revisão bibliográfica, trabalho de campo e entrevistas. O trabalho de campo
na Aldeia Barrinha revelou a influência da representação estereotipada do indígena na
educação, valorização da língua materna e a preservação de tradições como elementos
fundamentais para a construção da identidade e resistência cultural. Na Aldeia Marmelinho, por
sua vez, a presença da religião protestante impacta na vida cotidiana da comunidade, levantando
preocupações sobre possíveis rupturas culturais. Os Kaxarari, reduzidos ao longo dos anos,
enfrentam desafios na preservação de sua língua e cultura e, neste artigo, buscamos destacar a
importância dos saberes indígenas na resistência contra imposições culturais e na luta pelos
direitos territoriais. A relação entre a exploração da natureza e a insegurança alimentar é
discutida, evidenciando os impactos da desigualdade na vida dos indígenas. Neste texto,
buscamos destacar a importância de valorizar a cultura indígena e reconhecer a contribuição
dos saberes ancestrais para construir relações mais equilibradas com a natureza.
Palavras-Chaves: Território, Identidade, Kaxarari, Artesanato.
RESUMEN
La investigación realizada dentro del proyecto “Viver Kaxarari” busca comprender la identidad
y constitución socioespacial de la población en la Tierra Indígena Kaxarari, destacando el papel
de las mujeres, jóvenes y adultos mayores. El método utilizado es la fenomenología, de Gastón
Bachelard, y metodologías como la revisión bibliográfica, el trabajo de campo y las
entrevistas.El trabajo de campo en Aldeia Barrinha reveló la influencia de la representación
estereotipada de los indígenas en la educación, la valoración de la lengua materna y la
preservación de las tradiciones como elementos fundamentales para la construcción de
identidad y resistencia cultural. En Aldeia Marmelinho, a su vez, la presencia de la religión
protestante impacta la vida cotidiana de la comunidad, generando preocupaciones sobre
posibles rupturas culturales. Los Kaxarari, reducidos a lo largo de los años, enfrentan desafíos
para preservar su lengua y cultura y, en este artículo, buscamos resaltar la importancia del
1
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Rondônia- UNIR. Email:
geanne.leite@unir.br
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Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Rondônia- UNIR.
Email:arqmaizasoares@gmail.com
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TERRITORIALIDADES KAXARARI E SUAS CONSTRUÇÕES
IDENTITÁRIAS
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conocimiento indígena en la resistencia a las imposiciones culturales y en la lucha por los
derechos territoriales. Se analiza la relación entre la explotación de la naturaleza y la
inseguridad alimentaria, destacando los impactos de la desigualdad en las vidas de los pueblos
indígenas. En este texto buscamos resaltar la importancia de valorar la cultura indígena y
reconocer el aporte de los conocimientos ancestrales a la construcción de relaciones más
equilibradas con la naturaleza.
Palabras clave: Territorio, Identidad, Kaxarari, Artesanía.
INTRODUÇÃO
Para compreender a Amazônia Brasileira é necessário considerar sua estreita relação
com os objetivos geopolíticos do tempo passado e do presente, bem como o modo de vida
das/nas comunidades tradicionais. Nesse sentido, a região é marcada por peculiaridades e
aspectos estruturantes, entre as quais temos: a elevada desigualdade socioeconômica, o
transporte fluvial utilizado por uma considerável parcela da população/cidades e a acentuada
heterogeneidade que compreende desde cidades praticamente isoladas a modernos centros
urbanos.
Nesse contexto, “a diversidade ambiental e biológica são temas recorrentemente
evocados para caracterizar as singularidades da Amazônia. É assim desde os tempos remotos e
serviram, muitas vezes, como justificativas para intervenções na região” (Val, 2009, p. 3) ou
seja, conhecer as representações identitárias dos povos amazônicos e seus contextos inclui
considerar um universo de ambiguidades, tendo em vista a insistente intenção de padronizar a
Amazônia ao restante do Brasil sem reconhecer a região partindo de sua singularidade cultural.
