CHAMADA PARA DOSSIÊ - Encantarias e encantados nas paragens e paisagens imaginárias da Amazônia

14/11/2024

O dossiê abrigará trabalhos que se proponham realizar reflexões sobre manifestações de encantarias e/ou de seres encantados no espaço da região amazônica. Entendemos as encantarias como uma paisagem imaginária através da qual os seres encantados podem desvelar-se por meio de ficções. O poeta e teórico João de Jesus Paes Loureiro define as encantarias a partir do espaço mítico e poético constituído pela mata, pelos rios e também pelo sfumato ou devaneio, “onde habitam os encantados, os deuses da cultura amazônica” (Paes Loureiro, 2008, p. 7). Configura-se também como encantaria a linguagem que poetiza e/ou narra acontecimentos desse espaço encantado. Para Paes Loureiro, a conversão semiótica faz a função prática da linguagem ceder lugar à função poética, desautomatizando as palavras, reinventando-as. Ao falar de encantarias, naturalmente as palavras perdem o uso automatizado e buscam novos horizontes sígnicos. A irrupção “da função poética das abismais encantarias da linguagem ocorre no processo de re-hierarquização dos signos com a inversão da dominante que passa a ser exercida pela estética” (Loureiro, 2008, p. 16). A imaginação e o devaneio tomam conta dessa linguagem ressignificada. Para tratar do devaneio, Paes Loureiro vale-se de uma noção da pintura, sfumato (esfumado), que é o efeito provocado pelo uso da estopa em vez do pincel, fazendo com que o desenho fique com as sombras esbatidas. esfumaçadas. É a natureza fugaz e imprecisa do sfumato que permite a passagem da experiência cotidiana para a experiência poética, da natureza humana para a natureza cósmica. O sfumato, na cultura amazônica, é o devaneio e este é “uma atitude sem repouso, mas tranquila do imaginário” (Paes Loureiro, 2015, p. 60). Esse imaginário é incessantemente instigado a manifestar-se num espaço repleto de florestas de árvores, águas e símbolos. O espaço por excelência das encantarias é a natureza e esta encontra-se entranhada de mitos, mistérios, revelações. No caso da Amazônia, trata-se da floresta aquosa, penetrada por águas reais e simbólicas, misteriosas. Os povos originários e as comunidades beiradeiras traduzem suas experiências na floresta através de histórias, faladas ou cantadas, repletas de encantarias. Os botos, curupiras, mapinguaris, iaras ou guayaras, matintas pereiras, kãweras, ypurés, assombrações, miragens e visagens são nalguns desses seres encantados que habitam as experiências diárias e imaginárias do povo amazônida. Muitas experiências encantadas originam-se da relação íntima e simbiótica dos humanos com os animais, uma relação que, vista pelos olhos da razão ocidental, seria insólita. Contudo, os ameríndios têm uma visão animista da existência. O animismo manifesta uma equivalência autêntica e multinatural entre as relações que humanos e não-humanos cultivam consigo mesmos, por isso podemos dizer que os animais veem os animais como os humanos veem os humanos: como humanos (Castro, 2017). Assim, os sistemas animistas se caracterizam pela continuidade das relações entre humanos e não humanos; nesses sistemas, as interioridades e subjetividades comuns superam as descontinuidades representadas pelas diferenças corporais, físicas. Philippe Descola defende que o animismo consiste no melhor antídoto contra o solipsismo, pois em vez de um mundo centrado no eu, onde cada forma de existência existe confinada em função de características físicas específicas, existe o mundo animista, “gigantesco espaço de troca transespecífica”, no qual “as interioridades que habitam tipos de corpos distintos começam a se comunicar numa linguagem comum” (Descola, 2023, p. 84). Relacionada ao animismo, a noção de perspectivismo ajuda a explicar algumas encantarias. Eduardo Viveiros de Castro aponta que tanto humanos como não-humanos apreendem o mundo através de perspectivas distintas. O perspectivismo encontra-se frequentemente relacionado “à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um mero envelope (uma ‘roupa’) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos comutadores perspectivos transespecíficos, como os xamãs” (Castro, 2018, p. 57). O olhar animista e perspectivista abarca um sentido descolonizador, assim como também as encantarias, porque em todos esses casos se opera a possibilidade de discursos transgressores e desautomatizadores. As narrativas ficcionais que trazem as encantarias em suas tramas desvelam sempre a transgressão, porque desautomatizam o olhar sobre as normas, sobre as verdades absolutas; sobre os discursos de dominação e de repressão. As encantarias funcionam como espaços de leveza e de fluidez, que podem nos fazer mudar a nossa percepção sobre o mundo que nos rodeia.

Responsáveis pelo dossiê:
Larissa Gotti Pissinatti (UNIR) - larissa.pissinatti@unir.br
Sonia Maria Gomes Sampaio (UNIR)
Fábio Almeida de Carvalho (UFRR)
Fernando Simplício (UNIR)

Os artigos deverão ser submetidos nas diretrizes da revista para o email: revistaigarape@gmail.com indicando no assunto: “DOSSIÊ -ENCANTARIAS E ENCANTADOS NAS PARAGENS E PAISAGENS IMAGINÁRIAS DA AMAZÔNIA

Data de envio: até 30 de janeiro de 2025.
Previsão de publicação – abril/maio de 2025.