Os povos originários têm nos recursos naturais sua condição para reprodução da vida
em seu aspecto cultural, social, religioso, ancestral e de subsistência. Nesse sentido, o projeto
“Viver Kaxarari” organizado pela Universidade Federal de Rondônia por meio dos Grupos de
pesquisas: GepGênero, GepCultura e Genteh em parceria com a FAPERO e AMASUL,
juntamente com as proponentes deste artigo apresentam-se com o objetivo de compreender a
constituição socioespacial e identitária da população que vive na Terra Indígena Kaxarari
considerando a relevância do papel das mulheres, dos jovens e dos anciãos, nos quais possuem
perspectivas específicas para o fortalecimento da sua cultura.
METODOLOGIA
O método adotado na pesquisa transcorreu pela fenomenologia em Gaston Bachelard
(1993), que exige de pesquisadores a atenção em explicar o fenômeno a partir de um olhar
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filosófico, fenomenológico e geográfico, que muitas vezes se apresenta oculto. na articulação
dos procedimentos metodológicos foram feitas revisão bibliográfica, trabalho de campo,
relatório de campo, registro fotográfico e transcrição das entrevistas coletadas. O trabalho de
campo ocorreu em períodos do ano de 2022 e percorreu até o ano seguinte, em 2023. Assim,
vamos discorrer sobre o processo da pesquisa considerando as visitas realizadas durante estes
dois períodos com enfoque distintos.
Nosso recorte espacial é o Território Indigena Kaxarari composto por dez aldeias, nas
quais destacamos neste trabalho duas que são: Aldeia Barrinha e Marmelinho. O Povo Kaxarari
em 1910, tinha uma população estimada de 2 mil indígenas e localizavam-se na fronteira dos
estados do Amazonas, Acre e Rondônia. Desta época até hoje, devido aos violentos ataques e
às epidemias, os Kaxararis foram reduzidos a menos de 600 pessoas; a língua do povo Kaxarari
é da família Pano, semelhante ao idioma falado pelos Yaminawa, Kaxinawa, Yawanawa,
Nukini, Katukina e Poyanawa (FUNAI, 1997). Uma vez que a constituição das identidades é
um campo de batalha, como afirma Bauman (2005 p. 83) “sempre que se ouvir essa palavra,
pode-se estar certo de que está havendo uma batalha”, cenário comum na vida dos povos
originários que vivem em constantes lutas por seu território e modos de vida desde os tempos
de colonização.
DISCUSSÃO
A decolonização de mentes representa uma estratégia que aponta para uma construção
e recriação de um novo sujeito. Tendo em vista que a interculturalidade despeja horizontes e
abre caminhos que enfrentam o colonialismo presente e convidam a criar posturas e condições,
relações e estruturas novas e distintas (Klondy, 2020). Neste contexto, os saberes que os povos
indígenas utilizam, apresenta-se como uma possibilidade, que se opõe diretamente às relações
de poder e estruturas que naturalizam as assimetrias e desigualdades sociais, e serão
apresentados nos próximos tópicos por meio das nossas compreensões diante das observações
e entrevistas do campo.
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PARA O FORTALECIMENTO DA
TERRITORIALIDADE
O primeiro trabalho de campo na Terra Indígena Kaxarari, ocorreu no dia 18 de abril de
2022 (segunda-feira), Aldeia Barrinha, a viagem durou em média sete horas da cidade de Porto
Velho até a terra indígena, devido às obras de manutenção em trechos na BR 364, fortes chuvas
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e aos diversos problemas estruturais no ramal. Entretanto, a observação da paisagem ao longo
do trajeto restituiu todo o cansaço e encantou os sentidos. Ao chegar na comunidade, a
presidente da associação OFIKK (Organização da Família Indígena Kaibú Kaxarari), Sra.
Zilma, nos recebeu cordialmente, apresentou as instalações da escola que serviriam de
alojamento para a equipe.
No ambiente escolar, que atende ao Ensino Fundamental I na aldeia, observamos a
ludicidade em uma das salas, típico em salas de ensino infantil. Entretanto, ausência de
materiais que remetesse à cultura local, uma vez que apesar de haver gravura representando
indígenas, este ainda apresentava estereótipo do indígena seminu e infantilizado, destacado na
figura 1.
A representação do/da indígena ainda é reflexo de uma concepção colonizadora,
partindo de uma suposta ‘verdadeira cultura’ que supõe que todo o diferente é exótico e
folclorizado. A identidade cultural criada nesse panorama, remete a uma posição ‘inferior’, que
destina o olhar para o outro verticalmente e pejorativamente.
Figura 1: Sala de aula 01 - Gravura na parede
Fonte: Projeto Viver Kaxarari (2022)
Na segunda sala de aula, encontramos em exposição atividades significativas que traziam
em destaque a língua materna do povo Kaxarari (Figura 2). Existe uma grande diversidade
linguística no Brasil, e sabemos que desde os tempos da colonização não se fala somente o
Português Brasileiro, mas várias línguas, e é imprescindível destacar que estas línguas não
devem ser apontadas como “dialetos”, uma vez que supõe que estes idiomas seriam menos
desenvolvidos e/ou inferiores às línguas intituladas “verdadeiras”. Desse modo, atividades
como as que foram registradas valorizam e fortalecem sua língua, além de rebater concepções
de língua indígena como dialeto.
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Figura 2: Desenho mostrando o corpo humano na língua Materna
Fonte: Projeto Viver Kaxarari (2022)
Assim, o homem ao se inserir em práticas discursivas, é capaz de significar-se e
significar, ou seja, define a permanência ou a continuidade de uma referida posição na realidade
na qual vive. Dentro dessa ótica, o autor Moita (2002) reforça a ideia de relação direta entre
linguagem e identidade, uma vez que ambas se constroem mutuamente.
ONTOLOGIA KAXARARI: EXISTÊNCIA E RESISTÊNCIA
O trabalho realizado durante a visita na Aldeia Barrinha, as lideranças que estavam
presente em assembleia e apresentaram suas demandas, tais como: as ssimas condições do
ramal, único meio para deslocamento entre aldeias e distritos; fortalecimento da participação
entre as aldeias para elaboração de projetos por meio da associação; dificuldade das gerações
em manter a língua materna; importância de união entre as aldeias para o fortalecimento do
povo Kaxarari e de seu território; importância das trocas de experiências e o valor da língua
materna. Dentre as entrevistas realizadas destacamos neste artigo a conversa com a sra. Maria
da Costa Kaxarari, uma vez que nos trouxe referências significativas dos modos de constituição
da sua cultura.
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Figura 7: Sede de Reuniões da OFIKK na Aldeia Barrinha
Fonte: Projeto Viver Kaxarari, 2022.
Nossa entrevistada Maria (48 anos), casada com o Cacique Miguel da Costa Kaxarari,
é mãe de dois filhos, sendo estes de 15 e 5 anos de idade, residem na Aldeia Nova. Falante da
língua Kaxarari como primeira língua, é agricultora familiar e seus produtos o para consumo
próprio, já o cacique Miguel é professor da rede pública de ensino.
Iniciamos dialogando sobre cultura e tradições e em alguns momentos tivemos que
reformular as questões uma vez que existiam “termos” no questionário que não eram
familiares ao vocabulário da entrevistada. Perguntamos a respeito dos significados das
pinturas e grafismos e ela respondeu que “é importante, é alegria”. Ela relata que em
momentos mais difíceis e de tristeza não realizam a pintura, tendo em vista que a pintura
corporal (grafismo) carrega uma simbologia que perpassa os traços, envolvendo sentimentos
que são representados e expostos. Cada clã (grupo familiar) possui seu próprio grafismo, com
traços e cores específicas.
Com relação ao sagrado, perguntamos se havia alguma recomendação alimentar, ao qual
respondeu: “comem junto, porco do mato”. A partilha dos alimentos é um momento importante
e sagrado, principalmente naquela região em que a floresta já não supre todas as necessidades
alimentares de seus moradores, tornando a confraternização de alimentos um ato de amor e
devoção ao sagrado. Ainda sobre o sagrado perguntou-se sobre como Deus seria, ela nos
respondeu: “Tsurá bom. Continuamos perguntando se Deus (Tsurá) era justo e sehavia
punição a quem fazia algo de errado, e de imediato respondeu: “não Tsurá bom, não faz mal”,
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nesta parte a entrevistada foi firme em defender a simbologia/imagem de Deus, aqui o
entendimento que o amor do sagrado é incondicional e acessível a todos.
Munduruku (2009, p. 20) evidencia essa relação contrastante entre o modo ocidental de
compreender a vida e o modo dos povos indígenas, destacando que talvez nada disso faça
sentido para o ocidental acostumado com o pensamento linear, quadrado, senhorial e
possessivo. Não importa. Nunca fomos entendidos mesmo. E ainda assim sobrevivemos”. Na
contemporaneidade, a desigualdade marca o desequilíbrio nas relações sociais, na utilização
dos recursos naturais e culturais. Ora, o modelo de progresso apresenta duas grandes
consequências: uma de tratar os recursos da Terra como inesgotáveis e a outra de que apenas
uma pequena parcela da humanidade acumule bens produzidos com o sofrimento e a morte e a
exploração de pessoas e da natureza.
Na fala da nossa entrevistada evidenciamos que a exploração da natureza, das águas, do
desmatamento influencia, principalmente, a vida dos povos indígenas. Maria destaca as
mudanças na natureza nos últimos anos: “sim, muita chuva, muito sol e pouco vento. Pouca
caça e pouco peixe”. Nesse sentido, a insegurança alimentar é um dos problemas que vem junto
com a o preservação da floresta, assim como as mudanças climáticas, e se faz necessário
combater as injustiças, os privilégios e os mecanismos que geram a desigualdade, provocados
por um sistema econômico que se apropria da vida em todas as escalas. Na visão cosmológica
indígena o que prevalece é a vida e os povos entendem a necessidade da auto realização da
natureza. O que interessa é o equilíbrio e isso intriga a visão materialista da cultura ocidental
(Baniwa, 2016).
Após a entrevista com a Sra. Maria, fizemos algumas perguntas ao seu filho Galdino
(15 anos de idade). Primeiro perguntamos qual sua expectativa para o futuro. Ele nos respondeu:
“Parei de estudar, não tem ensino médio aqui. Quero ser professor”. Neste momento, vimos que
ele entende a necessidade da educação para realizar o sonho de lecionar, uma vez que garante
aos indígenas e suas comunidades reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de
suas línguas, bem como o acesso às informações e conhecimentos das mais diversas áreas.
Quando perguntado sobre as dificuldades na aldeia, nos respondeu: “Estrada ruim, não
tem professor na escola, falta um posto de saúde na aldeia”. Desse modo, é possível perceber
que ocorre uma negligência por parte do Estado em suas esferas de poderes, no cumprimento
dos Direitos básicos como direito de ir e vir, saúde e educação. A falta da garantia de direitos
dos povos indígenas em seus territórios remete aos tempos da colonização com o projeto de
aniquilação das etnias e apesar dos avanços na conquista de direitos, ainda existe uma tentativa
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de invisibilizar a resistências dos povos indígenas e se faz necessário reforçar o grito de que o
Brasil é terra indígena.
Também buscamos ouvir a filha de 5 anos de idade da Maria, nossa entrevistada em
destaque. Pedimos a ela que nos contasse por meio de um desenho sobre o lugar onde vive.
No desenho (figura 4) podemos observar vários pontos coloridos que representavam os mais
diversos animais como cachorro, aranha, peixe, borboleta, formiga, macaco e, inclusive, um
pinguim. Nesse sentido, com base em Bachelard (1993), o sujeito percebe o espaço por meio
da imaginação, que vai além da geometria. O espaço trata do vivido, da experiência do ser, em
toda sua totalidade e parcialidades da sua imaginação. Desse modo, a lógica infantil e a
imaginação criam possibilidades de novas realidades sem limites ou fronteiras.
Figura 4: Família da Maria Kaxarari
Fonte: Projeto Viver Kaxarari, 2022.
Dentro dessa perspectiva, acreditamos que os indígenas com suas experiências
sustentáveis oriunda de saberes ancestrais podem orientar futuras gerações e assegurar a
existência humana em equilíbrio, sob os princípios da reciprocidade, fraternidade, da
convivência e respeito ao planeta (KOPENAWA, 2015). Frente a esta difícil tarefa que é
modificar um modelo consolidado da sociedade globalizada, as modificações no cotidiano
podem ser voltadas para o restabelecimento das relações sociais e com a natureza, por isso é
importante percebermos as próprias subjetividades e os problemas da homogeneização da
humanidade.
DA CULTURA A FÉ: CAMINHOS ENTRE O DE FORA E O DE DENTRO
Em 2023, na segunda parte desta pesquisa, o trabalho de campo foi realizado na aldeia
Marmelinho, Terra Indígena Kaxarari. No contexto da organização espacial da aldeia
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Marmelinho foi possível notar que a comunidade mantém seus traços indígenas, mas com uma
forte influência da cultura não indígena. A presença da religião, especificamente do segmento
religioso protestante, resultou em grande influência no modo de vida dessas pessoas, que pode
ser visto com clareza na reprodução arquitetônica do local.
Em um diálogo com o Sr. Domingo, cacique da aldeia Marmelinho, e sua esposa, a Sra.
Rita, durante a compra de peças artesanais, pudemos aprender um pouco mais sobre o artesanato
da família, a vivência na comunidade e suas demandas. Quando perguntados sobre o modo de
vida, com a entrada da religião na comunidade, queríamos saber como foi sua aceitação entre
os moradores do local, haja vista que poderia impactar sobremaneira em suas vivências, seus
ritos, suas crenças e seus métodos.
O entrevistado Domingo analisa a introdução da igreja evangélica na comunidade como
algo positivo. Ele enxerga a igreja como uma bênção para eles e conta que trouxe benefícios
para a comunidade, uma vez que eles passaram por mudança em seu comportamento.
A autora Márcia Alves, em seu artigo “Sobre o conceito de espaço vivenciado: refletindo
as espacialidades a partir das experiências emocionais”, fala sobre a emoção e a confirmação
simbólica como agentes da espacialidade e que o mundo é permeado pelas emoções, fazendo
parte do mundo da cultura e dando sentido e significado ao ser simbólico. Considerando isso,
concluímos que a religião se tornou parte de sua cultura, uma vez que “o espaço, portanto, não
é um meio estranho, mas é onde nos sentimos em casa e, assim, torna- se espaço vivenciado”
(ALVES, 2020).
A preocupação que existe em relação a introdução dessa religião é que no processo de
conversão dos indígenas ao cristianismo, possa haver alguma ruptura com a sua cultura ou com
a sua identidade. Munanga critica a imposição cultural do ocidente sobre as outras culturas e
defende que “é a partir da tomada de consciência dessas culturas de resistência que se constroem
as identidades culturais enquanto processos e jamais produtos acabados” (MUNANGA, 2003).
Silva (2017) afirma que “o símbolo e a forma simbólica possuem uma ritualística lógica
comum, cujo atributo é dar sentido à vida e às múltiplas relações com o espaço” e quando
encontramos a imposição da cultura religiosa eurocêntrica, podemos notar um distanciamento
com a cultura territorial, o que pode ser visto como perda da identidade, uma vez que as
característica de um povo “apresenta a territorialidade como resultante do espaço de ação e
experiências socioespaciais como realidade material e imaterial construída simbolicamente
pelos coletivos” (SILVA, 2017).
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Retornamos o foco para o artesanato, que representa a cultura Kaxarari e ajuda a
preservar suas características, conhecimentos e saberes. A primeira peça que apreciamos, foi
um paneiro pequeno que, segundo a dona Rita, foi feito de cipó titica, material muito utilizado
entre o clã do Pássaro do qual ela pertencia.
Figura 5: Paneiro de cipó titica, artesanato Kaxarari.
Fonte: Maiza Soares, 2023
Enquanto conversávamos com Domingo e Rita, pudemos notar que eles têm interesse
em vender seus artesanatos para pessoas de outros lugares. Perguntamos se ele gostaria de
vender a produção deles na cidade e ele respondeu que seu desejo é de que o artesanato deles
seja valorizado pelas pessoas de fora. “Eu queria que tivesse como levar na cidade. Não
adianta nada vender pro pessoal daqui. Eles não querem”, disse Domingo.
Quando perguntamos o motivo de não levar para Extrema, por exemplo, por ser uma
cidade próxima, ele nos respondeu que é muito difícil para eles saírem para a cidade com as
peças, principalmente por causa da estrada. O transporte deve ser feito com cuidado pela
delicadeza das peças e, por mais que haja interesse das pessoas de fora da comunidade, ele não
sabe qual seria a maior procura quando fossem vender.
Ao contemplarmos outras peças expostas, encontramos uma pulseira de tucumã e pena
de arara explicado pela Sra. Rita. Enquanto conversávamos, pudemos perceber que a venda
do artesanato ainda não é algo estruturado entre eles. O preço ainda não era definido, podendo
variar o valor de uma mesma peça para pessoas distintas.
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Figura 6: Pulseira de tucumã e pena de arara, artesanato da Aldeia Marmelinho.
Fonte: Maiza Soares, 2023.
Ainda durante nosso diálogo, reforçamos a importância de apresentar o artesanato
Kaxarari para outras pessoas como maneira de fortalecer as características e as particularidades
da família Kaxarari, além de preservar a história e o modo de vida deles, pois “a cultura de um
povo conta sua história”, disse o professor Josué.
CONSIDERAÇÕES
As representações das populações indígenas apresentam em suas simbologias,
elementos pertinentes às análises e abordagens da Geografia Cultural. As culturas permeiam
entre as representações e simbologias, nas quais a historicidade, a espacialidade e
territorialidade são construídas através dos valores considerados mais importantes de um povo.
A pesquisa realizada pautou a problemática de representações de indígenas e teve como
objetivo conhecer as representações sociais do “ser indígena” e compreender a visão de mundo,
através das territorialidades e identidade.
Contudo, muitos princípios indígenas, como o respeito à natureza e a busca pelo
equilíbrio, são universais e podem ser adotados por qualquer pessoa, independentemente de sua
origem étnica, afinal a natureza fornece recursos vitais, como água, alimentos e ar puro, que
são essenciais para a nossa sobrevivência. Além disso, a natureza desempenha um papel
importante na regulação do clima e na manutenção do equilíbrio ecológico. Além disso, muitas
culturas e tradições valorizam a natureza por suas qualidades espirituais e estéticas, e o respeito
à natureza é uma parte importante de suas crenças e práticas.
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Gostaríamos de agradecer aos colaboradores pela construção dessa pesquisa. Os
professores Maria das Graças e Josué da Costa Silva, os pesquisadores dos grupos de pesquisas
GepCultura e GepGênero e a comunidade Barrinha e Marmelinho, que nos recepcionaram e
contribuíram para a construção do nosso trabalho, nos ajudando com relatos de experiências,
descrição das suas atividades e mais do que qualquer coisa, com o compartilhamento de seus
saberes e cultura.
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